A fantasmagoria do branco
Elenco de 'A missão em fragmentos' (Nereu Jr./Focoincena/Divulgação)
A 4ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), ocorrida na capital paulistana de 14 a 21 de março último, reuniu dez espetáculos da África do Sul, Alemanha, Bélgica, Brasil, Chile e Líbano, que foram apresentados em diversos equipamentos culturais instalados na cidade como o Teatro Municipal de São Paulo, o Teatro João Caetano, o Centro Cultural São Paulo, o Auditório Ibirapuera, o Itaú Cultural e as unidades Belenzinho, Pinheiros e Vila Mariana do Sesc. A verba empregada neste ano para realizar as mais de 70 atividades programadas foi de 2,9 milhões de reais (no ano passado, o orçamento foi de 3,4 milhões), sendo 2,3 milhões captados pela Lei Rouanet e 600 mil por aportes diretos.
Quatro anos após sua primeira edição, período em que rapidamente se consolidou como o principal festival de teatro da cidade, cuja ressonânciano ambiente cultural do país se estende muito além dos dez dias, em média, em que ocorre, a MITsp continua investindo não somente na ousadia da programação – marcada desde 2014 pelo hibridismo de linguagens e oferecida sempre a preços muito abaixo dos comumente praticados pela indústria do entretenimento –, mas também na capacidade de articulação teórica e formativa que os eixos “Olhares Críticos” e “Ações Pedagógicas” propõem em suas atividades (todas gratuitas), que envolvem conferências, palestras, mesas de debates, entrevistas públicas, residências artísticas e workshops, em meio a um conjunto de outras inciativas que promovem o encontro dos espectadores, sejam eles profissionais ou simplesmente amantes do teatro, com diretores, atores, dramaturgos e demais criadores da arte de Dioniso e das linguagens que dela se aproximam.
Um dos dois temas que nortearam a programação da Mostra na edição deste ano foi a questão da negritude, do racismo e do protagonismo negro (o outro tema dizia respeito ao teatro documentário), entendidos em seus aspectos tanto políticos como estéticos. Em consonância com tal temática, foram apresentados três espetáculos – A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa, Branco: o cheiro do lírio e do formol e Black off, os dois primeiros, brasileiros; o último, sul-africano – e realizado o seminário “Discursos sobre o não dito: racismo e a descolonização do pensamento”. Com curadoria do ator e diretor Eugênio Lima e da antropóloga Majoí Gôngora, o seminário reuniu a especialista em estudos de mídia sul-africana Nicky Falkof (da Universidade de Witwatersrand), da socióloga norte-americana Patricia Collins (da Universidade de Maryland), da historiadora Giovana Xavier (da Universidade Federal do Rio de Janeiro) e da filósofa e ativista do feminismo e do movimento negro Djamila Ribeiro.
Nos três espetáculos que integraram a Mostra (as duas iniciativas brasileiras cumprirão temporada regular no CCSP a partir deste mês de abril), o teatro serviu de meio privilegiado para discutir racismo, branquitude, hierarquia social e poder.
A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa
O grupo Legítima Defesa foi formado por atrizes e atores negros que faziam parte do elenco brasileiro do espetáculo Exhibit B, do diretor sul-africano Brett Bailey, cujo anúncio da vinda ao Brasil no ano passado dentro da programação da 3ª MITsp foi cercado de protestos de movimentos negros, em virtude de a peça recriar, em chave realista, os zoológicos humanos que existiam na Europa no século 19. Após o cancelamento do projeto de Bailey, parte dos intérpretes convidou o diretor e DJ Eugênio Lima para a realização de intervenções na cidade, a primeira delas – nomeada pela expressão com a qual o grupo foi batizado – ainda no contexto da MITsp 2016. Convidado a integrar a Mostra deste ano, o coletivo criou um novo trabalho, baseado no texto A missão, que o dramaturgo alemão Heiner Müller escreveu em 1979.
Em cena 15 performers negros apresentam aos espectadores as regras de um jogo do qual todos participarão a partir de uma “grande discussão” proposta a respeito do papel do branco – exercido provisoriamente pelo público –, enquanto em um ringue montado em cena – igualmente provisório – tratar-se-á de dar um fim ao “teatro branco da revolução”. O trabalho constitui uma peça de aprendizagem por meio da qual o grupo Legítima Defesa esboça seu teatro negro a partir do conceito de branquitude. Segundo Fernando de Azevedo Peixoto afirma no ensaio “Um teatro negro do mundo (notas de uma conversa inacabada)”, publicado no catálogo da Mostra: “O Negro, antes aquele ser-capturado-pelos-outros, é agora o sujeito da cena” que se converte em um “inusitado espelho: no espelho do teatro do negro, deverá emergir uma imagem do branco. E sem white face”, provoca o diretor e pesquisador, cuja companhia – o Teatro de Narradores – há um bom tempo vem se dedicando ao teatro negro em São Paulo.
