Os mundos suspensos de Rimbaud
'À volta da mesa', de Henri Fantin-Latour, 1872. Rimbaud é o segundo da esquerda para a direita. Ao seu lado direito, Paul Verlaine (Foto: Reprodução)
Nas paredes dos aposentos de Baudelaire, Hotel Pimodan, litografias de Delacroix – no escritório, sobre a mesa, os primeiros versos de As flores do mal. Descia-se a escada, chegava-se ao salão onde se reuniam os membros do “Clube dos Haxixinos”, entre eles, Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Victor Hugo. Baudelaire nos leva à origem do termo que dá nome ao clube: discípulos de uma seita islâmica, em busca da ideia do paraíso, embriagavam-se de haxixe – daí o termo “haxixinos” ou “assassinos”. Neste antigo hotel, “isolado da civilização” pelo Sena, mais uma vez se buscou o paradisíaco através do consumo de haxixe; não como ideia, mas como “estado do espírito e dos sentidos”. Para Baudelaire, é neste estado de alucinações que “o mundo moral abre suas vastas perspectivas, cheias de novas claridades”. É o instante em que “os perfumes, as cores e os sons se correspondem”. O poeta do spleen fez da embriaguez método de trabalho. Rimbaud, anos mais tarde, dirá: “Esse é o tempo dos Assassinos”.
“Uma hora de literatura nova” – é assim que Rimbaud começa sua carta, dita do vidente. Escrita em Charleville, esta carta é uma meteórica análise da história da poesia ocidental – dos harmoniosos gregos aos românticos: é também a “prosa sobre o futuro da poesia”. Inventor das cores das vogais, Rimbaud realiza um estudo, um trabalho: “escrevia os silêncios, as noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens”. Diz que é preciso tornar-se vidente, e que “o poeta se faz vidente por meio de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos”. É preciso dizer ainda que desregrar os sentidos é diferente de intensificá-los. Dir-se-á que o vidente dota-se de uma sensibilidade livre: será ele o indicador da “quantidade de desconhecido despertada em seu tempo na alma universal”; será ele o perscrutador do mundo invisível, “encarregado da humanidade e até dos animais”, um cidadão com a missão de “encontrar uma língua”, “trabalhador horrível” que harmonizará os “perfumes, sons, cores”.
Do Clube dos Haxixinos ao tempo dos Assassinos, a relação entre linguagem e sentido é outra: vai-se da alucinação simples à alucinação da palavra, do alquimista à alquimia do verbo. Pode-se afirmar que a linguagem deixa de ser apenas meio de transmissão ou apenas meio de autoafirmação. A linguagem se torna livre meio de expressão: alucinadas, as palavras começam a independer do poeta que as escreve; expansivas, não se deixam reduzir a propósitos panfletários. É a mitologia da navegação, do “Barco ébrio” em que, segundo Roland Barthes, “suspende-se o homem e deixa-se o navio só, entregue a si próprio; então o barco deixa de ser uma caixa, habitat e objeto possuído, para se tornar olho viajante, que, de leve, roça infinitos e produz, incessantemente, partidas”. Rimbaud inventa uma “poética da exploração”, conferindo à linguagem autonomia nunca dantes conferida. Em outros termos, para além dos evasionismos, Rimbaud encontra, na linguagem polimorfa, forma de ação e movimento metamórfico.
Um temporada sem haxixe
“É necessário que cada um desça ao seu próprio inferno”, diria um Orfeu absolutamente moderno. Rimbaud, em sua descida, leva a linguagem para terras desconhecidas. Este inferno é rarefeito. Não é decerto o sonho de Nerval, a segunda vida, onde portas de marfim se abrem e é encontrado o mundo invisível; sono sem imagens, o inferno é, agora, a vida ausente. Está-se em atmosfera inexplorada, mais distante e hostil. É o inferno da sede.
Rimbaud diz: “engoli um senhor
gole de veneno”, “a violência do
vinho torce meus membros, me
deforma, me prostra. Eu morro de
sede, sufoco, não consigo gritar”.
É o inferno de condenações eternas em uma única temporada: transfigura-se na linguagem o sentido de “inferno”, que passa a moderno, ou seja, uma centelha na ampulheta da eternidade. Desprovido da “tristeza amorosa da noite”, dos fragmentos Os desertos do amor, é já o inferno posterior à melancolia de 1848. Terminaram-se as lágrimas do menino que “chorou mais que todas as crianças do mundo”.
É o inferno sem tempo nem espaço, no qual “o relógio da vida parou há pouco”. O silêncio é tornado infernal, e a sensibilidade, antes livre, desregrada, dissolve-se: “Mais nenhum som. Meu tato desapareceu”. Neste inferno absolutamente moderno, a linguagem, que antes se via entregue a uma sensibilidade livre, desregrada, agora se dá apenas a si mesma. Linguagem a vácuo.
Em suma, o inferno é um mundo suspenso, onde o poeta, ao “ascender”, esquece no caminho a sua individualidade, soçobra e confunde-se na massa de sombras: seu nome passa a ser Ninguém, indistinto entre as faces tingidas de noite. Desse inferno é que se evade o poeta, de modo que o valor da evasão reside na revolta que ela secreta.
