Mulheres e poder: o nome próprio e os índices da liberdade

Mulheres e poder: o nome próprio e os índices da liberdade
The Masked Woman, Max Pechstein, 1910 (Domínio Público)

 

Nada é inteiramente novo. Todavia, há coisas que, uma vez rearticuladas, soam de maneira perturbadora. Seja pela fórmula do senhor e do escravo de Hegel, seja pela horda primitiva sistematizada por Freud, ou ainda por alguma outra figura da ideia, repetida aos quatro cantos pela história das civilizações, sempre se soube que um nó inarredável ata a subordinação ao poder. Judith Butler apresenta o enrosco sob nova luz em A vida psíquica do poder. “A sujeição é paradoxal”, afirma ali. De um prisma, o poder é opressor e externo a nós. De outro, o próprio sujeito depende, para sua formação, do poder ao qual se subordina.

Percorrendo os largos passos dados por Michel Foucault, a filósofa estadunidense observa que o fundamento da própria condição de existência e da trajetória do desejo implica dependência e renúncia de liberdade em nome de um poder a que simultaneamente se resiste. Em suas palavras:

O modelo habitual para entender esse processo é este: o poder se impõe sobre nós; enfraquecidos pela sua força, nós interiorizamos ou aceitamos seus termos. O que essa descrição não diz, no entanto, é que “nós” que aceitamos tais termos somos fundamentalmente dependentes deles para “nossa” existência. (Butler, 2017).

“‘Sujeição’ significa”, em suma, “tanto o processo de se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um sujeito”. Implica vetores de mão-dupla: uma subjetividade inexistente e a outra que lhe determina em seu lugar subjugado. Alienar-se no Outro impõe a impossibilidade de designar-se em terminologias ontológicas. De uma ótica externa, o sujeito alienado é uma figura desfocada, algo turva. Os contornos nítidos da imagem que retrata a dupla estarão traçados em torno do Outro. Ou, dito de maneira mais específica: “o sujeito é iniciado através de uma submissão primária ao poder”. Seu vir-a-ser submete-se e, em linha contígua, suspende suas pretensões de moldar uma essencialidade, marcando somente o movimento de “volta” ao Outro como referente, tropo.

No grego clássico, tropo indica “mudança de direção”, “deslocamento” ou “desvio”. Ao investigar a origem da palavra, Hayden White (apud Butler, 2017) chega ao significado de tropus no latim clássico, raiz de línguas indo-europeias modernas. Ali aparece como “metáfora” ou “figura de linguagem”. Mais inusitado é seu sentido no latim tardio, ligando-se à teoria da música como “tom” ou “compasso”. Por fim, o autor desemboca em style [estilo], termo inglês que coloca tropo no campo de estudos sobre o discurso, distanciando-o da análise da ficção ou das regras da lógica. Tropos indicam rotas desviantes da linguagem habitual. Inauguram figuras de linguagem ou de pensamento. São capazes de conectar termos desconexos nas redes usuais ou lógicas.

Quando o tropo circula até sedimentar-se (Nietzsche apud Butler, 2017) ganha-se um novo hábito de linguagem. Absorvido em meio às palavras corriqueiras, o tropo se consolida com o esquecimento do desvio inaugural. Turn [volta, virada] era nos séculos 17 e 18 um tropo que indicava novas figuras sintáticas de linguagem. Volta que indica o engendramento do sujeito, exigindo o próprio uso de tropos para que esse processo inaugural efetivamente ocorra. Trata-se de operar a gênese do sujeito na e pela linguagem.

É de se presumir que, no quadro retratado, a interpelação do sujeito pelo seu nome próprio assuma lugar decisivo. Chamá-lo implicará uma oferta tácita de reconhecimento. O grito de seu nome carregará a demanda de uma resposta, que só poderá ser dada de maneira performativa. Se, como dito, nenhuma essência é capaz de definir o sujeito alienado no Outro, ao convocá-lo este só será atendido a partir da instauração de um índice constitutivo. A voz que interpela o sujeito pelo nome concede-lhe balizas inaugurais do espaço a ser explorado no campo social.