Black off
A atriz e cantora sul-africana Ntando Cele, atualmente radicada na Suíça, expõe em Black off muitas visões sobre a questão da negritude, explorando, por meio do uso de um humor mordaz e penetrante, o binômio presença/ausência negra na Europa contemporânea, em especial nas esferas da arte e da cultura. Na primeira parte de sua performance, que mistura a linguagem do stand-up à do show musical, ela, fazendo uso de maquiagem facial branca e de roupas e adereços que escondem sua pele negra, encarna no palco a apresentadora Bianca White, cujo discurso evidencia a condescendência que os brancos dedicam aos negros. Na segunda parte, Ntando Cele lida com estereótipos de mulheres negras e tenta descobrir como o público a vê. Haverá a possibilidade de as mulheres negras serem “apenas” artistas ou elas sempre irão carregar os fardos da raça e do gênero em qualquer coisa que façam?, é a pergunta que a performance propõe.
“Enquanto, com ares de princesa, Bianca White profere impropérios nas entrelinhas de sua aparente delicadeza e doçura” – afirma Daniel Toledo em “Na pele do outro”, crítica publicada no site da Mostra – “a voz de Ntando Cele passeia, no decorrer do espetáculo, por diferentes atmosferas. Entre tons que remetem à própria ancestralidade e ações silenciosas que muito nos dizem, a artista arrisca-se ainda em um pequeno concerto punk, quem sabe afrofuturista, no qual a aparente agressividade das palavras talvez nada tenha a ver com qualquer pulso de violência, mas, sim, com a urgência de fazer-se ouvir e reverberar sobre a pele e, sobretudo, sobre a consciência histórica e social do outro”.
Ao pedido de que a plateia feche os olhos em determinado momento da performance corresponde o convite para que ela os mantenha sempre bem abertos a partir do instante mesmo em que o trabalho se encerra.
Branco: o cheiro do lírio e do formol – Diálogo entre crítico e dramaturgo
Com texto de Alexandre Dal Farra e direção do próprio dramaturgo e de Janaina Leite, a mais recente criação do grupo Tablado de Arruar entrecruza o conceito de profanação de Giorgio Agamben com a imagem do caráter destrutivo de Walter Benjamin. A peça é uma experiência crua e violenta, que punge o nervo de uma mentalidade e de um comportamento enraizados em nossa vida social, não somente com o sentido de espicaçá-lo, mas ainda com a ideia de provocar-lhe um estímulo de tal ordem que o incite a expressar novas tensões. Texto e encenação procuram o tempo todo desativar os dispositivos retóricos e sentimentais do racismo para transformá-los “em meios puros” (Agamben), fazendo igualmente com que tais dispositivos se precipitem em “ruínas, por causa do caminho que passa através delas” (Benjamin). A negritude para o dramaturgo é uma questão oca, vazia, se não for devidamente compreendida pelo viés da alteridade que lhe é intrínseca: a branquitude. “Os negros sabem muito mais sobre racismo do que os brancos, simplesmente porque eles sentem isso na pele”, afirma o dramaturgo e diretor, “por isso a peça não busca tratar sobre racismo, mostrar o mecanismo do racismo, nem nada disso. Ela busca expor e olhar para o lugar do branco, para essa “branquitude” ou “branquidade” (existem alguns teóricos que já falam sobre isso há um tempo) como um lugar de privilégio”.
Alexandre Dal Farra é o escritor e dramaturgo das formas lacunares, da hesitação significante, da incompletude de significados – recursos esses dispostos a expressar a “forma disforme do todo”, segundo definição de Tales Ab’Sáber. A primeira das três camadas que a peça articula trata de uma família de classe média, sobre a qual paira uma atmosfera de mal disfarçada disfuncionalidade, formada por um menino, seu pai e sua tia, que vivem situações banais (muito próximas do insólito, a bem da verdade), um dia transformadas em uma ocorrência excepcional – ligada à parte exterior da casa em que vivem – que atinge os três. A segunda camada dá conta de radiografar o próprio processo de criação da peça, constituindo um exercício de metalinguagem, que se “desregula” em autocrítica. A terceira, uma espécie de experimentação cênica de crítica genética, recupera fragmentos de outros textos escritos ao longo do processo de criação do espetáculo. “A certa altura, ficou claro que a única forma de dar conta das contradições que o próprio gesto de criar uma peça sobre racismo envolvia, sendo branco, era incluir na peça a própria escrita dela e as dificuldades que ela envolveu”, declara Dal Farra.
