Memento Mori
Welington Andrade
“O homem é nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada.”
(Blaise Pascal)
Originária da forma grega triptychos (“dobrado em três”), a palavra tríptico em português é comumente usada para designar uma obra ou objeto que consta de três partes. Mas pode também significar um trabalho de pintura, desenho ou escultura, constituído de um painel central e duas meias-portas laterais capazes de se fecharem sobre ele, recobrindo-o completamente.
O mais recente espetáculo do diretor Roberto Alvim, Tríptico Samuel Beckett, baseia-se nas três narrativas curtas que o escritor irlandês publicou na última década de sua vida: Companhia (1980), Mal visto, mal dito (1981) e Pra frente o pior (1983). Entretanto, muito além de denotar somente a transposição para o palco da trilogia final de Beckett – que muitos críticos veem como simétrica à trilogia composta pelos romances Molloy (1951), Malone morre (1951) e O inominável (1953) –, a hierática criação de Alvim parece também ecoar o outro sentido do vocábulo com o qual foi batizada.
O projeto dramatúrgico uniu os três textos ásperos e esquivos de Beckett em torno da figura de uma mulher flagrada em diferentes idades de sua vida (infância, maturidade e velhice) – recurso que facilita um pouco a compreensão do espectador em razão de lhe oferecer uma espécie de ancoragem de sentido confortável: trata-se, afinal, da apresentação da trajetória de uma vida, mola dramática que sustenta boa parte da ficção literária, teatral, cinematográfica… Mas tal facilitação é apenas aparente, porque esse mesmo espectador – contrariado em seu horizonte de expectativa – é lançado sem anteparo algum para dentro da voragem de uma rede de discursos bastante enigmáticos, tensionados a tal ponto que só lhe resta uma opção: oscilar entre a intranquilidade e a perplexidade.
Os três textos se desdobram e se interpenetram. O narrador de Pra frente o pior enuncia em ritmo acelerado um esboço ficcional mínimo cujos indícios diluídos por uma sintaxe fragmentada dizem respeito a um corpo que fraqueja, às silhuetas de um homem e de uma criança e à imagem de um crânio que está consciente de tudo. A mesma consciência exercita a voz narrativa de Companhia, cindida entre a necessidade de problematizar a enunciação de um sujeito-objeto complexo e a urgência de rememorar fatos esmaecidos pelo tempo, como, por exemplo, um mergulho no mar que uma criança dá incentivada pelo pai. Um pouco menos impalpável é o discurso da narradora de Mal visto, mal dito, uma velha mulher consciente da tarefa de morrer cujas palavras procuram perceber ora a choupana em que ela mora, ora o “manicômio do crânio” em que sua lucidez se instalou.
Roberto Alvim consegue extrair dessa prosa fugidia e misteriosa uma potencialidade essencialmente dramática que se instaura em cena por duas vias. Primeiramente, o diretor vislumbrou a estrutura disposta em tríptico dos textos e organizou o espetáculo em torno dela. As vozes laterais (imagem reforçada pela posição que as atrizes ocupam no palco) de Pra frente o pior e Companhia começam o jogo da enunciação de modo autônomo, mas acabam por se fechar sobre a voz da velha mulher, levando os discursos que veiculam a “recobrirem”, assim, o discurso final da anciã. E é nessa plataforma lírico-existencial tripartite que o espectador há de cunhar também as marcas de sua própria experiência diante da vida e da morte, fronteira por onde o espetáculo o convida o tempo todo a transitar.
Em segundo lugar, Alvim conferiu ao caos da prosa beckettiana o estatuto de um cosmos cênico, no qual habitam três corpos vivos e um esqueleto, banhados de luz e sombra, envoltos em voz e silêncio. Assim, se cada leitor, ao folhear as páginas dessas curtas narrativas, pouco a pouco vai se familiarizando com uma “hermenêutica da desconfiança” (segundo a feliz expressão do professor Fábio de Souza Andrade, grande especialista em Beckett no Brasil), podemos dizer que, dentro da ordenação da sala de espetáculo, cada espectador é convidado a exercitar o papel de um exegeta da incerteza.