No universo dos afetos, tal interpelação ocorre de diferentes modos; o afinco em sujeitar-se relaciona-se ao modo pelo qual o poder opera nos interstícios de processos psíquicos extremamente insidiosos. O sujeito, como vimos, emerge do poder que na mesma medida a ele se impõe e forma-o, colocando a independência como efeito da subordinação. Uma vez recalcado, o fundamento opressor da inauguração do sujeito fica relegado às sombras do inconsciente.

Subordinação não se vincula apenas à opressão do Outro. Reflete uma relação complexa e dual – mas que também implica uma terceira dimensão negativa – na qual existe amor – ambivalente, vale lembrar –, dependência e/ou tentativa incansável e inesgotável de constituir-se enquanto sujeito. Na sua versão apaixonada, o amor mescla eu e Outro numa imagem especular difusa, cujo registro é imaginário. Como dom, diz Jacques Lacan, o amor coloca-se no campo simbólico, onde enreda-se à linguagem. Enquanto na paixão o Outro é objeto, no dom o Outro opera como sujeito. O apaixonado é o eterno insatisfeito. Nenhuma prova de amor será suficiente para aplacar seus anseios de unidade com o Outro, presa de suas fantasias. Se elas se dissolvem pela manifestação concreta do Outro, nasce o ódio voltado a si e ao objeto amado. Nem o desaparecimento do Outro aplaca os ânimos de um amor não correspondido dentro de seus moldes. É o que diz Nádia Paulo Ferreira na seguinte passagem do texto “A infinidade de amores na dor de existir”, publicado na Cult:

Não basta o exílio, a prisão, o assassinato; é preciso a injúria para denegrir o ser do outro odiado. Se não se pode eliminar a existência do outro odiado na linguagem, o caminho da difamação é a via pela qual se tenta associar um nome à indignidade e à vilania. Um terceiro elemento é acrescentado ao par amor-ódio: a ignorância. O desejo de não querer saber está para a paixão assim como o desejo de querer saber está para o amor. O amor como dom ativo está para além da fascinação imaginária, porque se dirige ao ser do outro em sua particularidade. Trata-se de um amor que se inscreve no regime da diferença, onde dois não fazem um, mas dois.

Com essas linhas, abre-se um território de debate a partir de um elemento simbólico aparentemente antiquado e periférico às questões feministas mais recentes: a adoção do nome de família do marido, feita pela esposa no ato do casamento.

No meio jurídico, acrescer ao nome próprio o sobrenome do marido assumia uma conotação simbólica que indicava uma “fusão de almas”. Estudiosos do código civil pensam que a lei, modificada em 1962, expressava um equívoco. Rodrigo da Cunha Pereira alega que “misturar os nomes pode significar mesclar e confundir as identidades. O nome é um dos principais identificadores do sujeito e constitui, por isso mesmo, um dos direitos essenciais da personalidade. Misturá-los significa não preservar a singularidade”.

Dista no tempo a obrigatoriedade de portar o sobrenome daquele que antes era, por direito, o patriarca na zona nuclear de parentesco. O que talvez não fique evidente com a alteração é que a subordinação da mulher no casamento não está dissolvida por completo com a mera mudança da lei do nome.

Dito de outra maneira: a conjugação de nomes talvez explicitasse com maior clareza os complexos arranjos, tratados por Judith Butler, entre sujeição e poder, também em vigor no cerne da instituição matrimonial. Daí que, embora não deixe de ser expressão do sistema patriarcal, o gesto de seguir a tradição e tomar para si o nome do marido não se limite, para algumas mulheres, à mera consagração do domínio do Outro em moldes simbólicos. O patriarcado ultrapassa em muito esse sutil sinal de sua existência para alastrar-se em práticas mais difusas e simbolicamente pouco decifráveis.

Fraukopf Max Pechstein
Fraukopf, Max Pechstein, 1911 (Domínio Público)

A função do Nome Próprio na constituição do sujeito

A cada registro de palavras – pouco importa se orais ou escritas, elas serão sempre tracejar de caracteres –, o sujeito modela experiências e posiciona-se em relação a um todo indiscernível. Talhar palavras implica certa violência. Como o gravurista no entalho da madeira, o sujeito escava o vazio pela grafia e pelas leis da gramática. Cada rasgo deixa zonas abissais fora do alcance, demonstrando o fracasso insuperável de cada gesto de escritura. Sem a insistência nesse rabiscar incessante, porém, o sujeito entrega-se à morte silenciosa de si e de todas as coisas. É sempre preciso fazer marcas, deixar rastros, tropeçar de novo.

