Entre o testemunho visual e textual da dor

Entre o testemunho visual e textual da dor
A romancista, poeta, diretora de cinema e dramaturga francesa Marguerite Duras (Foto: Reprodução)

 

Uma escritora membro da resistência francesa encontra-se para almoçar com um agente da Gestapo em um restaurante frequentado por colaboracionistas. O clima ao redor é de estranha prosperidade. Tudo se passa como se a guerra não existisse. A comida é farta, as roupas sofisticadas, todos parecem levianamente satisfeitos. Exceto o casal Marguerite e Rabier, que entretém um estranho diálogo. Ela diz que a guerra acabou, que a Alemanha nazista cairá em breve e que Paris estará livre. Ele afirma convicto que a Alemanha não pode ser derrotada. Uma mulher ao lado conta que bateram violentamente em sua porta na noite anterior e que sente medo.

A cena é do filme Memórias da dor, recente adaptação de Emmanuel Finkiel para o cinema do livro A dor, de Marguerite Duras, publicado em 1985 pelas Edições P.O.L. Ela penetra no universo das elites colaboracionistas que aderem a um regime que garante a perpetuidade de seu conforto e privilégio, fazendo vistas grossas para as atrocidades praticadas e confiando nas forças policiais para a garantia desse status sob constante ameaça.

Outra elite é retratada, igualmente insensível à miséria humana: a elite gaulista que a partir da liberação francesa assume um discurso vitorioso e advoga em prol de uma verdade pública dominante que atropela por completo o sofrimento daqueles que ainda aguardam os deportados retornarem dos campos de concentração. O que essas classes possuem em comum é a completa alienação em relação à dor.

O filme, que é baseado nos dois primeiros textos do livro de Marguerite Duras – “A dor” e “O Sr. X”, aqui chamado Pierre Rabier – propõe o deslocamento da perspectiva de uma narrativa heroica monumental para a perspectiva do sofrimento de uma mulher que espera, dia após dia, a volta de seu marido dos campos de concentração. Perspectiva esta que poderia ser individual, extremamente particular, mas que ao mesmo tempo reflete o sofrimento das mulheres de todos os tempos que esperam a volta de seus maridos e filhos da guerra, ou mesmo o sofrimento daqueles que não tornam-se personagens da História, com “H” maiúsculo, mas cujas experiências são ignoradas pelas narrativas dominantes, institucionais.
Embora possa imaginar a dificuldade de um diretor que se propõe a adaptar uma obra de Marguerite Duras para o cinema, principalmente considerando que a própria autora possui uma obra cinematográfica bastante peculiar, muito diferente das adaptações de seus livros, Emmanuel Finkiel saiu-se bem.

A adaptação de uma obra precisa necessariamente traduzi-la para outra linguagem. E como toda tradução, constitui uma obra a parte. Tomando parte nessa discussão, Duras se posiciona no sentido de que o essencial seria essencial preservar o tom da obra original. Em grande medida o filme cumpre essa tarefa, retratando, em sua primeira parte, a tensão e expectativa que caracteriza a rotina de encontros com o inimigo, o gestapista Rabier, e, em sua segunda parte, o tédio da guerra e o cotidiano da espera, um presente perpétuo que perturba os sentidos o corpo.

O livro A dor é composto de seis textos que tratam principalmente da experiência de Duras durante a Segunda Guerra Mundial, em especial o período de ocupação nazista na França e logo após a liberação, conjugando drama histórico e sofrimento pessoal. Os textos teriam vindo a público quase que acidentalmente quando Duras encontrou, nos armários azuis de sua casa em Neauphle-le-Château, os cadernos que contém as primeiras versões de alguns textos redigidos por ela à época e posteriormente.

Trata-se de uma obra de teor testemunhal, o que não significa que se propõe a contar a verdade factual dos eventos da vida de Duras na época da Guerra. Nutrimos essa ilusão nos dois primeiros textos da obra, que se esforçam em reconstituir as datas, lugares e eventos, mas aos poucos percebemos que o realismo dos textos é apenas uma primeira camada de verossimilhança, que cede lugar em níveis mais profundos ao sentido do vivido. Sentido este que não se traduz em um conceito ou em uma moral da história, mas que é decifrado pelo tecido mesmo da escritura e pela linguagem inventada para trazer à luz as marcas invisíveis da dor. O livro habita, portanto, as articulações entre o testemunho e o literário, e todos os seus textos podem ser considerados em maior ou menor medida ficcionais.

