Melancolia
Para a aula de sábado (10/08/2013) no Espaço Cult
Tristeza. Escuridão e Silêncio. Morte e Luto. Dor de viver. Ou a sensação de um vazio instalado no imo de toda a existência. Vazio, a ser dito de vários modos, além do corpo ou vindo do corpo que se pensa morto e, do fundo de sua inércia calada, abre-se inteiro para devorar o pensamento. Ou, ao contrário, um vazio que preenche o pensamento, fazendo-se cheio e pleno, denso e absoluto. O próprio corpo é o vazio a sustentar-se sobre um terreno arenoso e movediço de incógnita.
O vazio é o tempo a circundar o que existe dando-lhe limites, abrindo o sentido para a finitude, nome usado para amenizar a morte. Quanto mais se olha para o abismo, mais se escancaram os dentes de aço nas gengivas purpúreas de luto, mais se abre o alvéolo da morte em garganta fétida, disposta à devoração. No esforço de escapar ao oco, as cordas tíbias da abstração enovelam os membros afoitos, sangram o ser pensante que se descobre a si nascido do fundo fosco do lugar nenhum, sendo o próprio nada do qual tenta escapar. Ali está ele, a um tempo ninguém e qualquer um, estilhaçado em sua dor, pendurado ao vão do sentido; as cordas que lhe atavam os membros lhe servem o único chão. Funâmbulo, ele segue sabendo desde o passado o próprio destino. A fundura desconhecida não promete chão nem apavora os olhos lassos. Tudo é pálpebra: cortina de veludo negro.
Trabalho de Ron Mueck
Do fundo do escuro vivido, uma tarde infinita depõe a frouxidão do dia em que nenhuma luz – nem nesga, nem fio – permite ver além. O filósofo pensa e pensa, reflete e raciocina, como um cão que ao morder a própria cauda foge de si, tentando, num gesto desesperado, salvar-se. Mas o melancólico, apesar do arame farpado que ata seus membros ao chão, embora caminhe sobre farpas, ama sua dor. É de um ferimento que ele vive como quem bebe o sangue da vida abrindo a própria veia. E, apesar do cansaço que a vida – trâmites e passatempos – lhe traz, fazendo-o carregar baldes de cimento fresco com que selará a borda do próprio túmulo, ele segue procurando na ação o gesto que o lance para fora do todo conhecido, para além de si. Procura o que lhe possa contrariar a certeza, a posse de uma verdade experimentada como morte e morte. Morto está o eu. Mas é preciso negar o eu, já morto, pois só assim a morte da morte enviará esse sobrevivente do abismo à necessária crença no espelho. E o espelho sempre será um outro. É nessa crença e na ilusão da representação – busca infinda de um reconhecimento invisível – que o melancólico respira o vácuo em tudo o que o cerca e que lhe vem habitar.
A única catapulta que conhece é o saber que, por horas o abandona para dar certeza de que não haverá um outro mundo possível. Saber sempre adiado que o livrará do útero mortífero do eu, de ser quem é e não outro. A certeza extrema do eu se lhe mostra ilusão, sendo o nome da ferida aberta desde sempre, chaga ancestral da autoconsciência. Inítul. Oco da certeza, escuro do qual é preciso desviar com a lanterna sempre precária do conhecimento. O eu é o único colo que até então conheceu, já o percebeu putrefato, verme sob a terra. Há, para o afetado pelo mal do pensar, que se fazer sua autópsia e, quiçá, eleger as partes sobradas para uma lição de anatomia.
Interior – W. Hammershoi
O que o melancólico busca saber é o próprio saber, a decifração do mistério de existir e, mais que descobrir a coisa-em-si, a verdade objetiva das coisas concretas que também lhe aflige e desespera, o que lhe interessa é saber o como saber, desvendar o movimento que ata o sujeito ao objeto, o que define os laços entre o buscado e aquele que busca. Todavia, não é possível definir se a melancolia provoca a busca pelo saber ou se a busca pelo saber provoca a melancolia. A história do saber e do conhecimento é concomitante à história da dor de existir.
Tudo, de qualquer modo, é a tentativa de construir a ponte por sobre a escuridão do abismo, fazer-se voar no único vôo possível, rasante sobre a cova, de alcançar a luz do sol e sua promessa, ainda que nesga, de aurora. Pensar e pensar, não saber, buscar saber: o melancólico vive o pensamento como hábito, a reflexão como mania, a solidão como método. Por isso, ele pensa e, logo, existe.
Júlia Kristeva disse em seu livro Sol Negro (Sol Negro, depressão e melancolia. Rocco, 1989) que aquele que escreve sobre a melancolia apenas o faz por falar de dentro dela. Muitos melancólicos escreveram e escrevem livros. Todos que leram a psicanalista francesa facilmente se identificam com a oportunidade de trazer à linguagem a matéria contraditória da morte em vida, de dar um nome mais adequado ao abismo faminto ao qual provisoriamente damos o nome de eu. Melancolia é, neste ponto, mais que uma doença ou perturbação do espírito, o nome da experiência do eu como abismo e que obriga ao seu enunciado.
