entrevista | O fim do capital na era da informação

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entrevista | O fim do capital na era da informação
(Foto: Z. Walsh)

 

Autora de O capital está morto (sobinfluencia e Editora Funilaria, 2022), a escritora australiana McKenzie Wark, 62, fala à Cult sobre pensar a realidade para além das ferramentas teóricas de Marx, na tentativa de apreender uma economia política que se modifica com a sociedade em rede. Radicada em Nova York desde os anos 1980, Wark é professora da New School e autora de livros como Reverse Cowgirl (2020), autoficção que mistura a experiência de transição de gênero, iniciada em 2017, à forma da escrita e às possibilidades de delinear uma identidade.

Nesta conversa, ela também pondera sobre cultura trans e as relações para além do enfoque dialético e fala sobre práticas de organização da vida em um mundo no qual os antigos sonhos libertários perderam espaço: “Essa é a questão da cultura trans, estamos em todos os lugares, mas sempre de formas diferentes”.

Sua análise lembra as ideias de Deleuze e Guattari acerca do desenvolvimento do capital industrial em um novo socius desterritorializado. É possível pensar que o momento pós-capital que você delineia se aproxima das ideias de Deleuze e Guattari?
Sim, essa foi, sem dúvida, uma de minhas inspirações. Li O anti-Édipo, que vai impressionantemente em uma nova direção, e “A sociedade de controle”, que é apenas um ensaio ocasional, mas também foi útil. Há coisas às quais talvez eu resista agora em sua estrutura conceitual mais ampla. Mas, como muitas pessoas vêm dizendo há tempos, talvez algo esteja diferente. Talvez haja uma mutação na forma de produção de mercadorias. Outras versões influentes disso, nos anos 1970 e 1980, incluem Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard. Foi como se todas essas pessoas tivessem vivido o fracasso do stalinismo e da revolução de 68, e todas estivessem buscando uma análise diferente, e uma das coisas que me ocorreram foi que talvez o próprio objeto tenha mudado. E se ele não for mais nem mesmo o capitalismo? É algo pior, o que significa que as fantasias de um bom futuro pós-capitalista e pós-industrial não chegaram até nós. E talvez o que deva ser pensado, como em camadas, é que a produção capitalista ainda existe, assim como o tipo de economia de commodities entre proprietários e camponeses também existe. Mas e se houver uma espécie de forma adicional de exploração e opressão que agora também se subordina às anteriores?

E para pensar isso, em seu livro O capital está morto, você parece fazer uma espécie de arqueologia do marxismo, recorrendo às mais diferentes vertentes do pensamento marxista do Ocidente ao Oriente.
Não sei quanto ao mundo português, mas no mundo anglófono acabamos tendo uma ideia muito limitada do que era a literatura marxista e ela começa a se tornar um tanto acadêmica. Passa a se interessar mais por uma espécie de releitura escolástica de Marx do que por uma análise dos desenvolvimentos contemporâneos da vida mercantilizada. Portanto, eu estava empenhada em saber quem tinha uma prática interessante, quem era um teórico e praticante de algum tipo de vida crítica, intelectual e criativa marxista. Tive esse interesse por um tempo, afinal, precisamos ler pessoas diferentes para entender como chegamos até aqui, e a Escola de Frankfurt não é suficiente para isso. Sabe de uma coisa? Pasolini fazia cinema ao mesmo tempo que tentava pensar sobre como o tipo de economia da informação se transformava e criava algo que ele chamou de neocapitalismo, já na década de 1960. E se nós, que tentávamos pensar isso em termos de classe, pensássemos que tipo de estética criativa existia nos anos 1960, cuja prática envolvia a criação não apenas da situação ou a cocriação de situações internacionais? E se pensássemos no trabalho de Angela Davis sobre o que era o blues? E por que uma mulher negra estava criando isso, essa literatura em sua realidade secundária, na forma de gravação nos anos 1920? Como isso capturou um tipo de industrialização, urbanização e um conjunto de lutas em torno de raça, classe e gênero, tudo ao mesmo tempo? Então, vamos dar uma olhada em alguns outros exemplos, vamos parar de repetir as mesmas coisas e procurar quem realmente pensa em mutações na forma de mercadoria em tempo real.

