Mistério da Corrupção
Meu texto que saiu na última edição da Revista Cult
A tradição teológica e filosófica nunca conseguiu explicar o “mistério da iniquidade”, a existência do mal como potência do desejo e da ação humanas.
Ora, a corrupção é o mal do nosso tempo. Curiosamente, ela aparece como uma nova regra de conduta, uma contraditória “moral imoral”. Da governalidade aos atos cotidianos, o mundo da vida no qual ética e moral se cindiram há muito tempo transformou-se na sempre saqueável terra de ninguém.
Como toda moral, a corrupção é rígida. Daí a impossibilidade do seu combate por meios comuns, seja o direito, seja a polícia. Do contrário, meio mundo estaria na prisão. A mesma polícia que combate o narcotráfico nas favelas das grandes cidades poderia ocupar o Congresso e outros espaços do governo onde a corrupção é a regra.
Mas o problema é que a força da corrupção é a do costume, é a da “moral”, aquela mesma do malandro que age “na moral”, que é “cheio de moral”. Ela é muito mais forte do que a delicada reflexão ética que envolveria a autonomia de cada sujeito agente. E que só surgiria pela educação política que buscasse um pensamento reflexivo.
Pobre, mas honesto
O sistema da corrupção é composto de um jogo de forças do qual uma das mais importantes é a “força do sentido”. É ela que faz perguntar, por exemplo, “como é possível que um policial pobre se negue a aceitar dinheiro para agir ilegalmente?”
O simples fato de que essa pergunta seja colocada implica o pressuposto de que uma verdade ética tal como a honestidade foi transvalorada. Isso significa que foi também desvalorizada.
Se a conduta de praxe seria não apenas aceitar, mas exigir dinheiro em troca de uma ação qualquer na contramão do dever, é porque no sistema da corrupção o valor da honestidade, que garantiria ao sujeito a sua autonomia, foi substituído pela vantagem do dinheiro.
Mas não somente. Aquele que age na direção da lei como que age contra a moral caracterizada pelo “fazer como a grande maioria”, levando em conta que no âmbito da corrupção se entende que o que a maioria quer é “dinheiro”.
Verdade é que a ação em nome de um universal por si só caracteriza qualquer moral. É por meio dela que se faz o cálculo do “sentido” no qual, fora da vantagem que define a regra, o sujeito honesto se transfigura imediatamente em otário.
Se a moral é medida em dinheiro, não entregar-se a ele poderá parecer um luxo. Mas um contraditório luxo de pobre, já que a questão da honestidade não se coloca para os ricos, para quem tal valor parece de antemão assegurado.
Daí que jamais se louve nos noticiários a honestidade de alguém que não se enquadra no estereótipo do “pobre”. Honesto é sempre o pobre elevado a cidadão exótico. Na verdade, por meio desse gesto o pobre é colocado à prova pelo sistema. Afinal ele teria tudo para ser corrupto, ou seja, teria todo o motivo para sê-lo. Mas teria também todo o perdão?
O cidadão exótico – pobre e honesto – que deixa de agir na direção de uma vantagem pessoal como que estaria perdoado por antecipação ao agir imoralmente sendo pobre, mas não está. A frase de Brecht seria sua jurisprudência mais básica: “O que é roubar um banco comparado a fundar um?”.
Ora, sabemos que essa “moral imoral” tem sempre dois pesos e duas medidas, diferentes para ricos e pobres. No vão que as separa vem à tona a incompreensibilidade diante do mistério da honestidade. De categoria ética, ela desce ao posto de irrespondível problema metafísico.
Pois quem terá hoje a coragem de perguntar como alguém se torna o que é quando a subjetividade, a individualidade e a biografia já não valem nada e sentimos apenas o miasma que exala da vala comum das celebridades da qual o cidadão pode se salvar apenas alcançando o posto de um herói exótico, máscara do otário da vez?
(15) Comentários
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OI MARCIA,
MUITAS VEZES, SINTO-ME ASSIM: “USANDO” ALGUÉM QUANDO PEÇO AJUDA, SEJA AJUDA DE UM ESTRANHO, DE UM AMIGO, DA FAMÍLIA OU MESMO QUANDO PEÇO AJUDA DE ALGUÉM QUE ESTÁ SENDO PAGO – NÃO POR MIM – PARA AJUDAR… É UM TAL DE PRECISAR DE COISAS “DIFRENTES”, QUE FICO CONFUSA, POIS “USAR” ALGUÉM É IMORAL… E SE EU TIVESSE DINHEIRO PARA PAGAR, ENTÃO – EU NÃO “USARIA” ALGUÉM… JEITO HORRÍVEL DE SE PENSAR…
Não entendo como os políticos,que nada mais são do que administradores da coisa pública tornaram-se uma verdadeira casta pairando acima da res pública.Não está na hora de inventar uma política cinza,Marcia Tiburi?Que comece mudando este nome: políticos e substituindo-o pelo cinzento ‘síndicos’.Sem charme,sem pesquisa de opinão midiosa,sem propaganda.
