Quando as mulheres-búfalos adentram a floresta dos símbolos

Quando as mulheres-búfalos adentram a floresta dos símbolos

Fotos de Bob Sousa

Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos é uma intrincada criação cênica da Companhia de Teatro Heliópolis, densamente construída a partir dos registros dramático, épico e documental em cujo entrelaçamento misturam-se ainda elementos da dança, da música e do ritual, todos a serviço da enunciação de um discurso político vigoroso e impactante – inaudível, pela via da desfaçatez, a boa parte da classe dirigente do país. O texto, de autoria de Dione Carlos, e a encenação, a cargo de Miguel Rocha, investem na ativa interlocução que se estabelece entre os dois planos que sustentam a empreitada: o real e o simbólico. O primeiro constitui o tema básico da peça: o regime sistemático de violência social, econômica e política ao qual está submetida grande parte da população brasileira desassistida de qualquer direito; o segundo é representado pelo resgate da ancestralidade negra africana, disposto sob a forma de um belo material fabular e mítico que emoldura sutilmente o quadro apresentado, dando-lhe dimensões incomuns.

Composta pelas raízes sým (junto a, ao mesmo tempo) e bolon (lançar, arremessar), a palavra “símbolo” tem origem no grego sýmbolon (σύμβολον), significando um “objeto de reconhecimento” cindido em duas metades, cada uma delas permitindo que o portador reconheça a metade faltante ao encaixar uma na outra. Etimologicamente, é o antônimo de “diabo” (διάβολος), sobre cuja raiz bolon vem se juntar a raiz diá (dividir, dispersar). Assim, simbólico é o que une; diabólico, o que separa. “O símbolo”, afirma Anne Souriau em Vocabulaire d’esthétique, “não deve ser confundido com o signo porque ele não é convencional e intelectual, mas, antes, um apelo da imaginação sensível em direção à esfera espiritual, que sugere, sem significar”.

(Foto: Bob Sousa)

A despeito de boa parte de Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos estar assentada na denúncia da realidade brutal do encarceramento em massa das pessoas negras, pobres e periféricas, vítimas das “dinâmicas seletivas do sistema judicial brasileiro”, segundo as palavras da própria companhia de teatro, é do contundente símbolo do búfalo – surgido em cena no início e no final do espetáculo – que irradia sua comovente e complexa expressividade. Se o primeiro sentido de “símbolo” está circunscrito à esfera do reconhecimento e a prática de simbolizar testemunha antes de qualquer outra coisa a qualidade do portador do objeto simbólico, a belíssima figura em cena da mulher-búfalo constitui um sinal sensível de alta voltagem poética, que os criadores-portadores envolvidos nessa criação rapidamente fazem precipitar-se em uma imagem de inequívoca prontidão política.

Sem fazer concessões a nenhuma espécie de didatismo, o espetáculo, pela via do rito ancestral que lhe serve de inspiração, funda sua gênese sobre a mitologia africana iorubá que trata do orixá feminino Oyá, também chamada de Iansã, cuja história se entrelaça com a figura do búfalo, segundo a variante recontada por Reginaldo Prandi em Mitologia dos orixás:

Ogum caçava na floresta quando avistou um búfalo. Ficou na espreita, pronto para abater a fera. Qual não foi sua surpresa ao ver que, de repente, de sob a pele do búfalo saiu uma mulher linda. Era Oiá. E não se deu conta de estra sendo observada. Ela escondeu a pele do búfalo e caminhou para o mercado da cidade. Tendo visto tudo, Ogum aproveitou e roubou a pele. Ogum escondeu a pele de Oiá num quarto de sua casa. Depois foi ao mercado ao encontro da bela mulher. Estonteado por sua beleza, Ogum cortejou Oiá. Pediu-a em casamento. Ela não respondeu e seguiu para a floresta. Mas lá chegando não encontrou a pele. Voltou ao mercado e encontrou Ogum. Ele esperava por ela, mas fingiu nada saber. Negou haver roubado o que quer que fosse de Iansã. De novo, apaixonado, pediu Oiá em casamento. Oiá, astuta, concordou em se casar e foi viver com Ogum em sua casa, mas fez as suas exigências: ninguém na casa poderia referir-se a ela fazendo qualquer alusão a seu lado animal. Nem se poderia usar a casca do dendê para fazer o fogo, nem rolar o pilão pelo chão da casa. Ogum ouviu seus apelos e expôs aos familiares as condições para todos conviverem em paz com sua nova esposa. A vida no lar entrou na rotina. Oiá teve nove filhos e por isso era chamada Iansã, a mãe dos nove. Mas nunca deixou de procurar a pele do búfalo.As outras mulheres de Ogum cada vez mais sentiam-se enciumadas. Quando Ogum saía para caçar e cultivar o campo, elas planejavam uma forma de descobrir o segredo da origem de Iansã. Assim, uma delas embriagou Ogum e este lhe revelou o mistério. E na ausência de Ogum, as mulheres passam a cantarolar coisas. Coisas que sugeriam o esconderijo da pele de Oiá e coisas que aludiam ao seu lado animal. Um dia, estando sozinha em casa, Iansã procurou em cada quarto, até que encontrou sua pele. Ela vestiu a pele e esperou que as mulheres retornassem. E então saiu bufando, dando chifradas em todas, abrindo-lhes a barriga. Somente seus nove filhos foram poupados. E eles, desesperados, clamavam por sua benevolência. O búfalo acalmou-se, os consolou e depois partiu. Antes, porém, deixou com os filhos o seu par de chifres. Num momento de perigo ou de necessidade, seus filhos deveriam esfregar um dos chifres no outro. E Iansã, estivesse onde estivesse, viria rápida como um raio em seu socorro.