Ainda considerando os pós-estruturalistas, quais são suas filiações teóricas? Em que medida você dialoga com outras autoras contemporâneas, como Donna Haraway e Anna Tsing, que também pensam em perspectivas a partir de um mundo já em ruínas?
Donna Haraway foi uma grande influência para mim. Li seu Manifesto ciborgue quase em sua primeira publicação, em uma revista chamada Socialist Reviewer. E já era uma espécie de pensamento muito criativo. É um texto famoso pela imagem do ciborgue, mas fala também sobre o circuito integrado. Sobre como as mulheres não brancas estavam sendo empregadas no tipo de negócio de fabricação de chips na Califórnia antes de as fábricas serem terceirizadas para outros lugares, toda essa economia começou lá, então é uma espécie de pensamento sobre trabalho e gênero, e a esfera doméstica, e uma mutação evolutiva na forma das técnicas. Sim, Haraway foi muito importante para mim. Depois, voltei a ler o trabalho dela para pensar sobre as ciências como formas de prática que geram certos tipos de conhecimento, que têm certos limites, como todos os tipos de conhecimento têm, para ir em direção a certa relação de camaradagem entre a teoria e a prática da produção de conhecimento, porque, para mim, esta é a maior abordagem para o problema da criação do conhecimento: não fingir que temos uma grande teoria de “ah, se ao menos você fosse um materialista dialético, então você teria a teoria correta de como o conhecimento deveria ser produzido”. O que efetivamente precisamos é de uma prática para pensar como as formas de criação do conhecimento podem ser coordenadas fora da coerção ou do mercado.

A ideia de ciborgue, de Donna Haraway, que suspende a separação clássica entre natureza e cultura, também parece influenciar seu trabalho.
Muitas coisas ruins acontecem quando você tenta dizer que uma coisa é natural, e outra, não. Como transexual, percebo isso o tempo todo, como se meu corpo fosse excepcionalmente carente de natureza. Mas nenhum corpo humano é natural, somos todos sustentados por uma técnica ou outra. Sabe, é do ser humano estar enredado em técnicas, e isso faz parte da história da nossa espécie desde o início. A mão e a ferramenta estão juntas. Então, como pensar a natureza, a cultura, ou como pensar as técnicas no social, como pensar além dessa fronteira um tanto perversa, já que o que quer que pensemos ser a natureza em qualquer situação é um artefato das técnicas que produzem uma imagem dela? Portanto, a ideia central em muitos de meus trabalhos é seguir a prática, ou seja, qual é a prática pela qual algo é conhecido? Qual é a prática pela qual uma forma de poder passa a existir? Qual é a prática pela qual uma forma de resistência a esse poder passa a existir? Portanto, sempre segui a prática e percebi como ela faz o que faz. E uma das coisas que ela faz é criar a imagem da natureza como o outro, mas é a conexão desse outro por meio da prática com o que não é a natureza e com o artifício que deve ser rastreada.

A “cultura vetorial” parece guardar íntima relação com a ideia contemporânea de indivíduo e suas demandas específicas de identidade e visibilidade. Qual a relação entre o indivíduo reduzido à mercadoria e à informação e esse indivíduo que, cada vez mais, se visibiliza e se afirma?
Se o capitalismo era a exploração do trabalho, o que chamo de vetorialismo adiciona a exploração do não trabalho. Como explorar todos os aspectos do ser humano e como ele é produzido, sem nem mesmo pagar por isso, o tempo todo? Como explorar o não trabalho? Uma das maneiras de fazer isso é tornar extrativos os meios pelos quais você poderia produzir o próprio eu, de modo que todos os meios pelos quais você poderia produzir qualquer aparência de um eu também extraem seu tempo, sua energia, seu trabalho e as informações sobre você, e isso se torna uma das poucas maneiras pelas quais você pode tentar recuperar algum fluxo de renda para si mesmo. Portanto, a primeira coisa é tirar tudo; depois, é fazer com que todos se esforcem para obter algumas sobras da exploração de todo o nosso não trabalho. Então, sim, esse é o duplo vínculo em que estamos, e, como todo mundo, tenho de produzir continuamente aparências para poder vender livros, para continuar escrevendo mais livros, essa é a estrutura em que estamos. E o fardo disso recai mais pesadamente sobre as pautas minoritárias que, em geral, não são reconhecidas como válidas em primeiro lugar. Portanto, é preciso trabalhar ainda mais para produzir um senso de identidade. E então, quando as pessoas criticam a produção do eu e a mídia contemporânea, ninguém nunca fala sobre todos esses homens brancos heterossexuais que se produzem repetidamente. De alguma forma, estão isentos da crítica, é sempre sobre os outros que recai o fardo de serem o bode expiatório para o que, na verdade, é a condição geral.