MK, que bom revê-lo!!! beijos
Estou aqui!
A cada dia me convenço que a corrupção está na água! Não inodora, não insípida, e cada vez menos incolor…
Continuando.Ás vezes acho essas ‘categorias’ muito pomposas: o mal,a ética,o ethos,o pathos,o desejo,a estética..Que impedem-nos de ficar frente a frente com as menos charmosas ‘vergonha,alegria,miséria,idiotice,ignoráncia’ por exemplo.Seriam temas de uma filosofia cinza?
Isso é Brasil…
sem comentários…
uma melhor educação ajudaria, mas fazer o q.
“Uma melhor educação”. Estou de acordo. Mas lembrem que dentro desta moral estabelecida, professores (poucos) que ousam ir na contramão sofrem resistências de todos os lados.
Outro dia uma aluna veio feliz me mostrar um celular que achou na rua. Perguntei: “E a dona do celular, não ligou?”. E ela: “Ligou sim, mas eu não atendi e logo troquei o chip”. É uma menina doce, límpida, falou isso com toda a ingenuidade do mundo e sem nenhuma noção de que algo poderia estar errado.
Acabou devolvendo o celular, mais para me agradar do que por convicção. Foi a primeira vez que ouviu alguém dizer para devolver…
Assim estamos.
O DISCURSO DO POBRE, MAS HONESTO é muito judicioso para os pobres que às vezes, caí no erro do conformismo. Já na classe como dizia Marx, na classe média é muito fácil falar e dizer que pertence ao povo, e pior, dizer e afirmar que o “povo” não tem conhecimento, mas entretanto, eles nunca desejam ser honesto e sim, continuar promovendo o status quo de sua “classe” abastada, todavia, às vezes, não culta.
Lelê, este seu exemplo mostra como a corrupção virou algo como que “natural”. E é triste ver uma criança desde cedo caindo nisso. Que bom que vc estava lá. Pena que as pessoas em geral não estão nem aí.
Ser político não deveria ser uma profissão, isto é, eles não deveriam viver disso. Deveriam ser pessoas civis, com profissões diversas, mas que durante seu mandato tirassem uma licença apenas de sua real profissão, ganhando um salário justo para viver bem, nada de fortunas. Assim apenas quem quer administrar a sociedade por gostar de tal função entraria na política e ñ qualquer charlatão a fim de ganhar dinheiro fácil. Melhor, os políticos deveria ganhar tão mal quanto os professores, pois aí sim só teríamos políticos realmente apaixonados pelo povo e pelo ato de governar…Enfim, as coisas como estão favorecem a imoralidade e corrupção.
Concordo com vc, Daniele. Lutemos por isso. abs, Marcia
Obrigada Marcia! Estamos aí, sempre na luta…
A escola como espaço já confunde,e esses professores que desconstroem vorazmente os jovens,estarão ainda mais hierárquicos,porque eles são sublimes aos que estão no papel do aprendiz…
A ESCOLA DESPREPARA!
Tudo bom, Marcia?
Ainda estou vivo …risos… andando por aí, agora em fase muito feliz, retornando a viver na terra em que nasci, Ribeirão Preto – SP (eu estava em Brasília). Está sendo uma lua de mel diferente, mas tão boa quanto uma normal …risos…
Fiquei feliz que você tenha aberto um blog.
Gostei de sua definição, no artigo inicial, sobre as 3 estruturas, twitter, site e blog, do ponto de vista estrutural e de manutenção.
Essa sua volta ao blog, suponho …risos…, é um passo rumo a desistir do twitter, mas vi que vc ainda está feliz e ativa com o twitter, só que penso que mudará de idéia, com o tempo (não me odeie por dizer isto …risos…).
Eu vou ler, saboreando, seus artigos neste blog, o que significa que lerei aos poucos, mas quero comentar, pelo menos, o mais recente: Mistério da Corrupção.
A parte do artigo que mais me instiga está logo no primeiro parágrafo, sobre a qual comento.
Existe ser vivo, bom, ou mau e que não seja humano?
Há moral e ética em outra esfera viva que não seja a humana?
Os princípios elementares da vida, de qualquer vida, são se alimentar, se proteger e se reproduzir.
A corrupção, como uma face da inteligência e isenta das visões moral e ética, atende muito bem aos 3 princípios elementares da vida, no caso da vida humana, portanto se justifica plenamente.
Ela facilita ao ser humano se alimentar, se proteger e se reproduzir.
A ética e a moral são produtos não naturais, são produções humanas, não existem na natureza e são volúveis, instáveis no tempo e no espaço.
Beijos…