Mas chama-se arte
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“Ver ou não ver, eis aversão.”
Danislau
Abdellah Taïa me disse que em seu novo romance, Le Bastion des Larmes (O Bastião das Lágrimas, finalista do prêmio Goncourt na França e em breve publicado no Brasil pela Editora Nós), o narrador é um “je augmenté”, que entendo em português como um “eu expandido”, um eu ampliado em termos de capacidade, afirmação, intensidade e insurgência.
“Sim, é isso mesmo, um eu expandido. Para explorar ainda mais a fundo a verdade em nós e, sobretudo, a verdade entre nós. Um eu gay que acessa a própria memória e também todas as outras memórias do mundo.”
Escutei Abdellah como quem quer escutar a si mesmo. Talvez seja essa a medida da admiração que muitos artistas nutrem uns pelos outros — não por verem no outro um reflexo de si, mas por perceberem neste eu expandido algo que tanto buscam em suas próprias criações.
Pensei em meu livro, A nudez da cópia imperfeita (finalista do Prêmio São Paulo de Literatura 2024 na categoria “Melhor romance de 2023”), neste eu que, morto, tão morto quanto Brás Cubas, encontra, no sinistro, a fabulação. A morte, por assim dizer, conferiu ao narrador de A nudez… uma expansibilidade que eu certamente não tenho ao fazer algo mundano como ir ao supermercado.
Abdellah me confidenciou que, fora do livro, ele também não vai tão longe quanto o seu personagem. E eu, em minhas leituras noturnas, acreditei que fosse ele mesmo falando no texto, mas era ele + ele.
Para onde esse eu nos leva?
“No fim da noite… não haverá noite, Najib.
Espero que sim. Espero que sim.
Tenho certeza disso, Najib.
Pegue minha mão, Youssef.”
O que assusta e comove em O Bastião das Lágrimas é perceber que não podemos interromper a leitura, assim como não conseguimos ignorar o desabafo de um amigo que chora conosco, adiando a escuta. Este romance começa e termina na memória de alguém que abre mão do segredo para buscar companhia, alguém disposto a ouvir e consolar a sua infância, tanto no passado quanto no presente. Ele chora como uma criança no corpo de um adulto. E se a insensibilidade é o seu modo de encarar o mundo, caro leitor, é melhor escolher outros textos para discussões em grupo. Este livro vai deixar você só e vulnerável.
Pensei em outros romances, nos amigos tão íntimos quanto a própria escrita de Abdellah, que me mantêm escrevendo para bem longe do eu receoso de tudo o que o fez acreditar ser apenas o corpo nascido e evoluído no interior — de si e do Brasil —, o interior não desejado pelas capitais, que carrega a marca da vergonha. Eu estou lá e aqui. Sou a vergonha e o seu contrário. A conjunção em detrimento da condição. Sou esse corpo que leva a má notícia.
Para muitos, viver hoje na França segue a lógica do condicionado. Se um carioca decide morar em Paris, ou vice-versa, a história se entrelaça, encontra sua continuidade. Mas quando alguém que nasceu em Volta Redonda e que morou em Uberlândia encontra em Paris o seu destino, há algo de colonizado nesse enredo. Abdellah Taïa, nascido em 8 de agosto de 1973 em Salé, Marrocos, escritor e cineasta de expressão francesa, também, em certo ponto, renegou suas origens. Não é mesmo?
Voltemos aos romances.
Danilo Bernardes Teixeira, para você, Danislau Também, autor do livro O herói hesitante, ou apenas Danislau, em Hotel Rodoviária, ambos romances autoeditados com apoio do Programa Municipal de Incentivo à Cultura (PMIC), de Uberlândia, é para mim — e para os milhares que o acompanham, seja como autor, professor de Literatura ou como vocalista da banda Porcas Borboletas — um eu a quem até mesmo a expansão tenta alcançar.
“… abstração atrás de abstração
e eu de cuecas
concreto
sujeito oculto de um predicado preguiçoso”
Quando leio Danislau ou converso com Danilo, seja de Paris ou em São Paulo, onde ele vive atualmente, eu me perco entre o eu que vai ao supermercado e o eu que escreve. E perder-se faz o eu expandir — esse eu que revela seu alto teor de desengajamento com a condição de inferioridade.
“o norte do poema é onde o sol
se nasce”
O eu não expandido é aquele que se narra segundo às condições atribuídas por seus empregadores. Limita-se a um enredo condescendente, para agradar ao gosto popular, onde a complexidade é sacrificada em prol de uma narrativa que não desafia, mas conforta, reforçando apenas aquilo que já é familiar. O eu não expandido mantém-se fixo no lugar de onde veio e no destino que lhe é apontado.
Abdellah e Danislau são do tamanho de sua escrita, um problema para o comércio da vítima. Como amar Uberlândia e Salé em Uberlândia e Salé e em São Paulo e Paris? Online e offline? Como transformar a impostura da vergonha em alívio?
Abdellah e Danislau encontram na escrita uma matriz que lhes confere a capacidade de expandir as limitações temporais e espaciais. Eles habitam simultaneamente o instante e o espaço de sua escolha, redimensionam os contornos de sua própria presença no mundo. Declinam a encenação do papel de coach. Esse, que sente vergonha de quem foi, ama quem se tornou e se promove — apenas — com quem foi.
Danislau: “Não é que você veio do macaco/ O macaco é que veio até você.”