(Foto: Bob Sousa)

Do ponto de vista metodológico, a evocação de tal mito pairando sobre a cena revela um modo de concepção do símbolo como um vestígio do invisível. O que é simbólico é proferido alegoricamente e flagrado com os olhos do espírito. A que reconhecimento da complexa e multifacetada simbologia do búfalo refere-se o espetáculo? Nós, espectadores, somos convidados não a decifrar os sentidos do signo do animal, por demais evidentes, e sim a partilhar as muitas imagens que o símbolo dele carrega. O reconhecimento e os vestígios do invisível articulam-se em torno do búfalo e progridem para o binômio mulher-búfalo, uma espécie de conceito-avatar de toda a experiência.

A presença da mulher-búfalo (mãe, irmã, amiga, companheira) na conjuntura do encarceramento da população pobre, negra e periférica opõe-se frontalmente ao processo de aniquilação dessa população, organizado como um projeto de poder para o qual a brutalidade nada mais faz do que coroar o êxito da política de dominação social, intelectual, cultural e estética que se lança contra ela e a sufoca dia a dia. O chamado cidadão médio, o temível “cidadão de bem”, não se dá conta, por ignorância ou má fé, das motivações melodramáticas de uma sociedade forjada a partir de cínicas incongruências que reproduzem as disparidades econômicas e sociais como um espetáculo de grand guignol, no qual a violência é mesmo esperada e largamente consumida. Assim é que as Marias-búfalos se insurgem, assumindo várias personas na vida social, da Maria das Dores à Maria dos Prazeres, com o objetivo de encarnarem outros papéis como agentes sociais, a partir da conexão com sua ancestralidade mais profunda e da convicção de que a noção da velha solidariedade universal ainda prevalece entre os párias.

(Foto: Bob Sousa)

Nesse processo, o símbolo assume o protagonismo em virtude de sua potencialidade imagética e narrativa, rompendo com a linearidade racional do entendimento do problema da violência urbana, com a manifestação da mera reação de indignação (farisaica) frente a ele, com a reiteração ad infinitum dos mesmos dispositivos de reprodução espetacular de tal problema – isto é, as velhas e surradas formas de organizar como uma planilha, com o máximo de previsibilidade, a experiência da vida social. A remissão do símbolo em busca de bases intelectuais e sensoriais que franqueiam à população negra o conhecimento de sua própria história prepara melhor essa população e a fortalece na luta incessante contra a mentalidade colonizadora, que ainda existe, embora assumindo outras configurações. A conexão Oyá-Iansã-Marias tecida no tempo garante a dimensão mítica da empreitada, sem se esquecer de proporcionar o surgimento de novas formas de subjetividade, libertas do padrão cristão da mater dolorosa. O mito “Oiá transforma-se num búfalo” é uma espécie de “escrita-existência gestada no ventre do mundo”, como postula Renata Felinto em um dos ensaios de Adinkra: sabedoria em símbolos africanos.

Oyá-Iansã-búfalo é o arquétipo do feminino atrevido, inconformado, arrebatado, corajoso. Mulher dotada de sensualidade. O rio que se transforma em vento, chuva e tempestade. O fogo que é também raio e relâmpago. Dionísio, o Areopagita, assim define a simbólica mística do búfalo: “A figura do búfalo marca a força e a potência, o poder de cavar sulcos intelectuais para receber as fecundas chuvas do céu, ao passo que os chifres simbolizam a força conservadora e invencível”.

(Foto: Bob Sousa)

Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos promove uma aguda compreensão da experiência de abandono, por parte dos poderes instituídos, da maioria da população brasileira, articulando temporalidades diversas expressas nos corpos dos intérpretes (todos exibindo excelentes performances) os quais, quando não têm mais o que dizer, dançam; quando não têm mais instituições políticas nas quais acreditar, lançam-se a rituais e se entregam aos sons de instrumentos de percussão e de cordas que produzem uma música que pontua o que todos nós, cidadãos, simplesmente não deveríamos mais aguentar. A noção de justiça, no Brasil, também priva, para a maioria, do conceito de vestígio do invisível.

(Foto: Bob Sousa)

CÁRCERE OU PORQUE AS MULHERES VIRAM BÚFALOS
Sesc Belenzinho – Sala II (120 lugares)
Rua Padre Adelino, 1000 – Belém – São Paulo
Quintas, sextas e sábados, às 20hdomingos, às 17h
Ingressos: R$ 30, R$ 15 e R$ 9
Duração: 120 minutos
Classificação: 12 anos
Até 27 de novembro

 

Welington Andrade é bacharel em Artes Cênicas pela Unirio, mestre e doutor em Literatura Brasileira pela USP e professor da Faculdade Cásper Líbero, onde atualmente é diretor.


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