O filme Memórias da dor baseia-se justamente nos dois primeiros textos do livro, deixando de lado os demais, que vão adquirindo uma caráter ficcional cada vez mais explícito. Esses textos, escritos em diferentes momentos da vida de Duras, são mesclados em uma única obra cinematográfica que relata os eventos do livro de forma linear, subvertendo a (des)ordem que lhes impõe a escritora, principalmente em “O senhor X”., que relata de maneira desordenada o relacionamento entre a personagem Marguerite e Rabier.

Finkiel vai além do limite estabelecido pela escritora em seu pacto de veridicção, atribuindo aos personagens seus nomes reais, sem deslocamento ou disfarce. Robert, marido da narradora Marguerite, deportado aos campos de concentração, recobra no filme seu nome real: Robert Antelme. Talvez o diretor tenha levado ao pé da letra as advertências de Duras de que não teria falseado em A dor, de que diante daqueles textos a literatura “provocaria vergonha”. E de fato, não houve falseamento, mas o que se testemunha não são meramente os últimos dias da ocupação de Paris, sua Liberação, o retorno dos deportados e a normalização política, mas também uma dor que não se deixa observar diretamente e que não abandona jamais a autora, tornando-se “a coisa mais importante de sua vida”.

É sabido que Duras não teria gostado da adaptação de seu romance premiado ao cinema, O amante, julgando ser aquela demasiado explícita. Acontece que, de fato, toda adaptação de obras de Duras desafia a própria produção cinematográfica da autora que se vê diante do dilema dos limites da representação cinematográfica e acaba por ceder primazia ao texto que, em vez de fechar a representação em uma imagem, tem a virtude de abrir caminhos infinitos na ambiguidade daquilo que diz e do que não diz. E Memórias da dor inegavelmente se confronta com esse desafio. O filme se vale amplamente da voz off da narradora, emprestando um traço característico do cinema de Duras e obedece ao realismo que caracteriza as paisagens de A dor. Simultaneamente o filme traduz elementos textuais da narrativa em linguagem cinematográfica, como a oscilação entre a primeira e terceira pessoa da narrativa, como se a narradora olhasse para si própria a partir de fora, duplicando-se.

Um dos elementos captados muito bem por Finkiel é a solidão característica da dominação totalitária, que, segundo Hannah Arendt, prepara suas vítimas e seus carrascos. Os personagens aparecem em uma solidão profunda, que não se confunde com o isolamento político ou com o estar-só necessário ao pensamento e à introspecção, está relacionada ao desarraigamento – que significa não ter no mundo um lugar reconhecido e garantido pelos outros – e à superfluidade – que significa não pertencer ao mundo de forma alguma –, sendo que cada personagem está enclausurado em sua própria particularidade de dados sensoriais, sem a regulação do senso comum, que regula e controla os outros sentidos. A solidão da narradora conduz à loucura, e o lugar do pensamento é assumido por cálculos e raciocínios compulsivos. As figuras mais solitárias do filme são as mulheres que aguardam seus maridos e filhos voltarem para casa e Rabier, o gestapista.

Finalmente, é preciso reconhecer o extremo respeito com que Finkiel traduziu A dor para o cinema. Embora os textos tenham como característica marcante o estilo visual e o presentismo, mostrando com detalhamento o retorno de Robert dos campos de concentração e sua recuperação, o filme compreende que esse estilo não pode ser adotada pelo cinema sob pena de ferir a ética da representação do horror. Friedländer expõe seu receio de que o historiador incorra no obsceno, devendo este evitar a visualização e a descrição, que é justamente o estilo característico dos primeiros romances de Duras, que reaparece na década de 1980, inclusive em A dor. No entanto, a literatura, por mais visual que seja, sempre recorrerá a uma imagem retórica, isto é, que demanda esforço imaginativo e engajamento por parte do leitor para se criar uma imagem mental, ao passo que a imagem mostrada pode chegar ao receptor mesmo de maneira involuntária, e por essa razão seria inadequada para o cinema, demasiadamente obscena.

A impossibilidade da representação visual está relacionada à impossibilidade de compreender o horror, tendo em vista que a tradição ocidental, especialmente a metafísica clássica, adota uma concepção de verdade apoiada na visão como modelo para os demais sentidos, ou na metáfora da visão para a definição da verdade. Aquilo que se recusa absolutamente a se transformar em um objeto visível, tomando seu lugar entre as aparências do mundo, é colocado no domínio do inefável, do incompreensível. Quando se nega ao horror a possibilidade de representação por imagens, está se negando a possibilidade de sua compreensão, como se o pensamento e as artes devessem encontrar outros caminhos. O embaçamento da imagem de Robert na cena de seu retorno dos campos de concentração revela uma visão respeitosa daquilo que embora visível e autoevidente não pode ser devastado e dominado pelo conhecimento, para que, por seu turno, possa ser melhor compreendido.

LAURA D. M. MASCARO é doutora em língua e literatura francesa

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