Aliás, para quem tiver interesse em conhecer mais a fundo as principais linhas de força presentes na prosa tardia do escritor irlandês, recomenda-se a leitura dos dois prefácios que Fábio de Souza Andrade, da Universidade de São Paulo, escreveu, respectivamente, para as edições de Companhia e outros textos (Globo) e O despovoador; Mal visto, mal dito (Martins Fontes). Em ambos os ensaios, o leitor encontrará um sólido conjunto de informações e argumentos que procuram tornar Samuel Beckett menos inexpugnável (vale destacar que, embora bastante celebrada, a modernidade do autor parece ainda hoje muito pouco compreendida, de fato). Para Andrade, “a conversão em linguagem da voz interior que inventa a si própria, mesclando-se aos ‘rags and bones’, os restos da experiência, é o assunto e a matriz da forma estética. Estamos no ‘manicômio do crânio’, o ‘começo de tudo’, e a tarefa é a de buscar, entre a desistência e a resistência do narrador, novas estratégias para tornar sensíveis, palpáveis as opacidades e transparências da fantasia imaginativa em movimento. Nada mais distante da psicologia do romance intimista tradicional, racionalização da consciência profunda ou sondagem dos abismos da inconsciência, ou até mesmo do fluxo de consciência, estratégia modernista para representar de modo poroso e comunicante o mundo interior e a realidade exterior”.
Tríptico Samuel Beckett convida à fruição das sinuosidades da prosa do autor como uma experiência essencialmente sensorial, empreitada para a qual o trio de atrizes do espetáculo contribui de modo muito especial. Ao entrar no pequeno teatro do Centro Cultural Banco do Brasil e se sentar em sua poltrona, o público se depara com as três intérpretes já ocupando, imóveis, seus lugares no palco: Nathalia Timberg, ao centro; Paula Spinelli, à esquerda; Juliana Galdino, à direita. E, pelos sessenta minutos seguintes, o espectador que estiver disposto a um encontro acerbo, mas pulsante, com essas atrizes será lembrado por elas de que é preciso estar de olhos bem abertos, apesar da penumbra que envolve todo o ambiente, e de ouvidos bem atentos, embora sejam muitas as “despalavras” com as quais terá de lidar.
Misturando os registros lírico e dramático, cada atriz a seu modo explora os recursos de uma fascinante teatralidade, calcados em economia e contenção, embora às vezes ocorram no palco pequenas explosões sob controle. Marcante é a abertura do espetáculo a cargo de Juliana Galdino, atriz cuja voz é uma performance em si mesma. A intensidade – não somente técnica como também emocional – que ela imprime à enunciação de Pra frente o pior está a serviço da experiência do impasse; eis-nos, pois, adentrando sem amarras o universo do autor de Esperando Godot. Paula Spinelli transforma a hesitante voz de Companhia em uma figura espectral, uma espécie de autômato soturno, expressionista, cuja frágil noção de identidade está ligada à diluição do passado. Já Nathalia Timberg ilumina com sua magnética presença a personagem da velha mulher que “sente raiva do princípio de toda vida”, explorando as diversas zonas de expressividade de uma voz rascante, assimétrica nos afetos que comunica, porque débil e imperiosa ao mesmo tempo. Débil como seu corpo prostrado no leito; imperiosa como Vênus, que ela vê se levantar uma vez mais. Oriundas de escolas tão diferentes, as três atrizes constroem, com resultados muito coesos, uma atmosfera cênica inquietante, lançando-se com ousadia e invenção à tarefa de encarnarem essas narradoras em conflito com o que narram, solitárias locutoras que – vestidas prosaicamente com roupas esportivas – têm por únicas companhias a trivialidade da imagem de um esqueleto humano e a coloquialidade da linguagem.
Austero em sua moldura, fervilhante no que põe em tela, Tríptico Samuel Beckett é uma experiência cênica que não faz concessões, tampouco oferece ao espectador imagens, sensações ou sentidos conciliatórios. Se fica algum entendimento quando o espetáculo termina, ele aponta para o fato de que o homem é um moto-perpétuo narrativo que enuncia continuamente suas fragilidades diante da vida e da morte. Malogrando constantemente, mas sem ceder aos apelos da autocomiseração. Pois afinal, para Beckett, é preciso falhar de novo e anunciar despudoradamente o auspicioso ato de falhar melhor.
Tríptico Samuel Beckett
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil – R. Álvares Penteado, 112
Quando: até 14 de abril – segundas e sábados às 20h, domingos às 19h
Quanto: R$10,00
Info.: (11) 3113-3651
welingtonandrade@revistacult.com.br