Melancolia é a palavra vinda do grego que significa bile negra ou atra bilis((melaina kolh)). Melaina kole é o humor negro que na doutrina humoralista de Alcmeón (400 a. C.) relacionava a teoria dos 4 elementos da natureza dos pitagóricos e confirmada em Empédocles, à teoria das divisões do tempo em estações e idades, aos humores que regem o corpo humano. A bile negra forma o humor melancólico assim como o sangue ligado ao ar, rege a primavera e a infância, a bile branca ligada ao fogo, rege o verão e a adolescência, e a fleuma ligada à água, rege o inverno e a velhice, determinando os demais temperamentos sangüíneo, colérico e fleumático. O desequilíbrio entre os humores é considerado patológico. Na preponderância da bile negra no corpo surge o temperamento melancólico. Tanto Hipócrates, quanto Galeno na antiguidade clássica e Paracelso no final da Idade Média compreenderão o fenômeno segundo a ampla doutrina da correspondência entre macrocosmos e microcosmos. O melancólico vive como indivíduo na dissonância entre os mundos, inadequado e incapaz de se adaptar ao todo. Do ponto de vista filosófico, a melancolia é, já nos primórdios da reflexão sobre ela, algo como o desajuste do ser. Tanto a tragédia quanto a filosofia relacionam a melancolia à noção de mania e ao furor. O negro da bile é associado ao universo noturno e o melancólico relacionado ao louco e ao lobisomem, seres que ultrapassaram o limiar da cultura retornando à barbárie de onde um dia o homem foi salvo pela razão. A melancolia é, desde seu início, ligada ao obscuro, ao que, no homem, não é dito, ao que não se declara nem esclarece, a segredos e escuros do corpo.
E, no corpo, ao fígado. A função anatômica do fígado na melancolia oferece-nos uma pérola hermenêutica: o fígado – lembremos – está na origem do conhecimento, no mito do roubo do fogo por Prometeu. O fígado é o órgão devorado pelo abutre do qual o titã não consegue fugir por estar acorrentado a um abismo. O mito de Prometeu é um mito da melancolia: o pagamento pelo saber é a corrosão eterna do próprio corpo guardado num precipício inescapável por um animal de rapina. No outro extremo da história, já no século XX, veremos Kafka (O Abutre. Narrativas do Espólio. Cia das Letras, 2002) escrever um conto no qual um abutre rói os pés de um homem até sorrateiramente invadir-lhe o sangue e preencher todas as suas margens. O abutre é o símbolo do conhecimento que devora o corpo e dá alimento ao pensar. O conhecimento vem ocupar o lugar que o ser deixou vazio.
O melancólico veste os farrapos de sua identidade desconhecida pronto a aceitar a continuação da vida: sustentado novamente e para sempre pelo cogito – penso, logo existo – fundamento crasso da filosofia de Descartes. Um pouco anterior a ele é a famosa gravura de Dürer, Melencolia I, que apresenta de forma perfeita os elementos constitutivos e recorrentes na tradição iconográfica da melancolia. Na mais famosa da obras sobre a melancolia, a gravura de Dürer, não haverá abutre, mas um morcego que voa no horizonte crepuscular. A imagem mostra um anjo adulto segurando o rosto sombreado com a mão, posicionando-se entre o tédio e a preguiça. Tal postura, comum nas imagens tradicionais da melancolia, também remete à posição daquele que pensa. O tédio e a preguiça podem, inclusive, ser conseqüências do hábito exaustivo e inútil do pensar. Ali o pensar está, ele mesmo morto, pois não leva à ação, o que se mostra pelos objetos de uso prático espalhados com desleixo ao redor do obscuro ser. O anjo de cabelos longos se parece a uma mulher, o que inscreve ainda mais a gravura de Dürer na linha da tradição onde a melancolia é representada como uma dama velha e triste, sentada sobre uma pedra muitas vezes com os braços caídos, noutras segurando a cabeça para que não sucumba e permitindo um olhar que se dirige à coisa nenhuma. A anatomia feminina, marcada pela presença de um grande buraco chamado útero, dá uma pista ao tema. Mas o vazio nele ultrapassa o corpo e vai situar-se no exílio de si: melancólico é aquele que se perdeu do território do olhar. Ninguém olha para ele, por isso ele é incapaz de olhar de fato para alguém. Sobrevive, então, ao lado de outro anjo – também melancólico – sempre menor que ele, pois não pode vê-lo muito bem, alguém que ele julga como um fantasma necessário que lhe dará também um amor nunca mais que fantasmático, mas sem o qual ele não poderá se incrustar à vida. Tal é o papel do pequeno anjo – Eros sem flecha – posicionado ao centro da imagem que representa o corpo estranho, a vida estranha ao lado da qual o melancólico busca sobreviver, como quem procura na identidade alheia, a crença em algo ainda vivo.
A melancolia também é uma categoria política. Em termos políticos é possível dizer que ela compreende o sentimento de tensão entre indivíduo e sociedade, entre a condição particular do sujeito humano e a dor de viver no seio de um mundo pertencente a todos e no qual o espaço reservado ao melancólico – segundo ele mesmo – não passa de rasa cova. A antiga desarmonia entre os humores, corolário do desajuste entre macro e microcosmos, é, em termos políticos, o abandono do indivíduo lançado para fora da ordem. A melancolia passa a designar o território do outro, do alien, do estranho. O mesmo lugar que ela ocupará, fazendo par com a astrologia, frente ao campo filosófico a se delinear como território do pensamento que baniu temas de algum modo representativos de ameaça à hegemonia da razão. Banir a melancolia define o gesto filosófico da purificação da razão: amputa-se da filosofia o seu outro abandonado como inimigo. As origens da filosofia estão intimamente ligadas à melancolia, mas esta sempre representou a entrada em cena do outro, do que advém do corpo e, portanto, do empírico, da matéria, do irracional em ameaça soberana contra a consciência e a racionalidade. A filosofia, nesse sentido, seria a tentativa de evitar o encontro com o abutre prometéico. Seguir pensando porque escapo do que penso pelo pensamento.