Mover-se sob o risco de
Fotos Bob Sousa
“Se considerar minhas percepções como simples sensações, elas serão privadas, serão somente as minhas. Se as tratar como atos de inteligência, se a percepção for uma inspeção do espírito, e o objeto percebido, uma ideia, então, será do mesmo mundo que falamos, você e eu, e a comunicação entre nós será de direito…”.
Maurice Merleau-Ponty, O primado da percepção e suas consequências filosóficas.
Resultado da fusão de dois contos de Caio Fernando Abreu (“Lixo e purpurina” e “Anotações sobre um amor urbano”, ambos publicados em Ovelhas negras, coletânea em que o autor reuniu suas criações dispersas, escritas entre 1962 e 1995), o espetáculo-solo Amarelo distante, com dramaturgia e direção de Kiko Rieser e atuação de Mateus Monteiro, enfia palavras que avançam às cegas goela abaixo do espectador. Trata-se de uma experiência teatral áspera e dura, dependente em grande medida do grau de empatia que se possa nutrir pela literatura do escritor e jornalista gaúcho, de um lado, e da adesão às condições de uma teatralidade mínima instaurada em cena, do outro.
Embora seja visível a urdidura formal e estilística de Morangos mofados (1982) – volume de contos independentes, mas enredados à moda de um romance, nos quais sobressaem a “fineza de estilo, a inteligência e a percepção de Caio Fernando Abreu para tratar do que há de mais profundo no ser humano”, segundo as palavras de Heloísa Buarque de Hollanda, admiradora de primeira hora dessa obra tardia da contracultura brasileira –, não se pode atribuir à produção do escritor em Ovelhas negras (1995) as mesmas marcas da progressão e do entrelaçamento discursivos. Muito pelo contrário, os espécimes narrativos de Caio, aqui, se insurgem contra o estatuto da fabulação tradicional, transitando do conto à crônica, à epístola e ao diário, de cujo amálgama emergem a força do fragmento e a lucidez do comentário breve, mas penetrante. Literalmente, há algum avanço, mas ele se dá pela via sinuosa da substância corporal-sinestésica viscosa de que se lambuzam tais escritos e não propriamente pelo largo caminho do fruto da inteligência esclarecida que eles se recusam a saborear.
Os eventos descritos em ambos os espécimes narrativos somente podem atingir em cheio a nós, espectadores, se retirarmos deles a primeira camada da superficialidade e do senso comum. Alguns dos temas mais caros às décadas de 1960 e 1970 – a crise da palavra, os valores da família burguesa, a revolução sexual, as imposturas do mundo do saber, a fascinação exercida pela loucura e pelas drogas – dão sustentação a esses contos desejosos de representarem novos padrões comunitários, novos modelos familiares, uma nova moral sexual, novos meios de ganhar a vida, novas formas estéticas e novas identidades pessoais, opostos, por sua vez, à política do poder, do lar burguês e da sociedade de consumo, tão opressora há cinquenta anos quanto nos dias de hoje. Entretanto, esse conjunto de imagens transgressoras (cuja epiderme foi totalmente capturada pela indústria cultural com vista a ser edulcorada por ela, como sói acontecer, mas cujas camadas mais profundas permanecem selvagens e hostis) não serve para saciar nosso apetite pela sensação. Justamente pelo efeito contrário que proporciona, o da indigestão. A literatura de Caio Fernando Abreu se vale dos ingredientes da dor, dos itinerários erráticos, do fracasso e da hesitação, polvilhados pelos fermentos do amor e da esperança. Que não sem ironia deixam a massa solar. Para que nos empanturremos com ela.
A dramaturgia, de responsabilidade de Kiko Rieser, opera muito bem o amálgama de ambas as narrativas, estabelecendo um tipo de interlocução entre elas que provoca em nós, antes de mais nada, bem-vinda, e necessária, frustração. Não adianta tentar nos orientarmos pela moldura narrativo-descritiva do primeiro conto (construído sob a forma de um diário, cronologicamente organizado) porque o jorro de imagens perceptivas e afetivas de que é feito o segundo impregna tudo e embaralha qualquer objetividade. A busca por parte da direção (exercida igualmente por Rieser) por uma teatralidade mínima também parece acertada. Espaço exíguo e desnudo, um ator-solo, figurino único, trilha sonora bissexta e iluminação contida são os elementos que remetem o espectador ao que seja essencial usufruir. Há nessa sobriedade alguma coisa daquela fé incerta na coerência-final-de-todas-as-coisas.
Atuação e iluminação concorrem cada uma a seu modo para o concerto geral. Mateus Monteiro é o ator a sós em cena. Só um ator em cena. Irradiando com sua discreta presença e bela voz energia suficiente para que o sol mitigado da porra-louquice de quem nasceu em 1948 não somente não se apague como também possa ainda nos chamuscar. Ator a sós; ator a sol, tão ao gosto de Caio Fernando Abreu. Por fim, a iluminação de Karine Spuri não poderia promover outra coisa em torno do intérprete do espetáculo senão escuridão intermitente. Se para um escritor sabedor de que “não há caminhos a serem ensinados, nem aprendidos”, tal deslocamento no breu é uma necessidade, para o espetáculo-solo montado em torno dessa obra, tal avanço às cegas é uma condição.
Amarelo distante
Onde: Teatro Augusta – Sala Experimental (Rua Augusta, 943 – Consolação)
Quando: Até 28 de abril; quartas e quintas, às 21h
Quanto: de R$20 a R$ 40
Info: http://ow.ly/4n4LCS