Nesse contexto arriscado e errante de cravar pela letra pequenos obstáculos à passagem inexorável e surda do tempo, a inscrição de um nome próprio cumpre função especial na constituição do sujeito e de sua história. O nome próprio não é retrato de um eu ou de um personagem. É antes um oco, cujas bordas estão dadas. No ato de conceder um nome próprio àquele que nasce, o Outro o circunscreve num determinado território. Trata-se, todavia, de uma área baldia na qual o sujeito precisará ensaiar e imprimir seus movimentos. Não há mapa, não há trilhas, não há receitas. Desbravar a área circunscrita por um nome será a tarefa de uma vida.

Quando a mulher adota o nome de família do homem com quem se casa, escolhe percorrer um novo território. Rompe delimitações estabelecidas pelo seu nome e pega de empréstimo as ranhuras de outra tradição, não ligada à natureza de suas origens, mas à história de um amor. Apaga seus movimentos pregressos tentando, na adesão a essa outra circunscrição, se lançar em novos universos. Através dele tenta se aproximar de um horizonte de desejo. O nome próprio torna-se tropo – deslocamento, desvio, volta. Por isso, adotar um sobrenome que não seja o de nascimento não expressa apenas submissão ao Outro, mas simultaneamente engendramento de uma nova faceta de sua existência histórica, estrangeira às estabelecidas pelo nascimento.

Com um divórcio, a mulher jamais recuperará o nome de solteira. Voltará a usá-lo, mas já estará em outro lugar. De um ponto de vista social, a mulher sempre perde, já que o olhar lançado de fora busca frequentemente fixar o sujeito numa imobilidade identitária que reúne em torno do nome todas as propriedades do sujeito.

Um dos indícios do poder patriarcal está justamente em simbolizar os movimentos da existência por regras de fixação temporal e reservas de propriedades. Poder transitar entre o nome de nascimento e outro, estranho aos contornos prescritos pelo destino para o desenho de uma história, pode ser uma experiência interessante. Quando há ainda um segundo movimento, causado pelo divórcio e no qual se apaga o nome adotado para recuperar o anterior, o sujeito regressa de uma viagem, depois da qual já não é o mesmo.

Muitas mulheres assumem a condição de trânsito, de deslocamento, de provisoriedade que segue o ritmo próprio à existência e aos tropos na linguagem. Lançam-se à letra que dará novos contornos aos abismos do desejo. Aproximam-se da experiência de vertigem. Colhem, porém, algumas consequências que as afetarão insidiosamente. Se ousam atravessar balizas estabelecidas pela tradição do sobrenome justaposto pelo matrimônio ao seu de nascimento, não raro torna-se execrada, sofrendo injúrias e difamações. Contra esses obstáculos, elas tentam imprimir outras leis, coerentes aos buracos do desejo que verdadeiramente convocam gestos incansáveis para bordejá-los.

É nesse contexto todo que parte do item 0x01 do Manifesto Xenofeminista emerge como uma prescrição valiosa a ser considerada:

Xenofeminismo aproveita a alienação como um impulso para gerar novos mundos. Estamos todos alienados – mas já fomos de outra maneira? É através de nossa condição alienada, e não apesar disso, que podemos nos libertar da sujeira do imediatismo. A liberdade não é um dado – e certamente não é dado por algo “natural”. A construção da liberdade envolve não menos, mas mais alienação; alienação é o trabalho de construção da liberdade. Nada deve ser aceito como fixo, permanente ou “dado” – nem condições materiais nem formas sociais. O Xenofeminismo muda, navega e detecta todos os horizontes.

A partir deste mês passo a assinar a coluna como Alessandra Affortunati Martins, antigo nome de solteira.

Alessandra Affortunati Martins é psicanalista e doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela USP. Autora de “Sublimação e Unheimliche” (Pearson, 2017), “A abstração e o sensível: três ensaios sobre o Moisés de Freud” (E-galáxia, 2020) e organizadora de “Freud e o patriarcado” (Hedra, 2020).


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