Ora, Rimbaud afirma a sua revolta na ação; e para o poeta não há ação que já não seja condenação. Condena mundo, condena palavra – diz, por fim, “eu sepulto os mortos no meu ventre”. É o inferno do desumano, da violência contra a espécie – pena a escrever o poema que nega a poesia. Rimbaud é o poeta que evoca o seu próprio inferno, “penso que estou no inferno, então estou nele” – é um teatro mental este mundo suspenso. Assim, “a palavra poética sustenta-se na negação da palavra”, como lembra Octavio Paz.
É intoxicação e purificação ao mesmo tempo: é nessa “falsa conversão” que mais tarde lhe será “lícito possuir a verdade numa alma e num corpo”. Rimbaud imagina-se “estendido entre os desconhecidos, sem idade, sem sentimento”. Herói, o poeta morrerá belo e se inscreverá na memória daqueles que vivem com suas canções. No inferno, porém, Rimbaud diz: “Não sei mais falar”.
É nesta região do silêncio que
a linguagem atingirá o mais alto
grau de pureza e liberdade.
Com a dissolução do sentido, culminância de um processo que se originou no projeto do vidente, com a ruptura das formas antigas, a linguagem, entregue apenas a si, meio de expressão autônomo, designa a sua forma. Em Uma temporada no Inferno, temos uma misantropia crítica que elabora a forma da condenação: o fragmentário e o condensado, o conciso e o sugestivo, o suspensivo e o negativo, são as últimas formas de uma linguagem que ruma ao silêncio do informe. Rimbaud, em sua poesia em prosa, reconstitui o movimento circular, essencial da literatura de nosso tempo: na autodissolução das formas e dos conteúdos, tem-se a autorreflexão da literatura, que ingressa num eterno pensar-se a si mesma, “livre” de outros assuntos; não, contudo, de si mesma.
Descer por este inferno moderno, por estes círculos noturnos e miseráveis, é pôr-se diante dos deslocados quadros de uma modernidade estagnada em novidades; o poeta é Orfeu, na esquiva e recusa das máquinas do mundo, recrutadas pela fome e nutridas pelo amor, corrompidas, ricas e triunfantes. E apesar dessas infinitas expansões, a visão do “novo amor” e do “trabalho novo” persistem: “além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, da sabedoria nova, a fuga dos tiranos e demônios, o fim da superstição, adorar – os primeiros! – Natal na terra”.
Relembrança e mobilização
Rimbaud torna-se o poeta da relembrança, faz de sua musa a memória, Mnemosine, e não a natureza. Nessa anamnese do poema em verso ou do poema em prosa, história e sociedade, política e cultura irrompem na fulgurância do presente. O vidente não é de todo diferente do aedo, sua canção universal é um ressoar harmônico que desperta o futuro. Entretanto, os cantos do vidente são de guerra. Ao exceder-se o sofrimento, prepara-se uma mobilização inédita: para “mudar a vida”, e não apenas cantá-la. Desregrar os “sentidos”, visto o duplo significado da palavra em francês, é tanto o desregrar perceptivo, sensível, como o desregrar do senso, do juízo e do raciocínio prático.
Formula-se, então, um projeto
nada unidimensional de libertação
das faculdades humanas.
A começar de si mesmo, aspira-se a uma nova formação do poeta, libertação para novas formas de viver e escrever; logo, o poeta já se põe como autônomo, e dá a sua regra, a sua forma. Ou então: ao caos de uma não-forma, dá o informe. Quanto à linguagem e ao lugar que lhe é devido, essa obsessão dos modernos no inferno que lhes é próprio, desregrar os sentidos ou as significações, não é senão uma consideração de autonomia antecipada em que é concedido o delírio, a alucinação, às palavras. Posto isto, vale soletrar uma frase de Arthur Rimbaud, o jovem estudante de Charleville, em sua primeira carta do vidente, enviada a Georges Izambard: “Isso não quer não dizer nada”.
Muito já se escreveu sobre o poder da concisão em Rimbaud: que ela é oportuna, que ela é sugestiva, e assim por diante. Vamos aqui nos conformar a um tipo de aproximação que se opera entre o poeta e aqueles que povoam o inferno contemporâneo. Ao passar do “ego”, que já é um outro, ao “nós”, esse limiar da alteridade, Rimbaud não remete a elementos que estariam em estado de natureza, nem a meros dados isolados do jogo ou da luta em sociedade. Antes, mostra que o “referente” em questão é um problema de elaboração sócio-histórica, indissociável do ato pelo qual “ele” ou “nós” tomamos a palavra. O emprego do modo imperativo, por exemplo, já não será monológico nem apenas dialógico: modo verbal que participa de uma instância denotativa, forma de combatividade sui generis, o imperativo em causa concerne ao falante tanto quanto aos seus interlocutores.
Trata-se, assim, menos de um convite para ingressarmos nos incalculáveis sofrimentos do inferno contemporâneo, até porque já estamos nele. Trata-se, em contrapartida, de um ato de interpelação – para nos tornarmos cientes de que não estamos condenados a nele permanecer. Nos momentos finais de Uma temporada no Inferno, essa aproximação dá notícia de uma tomada de posição: “Escravos”, diz ele, “não amaldiçoemos a vida”.
Lucas Bertolo é tradutor e estudante de filosofia na Universidade Federal de São Paulo.
Sílvio Rosa Filho é professor de filosofia na Universidade Federal de São Paulo, autor de Eclipse da moral: Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporâneo (Discurso Editorial & Barcarolla).