Pensar uma emergente “classe hacker”, usando o termo que você cunhou, é uma forma de perceber uma unidade de classe para além da fragmentação da própria ideia de classe social?
Como pensar sobre esse tipo de trabalho? Todo o trabalho industrial tem a ver com a reprodução da mesmice, e grande parte da aplicação de técnicas à produção tem tudo a ver com a tentativa de desqualificar a produção e torná-la a repetição da mesmice que qualquer um poderia fazer. Mas sempre há um tipo de trabalhador necessário para produzir a diferença, como as economias de commodities que precisam de novidades. Então quem produzirá a coisa nova? Qual é a classe daqueles que produzem a novidade em vez da mesmice? Porque não é o mesmo tipo de trabalho, e não é possível gerenciá-lo da mesma maneira, e vemos que as pessoas nos setores criativos se voltam cada vez mais para coisas como a organização sindical, herdadas do movimento trabalhista. Mas há também algumas coisas que são específicas aos tipos de trabalho criativo em qualquer campo, desde as ciências até a dança. Todos exigem um tipo diferente de trabalho. E se pensássemos nisso como um interesse de classe? Qual é o interesse de classe de todos aqueles que produzem o novo? Eu chamo isso de classe hacker em Um manifesto hacker (lançado em 2004 nos EUA e previsto no Brasil neste mês, pela sobinfluencia e Editora Funilaria) e também em O capital está morto. Na verdade, não me importo com o nome que se dê, mas, sim, em perceber que o trabalho é diferente, há coisas específicas, e parece que a economia contemporânea é ainda mais dependente dele do que as iterações anteriores.

Você reflete sobre a escrita como um détournement. Qual é a importância do desvio para pensar o mundo atual?
Em alguma medida, é um conceito ligado à ideia de que a cultura é realmente produzida de forma colaborativa, de que a individualização do criador é uma espécie de imposição de uma economia de commodities, pois a verdadeira fonte da cultura é que ela é um bem comum e todos nós nos servimos dela e a modificamos. A economia política exige que autores individuais sejam proprietários, mas a cultura em si não é passível de propriedade. Como já sabemos há muito tempo, não há idiomas privados, é necessariamente um comunismo, e isso se estende a toda a cultura, sabe? De certa forma, isso pressionou um pouco a ideia do individualismo em si, pois o individualismo sempre é derivado do ser social. Nós nos individuamos em relação aos outros e precisamos desses outros para nos alimentar, para ser individuados. E a individuação é ótima, todos deveriam fazer isso, porque o comum é sobre a diferença, não sobre a mesmice. O que temos em comum é a diferença, a diferença de nossas experiências, de nosso ser, do que criamos e de como vivemos. Isso é bastante central em minha maneira de pensar.

Esse desvio da linguagem também é uma forma de repensarmos como a teoria é escrita, sim? Aproximando-a da arte?
Entre outras coisas, Marx foi um ótimo escritor. Há pessoas que tendem a abstrair suas teorias, como o desenvolvimento dessa tradição marxista na direção de modelos econômicos formais e afins, o que é bom. Mas Marx era de fato ótimo em sátira, em invectivas. Ele também afirmava, por exemplo, que Hegel tinha dito algo em algum lugar que, na verdade, não disse, foi inventado. Esses são os pequenos jogos nos quais Marx se envolve como escritor. Então, até que ponto é uma arte fazer uma teoria crítica de qualquer coisa? Eu me interesso por aqueles que, na tradição, são os grandes estilistas, que pensaram sobre o que é forma literária, mas também pensaram como, onde, qual é a intervenção que o texto deve fazer, para onde ele vai no mundo. Em O capital está morto, também tento elaborar alguns conceitos e algumas análises, e construí-los a partir de pessoas para as quais a escrita crítica também é uma forma de literatura.

Seu texto parece provocar o leitor a repensar os conceitos da crítica tradicional para obrigar o movimento de pensamento em direção a uma nova imaginação política. Como você percebe isso?
Sim, fiquei impressionada com o fato de que as tradições progressistas, ironicamente, podem ser bem conservadoras em relação à linguagem e aos conceitos. A começar pelo tratamento do capitalismo como uma essência eterna que está em toda parte e é sempre a mesma, quase como uma teologia. E se não fosse assim? Porque não é isso que Marx diz. Ele estava escrevendo sobre algo que surgia, que era diferente, que precisava de uma nova linguagem e de novas formas de organização política. E não estou interessada na novidade por si mesma, algo que é um pouco perigoso. Falo de um modelo que é mais recente, que já tem sua forma nova há décadas, mas para a qual ainda usamos termos de uma era anterior para pensá-la, perdendo alguns de seus atributos e qualidades. Então, sim, estou de certa forma preocupada em mudar um pouco a linguagem e pensar sobre o papel da experiência com ela em sua capacidade de conceituar e descrever o mundo de tal forma que você possa começar a imaginar como poderia ter agência nele. Essa me parece ser uma verdadeira batalha no momento, e muito do que imaginamos ser a teoria crítica se encontra, na verdade, profundamente embutido nos mesmos sistemas de mercantilização e circulação de todo o resto. E não queremos admitir até que ponto ela foi envolvida pela reprodução da mesmice, que é uma das dimensões da mercantilização da informação.