Cada um dos planos disputa entre si o sentido do racismo, mas não o conhece por inteiro. O racismo em Branco é uma espécie de Odradek, o estranho ser kafkiano “extraordinariamente móvel e impossível de ser pego” cuja finalidade não é outra senão causar tribulações aos pais de família. Não à toa, a célula familiar é o centro do espetáculo, cuja mola dramática é asperamente desconstruída pela pressão que os outros dois planos exercem sobre ela, evidenciando a multiplicidade de vozes narrativas que fracassam todas juntas, pós-dramaticamente, no objetivo de se apropriar do discurso sobre o racismo como um consenso anônimo e indiscutível. Não há a exposição de mecanismos que compreendam o ajuizamento universalizante que os brancos fazem dos negros. Tampouco há o aliciamento destes para a causa da própria negritude. Simplesmente, abre-se a possibilidade de novos usos do teatro e da palavra proferida em cena. Em tempos de discussões histéricas sobre lugares de fala e apropriações culturais, não parece pouco razoável aquilo a que o espetáculo publicamente se propõe a dar plasticidade.
O regime de percepção a que o espectador é submetido durante a experiência diz respeito à subversão do teatro como lugar do primado da inteligência e do refinamento cultural. O incômodo é notório, seja pelas pequenas representações de violência que ocorrem de tempos em tempos (assumidamente teatrais, o que lhes intensifica o caráter desagradável), seja pelo grau de acentuado ritualismo com que as cenas pretensamente dramáticas se dão. Seja ainda pelos discursos um tanto quanto desnorteadores, que parecem apontar para o fato de que, enquanto o tempo da razão escorre diante de nós, o movimento do que é vivo – e que por isso mesmo ainda não tomou forma na vida social – segue seu curso, independentemente de nós. “Acho que esse é mesmo um movimento importante. Esse incômodo tem a ver com um pensamento sobre a arte como um lugar onde aspectos obscuros, difíceis, às vezes inomináveis são abordados. Não se trata de um teatro que aponta para um caminho positivo de superação, mas, sim, um teatro que pretende entrar em contato com as dificuldades e com o que é muitas vezes desconhecido, mas nos forma. Às vezes acho que a gente gostaria de se livrar daquilo que nos forma (de todo o horror que carregamos como herança – machismo, racismo, etc.), e de uma maneira mágica. Mas isso simplesmente não tem como acontecer. Então, a peça tem também esse olhar para a cena como um lugar onde é possível trazer para a luz alguns desses aspectos que nos formam, não para reafirmá-los, mas, sim, para olhar para eles. Olhar para essa nossa branquitude, para poder então tentar modificá-la. Nesse sentido é que acho importante não pensar o teatro como um lugar puramente afirmativo, em que tudo o que aparece em cena é lido sempre em termos de uma afirmação disso, como se fosse um padrão a ser seguido, ou algo que defendemos”.
A perspectiva da presença de um cadáver no meio de uma sala de velório, conforme postula o texto – presença esta que é peculiar justamente por indicar aquilo que não está mais –, explica a morbidez e a força sinistra que exalam de todo o espetáculo, cujo aroma está tão bem descrito em seu subtítulo. É preciso que o cheiro do lírio e do formol empesteie a fantasia que o branco há muito tempo produz sobre si mesmo e sobre o outro. Fantasia, nunca é demais lembrar, priva do mesmo étimo de fantasma. Depois da escravidão, o branco se tornou por demais civilizado para desejar a aniquilação do negro; mas tal empenho de civilidade não impede que a existência do negro o atormente. Branco: o cheiro do lírio e do formol é uma experiência que converte fantasia em fantasmagoria. “Acho que a ideia de fantasmagoria é muito importante, porque a peça também fala da incapacidade de incluir o outro a não ser como um fantasma. Essa ideia de delírio permeia a peça, novamente não como afirmação disso, mas, sim, como algo estrutural desse lugar do branco”, conclui o dramaturgo. Branco espicaça certa noção de humanismo. E terrifica o excesso de diz que diz nas prosas que, cotidianamente, nos são vendidas como verdades.
A missão em fragmentos: 12 cenas de descolonização em legítima defesa
Até 17 de maio;
terças e quartas, às 20h
Branco: o cheiro do lírio e do formol
7 de abril a 21 de maio;
sextas e sábados, às 21h;
domingos, às 20h