Abdellah: “Homens que não precisam mostrar seu poder. Eles são o poder. E o resto do mundo gira em torno deles.”
Danislau: “Olhos de Soslaio não são de ver, nem de serem vistos. Abandonou a luz, por desejo. Venda negra sobre os olhos, é vermelho-sangue o escuro particular de Soslaio. Menina da universidade perguntando se o intuito era ver mais com a cegueira, a resposta mais ou menos, cima pra baixo, lado pro outro, tanto faz. Ver ou não ver, eis aversão. Nem tudo são motivos nessa vida.”
O coach vive em um constante paradoxo identitário, marcado por uma relação ambígua com seu próprio passado. Sente um desconforto quase existencial em relação à sua versão anterior, enquanto cultiva, em segredo, uma autoadmiração performativa pela figura que construiu no presente. No entanto, é precisamente a narrativa de seu passado, que tanto lhe causa constrangimento, que lhe confere reconhecimento e prestígio. Assim, sua trajetória é marcada por uma dialética entre o ser e o ter sido, onde o capital simbólico do passado serve como alicerce para a construção da imagem que projeta hoje.
Os momentos mais críticos e os mais sublimes do eu expandido de Abdellah e Danislau são experienciados com igual intensidade. Em seus romances, não há espaço para a dicotomia ou para a imposição de condições; o que prevalece é uma tessitura contínua onde cada instante — seja de dor e de êxtase, passado e presente, falta e abundância — se entrelaça, construindo uma narrativa em que o ser e o sentir coexistem sem hierarquias, sem fronteiras entre o extremo e o ordinário.
Viagens de Ahasverus à terra alheia em busca de um passado que não existe porque é futuro e de um futuro que já passou porque sonhado. É outro romance que me veio à lembrança. O título é maior que o livro. Parece. O autor, deveras expandido, decidiu ser a própria lógica. “Deus espera tudo de mim./ Eu nada espero de Deus.”
“Ahasverus bocejou, esfregou os olhos, estirou os braços, e procurou no contraste do azul com o verde, além da janela, uma identificação para seu estado. Não sabia se era real como resíduo de um sonho, se era sonho, resíduo do real. Nem mesmo sabia se podia assumir a responsabilidade de sua consciência, cansada já, exausta, sempre renovada no entanto, sempre alerta ao movimento dela mesma, um olho dentro do olho, espreitado e espreitando, incapaz, quase sempre, de assumir suas metamorfoses, ou de perceber entre o que pensava como Ahasverus enquanto Ahasverus, e o que era quando não era Ahasverus, mas ser produto de uma volição e de uma consciência.”
Samuel Rawet tornou o eu expandido consciente antes mesmo do advento da era digital, onde o mesmo eu navega com menos esforço. O que antes parecia ficção científica, hoje se revela literatura e cliente no supermercado. Ele nos entrega, com precisão, não apenas o que se instalou em seu corpo, mas tudo o que dele deriva. Ele enxerga de onde está. Volta Redonda, Uberlândia, Salé, São Paulo, Paris e, agora, na sua tela: Uberis, Parionda, Volterlândia, Paulalé.
Assim como Rodrigo de Souza Leão, o espaço lhe parecia sucinto demais para tanto azul. Em Todos os cachorros são azuis, o leitor se torna amigo de Rimbaud e Baudelaire em um “lugar tão bonito que lembra um cemitério”. Internado em um manicômio, a loucura do personagem central é controlada do lado de fora do seu corpo com remédios e torturas disfarçadas de tratamento. Do lado de dentro, porém, o eu expandido nos comove (pausa) com o riso. Não o riso forçado dos modernistas (ainda entre nós) que observam os outros à distância e os reivindicam como eus, extensões de si mesmos; mas o riso do eu onde, segundo Michel Laub, “o corpo é o começo e o fim de tudo”. Aqui, o riso não é uma tentativa de apropriação ou representação, mas uma manifestação inescapável da experiência encarnada, em que o corpo não se distancia do sujeito, mas se torna o núcleo irredutível de sua existência e expressão.
“Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado. A ambulância dourada. As enfermeiras douradas tocando-me com suas mãos douradas. Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta Bic azul, os trogloditas dos enfermeiros. Tudo ficou amarelo” em um romance, em um texto que não busca ocupar o lugar do real, da realidade — como muitos afirmam — ou do fato, em seu aspecto mais científico. A experiência é verbal, estética, e acontece no tempo da escrita, no tempo do conto, no tempo do imaginado, sem querer existir fora desse tempo, porque o que existe fora desse tempo já acabou e não pode ser compartilhado.
A literatura investiga o desapercebido. No caso de Rodrigo, do lado de fora há a Benzetacil; do lado de dentro, o efeito literário. Esse efeito não alivia a dor do autor, mas o convida a não sucumbir ao sofrimento e nos convida a nos aproximarmos de sua experiência. O eu expandido nos convida, deixa o autor menos isolado, deixa o leitor menos isolado.
Sentir-se menos isolado não resulta de uma obrigação, mas de um convite. Paralelos nas experiências; próximos no imaginário. Assim nasceu a primeira pessoa do plural.
Wagner Schwartz é escritor, coreógrafo e performer. Autor de Nunca juntos mas ao mesmo tempo (2018) e A nudez da cópia imperfeita (2023), ambos publicados pela Editora Nós.