Como você percebe a alienação no mundo contemporâneo, uma categoria central nas análises marxistas?
A alienação do produto do trabalho dos trabalhadores em relação ao trabalhador é a parte fundamental da ideia, mas às vezes é deixada de lado e, em vez disso, a alienação se torna toda a literatura, como nos anos 1970, em que a alienação é uma condição geral e se torna mais uma espécie de aversão e descontentamento pequeno-burguês com o mundo, em vez de uma ferramenta conceitual muito precisa. No meu livro Raving, tento pensar em dissociação em vez de alienação como uma forma diferente de pensar o que é separação. E há outras formas de desalienação que são praticáveis no presente, sabe? Nesse livro, tento usar essa linguagem antiga para expressar o que eu estava tentando pensar. Quais são, pelo menos, as versões locais e contingentes de desalienação que estão disponíveis para nós? Talvez seja importante tentar praticá-las em uma época em que há grandes esforços, mas todo o nosso trabalho e o não trabalho devem ser sugados pelo vetor. Talvez seja a isso que precisamos resistir.

E qual seria a diferença entre alienação e dissociação?
O conceito clássico é dialético, e tentei pensar a relação dialética como um caso especial, em vez de uma forma universal de relação. Isso remete a um interesse, como mencionamos, em Deleuze e Guattari, em Lyotard e assim por diante, em todas as diferentes formas de pensar as relações, como Gilbert Simondon. Talvez haja mais de uma maneira de pensar a relação, e colapsar tudo na dialética foi uma espécie de erro que aconteceu em algum momento. Poderíamos, de fato, pensar que o trabalho de Marx é rico e com múltiplas formas de relação e processo, e que, portanto, a multiplicidade delas é muito útil. Então, talvez a dissociação não implique necessariamente um antagonismo dialético que possa, no futuro, ser ressintetizado em um nível mais alto. Não acho que as diferenças tenham necessariamente esse padrão.

Se o socialismo não é mais uma perspectiva no horizonte, como pensar um futuro em que não vivamos no “algo pior” que advém ao capitalismo?
Essa é a pergunta, e acho que podemos pensar em Mark Fisher. Como se o estabelecimento do futuro perdido tivesse se tornado o pensamento dominante. Há uma espécie de luto pela impossibilidade, veja o socialismo nos dias de hoje. Em sua forma cotidiana de governo elegível, o socialismo parece estar fora de cogitação de várias maneiras. Ainda existem partidos socialistas, mas não é bem o socialismo que eles pretendem fazer na maior parte do tempo. Eu não brinco de otimismo. As coisas estão ruins, desculpe dizer, e você sabe quem são seus verdadeiros amigos e camaradas de verdade quando pode admitir que as coisas estão ruins. Talvez esse seja um ponto de partida útil, e é daí que vem o tipo de imaginário da boa vida. Mas quem tem fragmentos da boa vida agora? E o que podemos aprender com isso como algo que queremos generalizar? Tomemos como exemplo o que as pessoas queer fazem. É como se tivéssemos de descobrir algumas coisas, porque o mundo não fará isso por nós, e temos fragmentos de vida em comum, e somos um dos exemplos a partir dos quais você pode desenhar um tipo de projeto maior.

No Brasil, cada vez mais se fala da cultura queer e trans. Como você vê essas questões à luz da sua experiência?
O Brasil tem sua tradição, organização e cultura de travestis próprias e poderosas, que são diferentes, e acredito que nós, do mundo anglófono, faríamos bem em aprender com isso. Mas também estou ciente do nível de violência contra pessoas trans no Brasil. Isso faz parte das condições sob as quais pessoas trans ou travestis operam aí, mas há tradições diferentes, e penso que a primeira coisa é não trazer muito sua versão anglófona para a conversa aqui, mas procurar onde há experiências comuns e compartilhar lutas e coisas assim. Pessoas trans não costumam fazer isso, somos tão poucos, tipo 1% da população em praticamente todos os lugares, e a maioria das pessoas trans não tem muitos recursos, então não conseguimos ter tantas conversas transnacionais. Há pessoas trans ou travestis brasileiras na cidade de Nova York, por exemplo, mas suas condições de vida geralmente não são boas. Portanto, não estamos realmente tendo um diálogo sofisticado, estamos fazendo diferentes tipos de trabalho, então seria muito bom poder ter mais conversas transnacionais, especialmente por aqueles de nós do mundo anglófono, para aprender com versões equivalentes à cultura trans de outros lugares. Nem mesmo equivalente, é diferente aonde quer que você vá. Essa é a questão da cultura trans: estamos em todos os lugares, mas sempre de formas diferentes, e isso, conceitualmente, é difícil de entender.

Com a colaboração de Sara York


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