Morte do amor, sorte da ficção

Morte do amor, sorte da ficção
Carlos Henrique Schroeder

Impossível ler “As Fantasias Eletivas” de Carlos Henrique Schroeder (Record, 2014, 111 p.) sem lembrar de “As afinidades eletivas” de W. Goethe. Neste último,  Charlotte e Eduard vivem numa casa no campo e recebem visitas pelas quais sentem-se atraídos e até apaixonados. A expressão “afinidades eletivas” (proveniente da química) inspirou Goethe a escrever esse livro que se tornou um clássico do romantismo e deve também ter inspirado Schroeder a construir o encontro entre Copi e Renê reinventando, de certo modo, o romantismo na era de sua impossibilidade.

No lugar da “afinidade” (o caráter do que é “afim”, do que tende para o mesmo lugar), Schroeder põe a “fantasia” sinalizando para uma potência nova, aquela que só se realiza pela resistência que está na capacidade da imaginação em ir além da razão. Não podemos mais idealizar, e, portanto, amar como no romantismo, mas ainda podemos fantasiar e, portanto, compreender que o amor não existe senão como uma figura de ficção impossível. Se em Goethe amar era inevitável, em “As Fantasias Eletivas” de Carlos Henrique Schroeder já não é possível amar. Não é possível amar e não amaremos, mas um resquício do que era amar, nos atormentará para sempre. E, por isso, amamos de um outro modo:  porque é absurdo amar, amamos não amando.

Se no século 18 se amava demais, descobre-se que no século 21 amar já não é a questão mesma, mas suas condições de possibilidade. Se o século 18 matou Deus, é o amor que está morto no século 21 e, por isso, convivemos com esse amor-zumbi, esse amor perdido, procurando um canto para lamber as feridas de uma vida emocionalmente dilacerada.

Isso quer dizer que o livro de Schroeder é pós-romântico, mas tudo o que é “pós” guarda algo do que pretende superar. O romantismo no caso de Goethe, não estava só na narrativa cujo cerne era a relação amorosa em que casais, ou “pares”, definiam a polaridade sem a qual não há negação, nem dialética… O romantismo em Goethe estava no ato de confrontar razão e emoção, consciente e inconsciente, natureza e cultura, lei e desejo, masculino e feminino, sagrado e profano. É neste jogo de opostos, nessa verdadeira tensão (que podemos chamar, mais uma vez, de dialética, ainda que negativa) que o casal Charlotte e Eduard sofrem em sua relação até o final trágico da história.

No livro de Schroeder,  a fantasia não é uma superação dialética da “afinidade”, da “atração fatal”, mas sua reformulação contemporânea. Não há mais uma mulher “natural” como protagonista ou como “musa” que se idealiza pelo discurso. A figura da mulher era fundamental no romantismo clássico, assim Charlotte no romance de Goethe. Ora, sabemos que não existe mulher “natural” desde que Simone de Beauvoir desvendou a criação, ou a construção social da mulher celebrizada na fórmula “ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”. Copi é a novidade no livro de Schroeder que de tão romântico, ao nível também formal, deixa de ser apenas um “romance”  para ser poesia e colagem, portanto, narrativa na base do fragmento, bem ao gosto do romantismo mais clássico…

Assim é que do tradicional par romântico, Schroeder mantém o homem e faz surgir a travesti. A mulher é uma lembrança. Alguém que é poupada do que se passa na vida subjetiva de um homem atormentado por ciúmes incontroláveis. Renê, o homem de “As Fantasias Eletivas” é posicionado no seu lugar emocionalmente miserável, praticamente um anti-herói. Alguém que não pode se entregar e que teria justamente nesta entrega a sua salvação. Ele está perdido.

A travesti que é um tipo de mulher, mas, digamos, uma mulher “dialética”, também sabe muito bem o que é ser homem. Trata-se de um sujeito do saber, mais perfeito do que a condição binária do ser “homem” ou ser “mulher”. O homem é praticamente um pobre coitado, ser aprisionado à sua representação ameaçada. Renê tem seu desejo sempre confrontado e precisa permanecer seguro contra Copi. O homem é, afinal, aquele que não cede ao desejo que a travesti corporifica. Que vantagem há nisso senão a de se representar a si como homem? Nenhuma. Duas vezes: nenhuma. Ser homem é, no livro de Schroeder, uma desvantagem atroz.

Esse desejo negado tem paralelo com a expressão artística de Copi. Renê é tanto aquele que herda os textos de Copi, quanto aquele que tendo que ouvi-la, precisava negá-la na própria impacência. Renê não quer ouvir o que Copi tem a dizer justamente naquela parte em que Copi sabe que é preciso dizer o que não se deixa dizer. O que só pode ser dito pela reflexão, pela fantasia, pelo sonho, pela imaginação, pela poesia e pela ficção. Mesmo assim, relutante, Renê a ouve. E o que ele descobre é a solidão para a qual ele nunca esteve preparado e que, no entanto, é o seu próprio destino.

A ironia do livro é que ele se libertaria desse destino se conseguisse deixar de ser tosco como um homem.

(Parabéns Schoereder, pela coragem de falar contra a limitação do gênero numa época em que ainda é preciso ter coragem para isso.)

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