Marx e Keynes
O economista britânico John M. Keynes (Arte Andreia Freire)
A compreensão das crises do capitalismo requer que se faça uma distinção bem precisa entre as teorias de Marx e Keynes. Pois a mistura eclética dessas duas teorias, muito difundida e mesmo dominante hoje em dia, tem criado uma enorme confusão interpretativa.
A obra principal de Karl Marx (1818-1883), O capital – Crítica da economia política, como se sabe, foi escrita em meados do século 19. Já o escrito notável de John M. Keynes (1883-1946), Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, veio à luz na década de 1930. O capitalismo mudou muito entre o último terço do século 18, quando acontece a primeira revolução industrial baseada na introdução da maquinaria mecânica, até o último terço do século 20, quando surge a terceira revolução tecnológica baseada na máquina computacional, mas não deixou de ser capitalismo. Por isso, as obras desses dois autores que melhor o examinaram continuam centrais para compreendê-lo adequadamente.
Para distinguir e apresentar comparativamente os principais traços dessas duas teorias, é preciso começar por uma representação sintética do processo de reprodução do capital, base estrutural da reprodução histórica do modo de produção capitalista. Na figura ao lado, apresenta-se o circuito do capital monetário, o qual foi descoberto por Marx, mas não deixou de ser endossado até certo ponto por Keynes. Ele mostra que no sistema capitalista se usa dinheiro para comprar mercadorias com as quais se produzem novas mercadorias que, ao serem vendidas, geram normalmente mais dinheiro.
O circuito do capital monetário descreve o que usualmente se denomina de “lógica do capital”, uma repetição cíclica, infinita em princípio, que se observa tanto no nível das empresas em geral quanto da economia como um todo. Por D se indica aí a forma dinheiro e por M se aponta a forma mercadoria em geral. O circuito começa com um certo montante de capital-dinheiro (D), provindo do próprio capitalista e/ou tomado emprestado, que é usado para adquirir meios de produção circulantes (matérias-primas etc.) ou fixos (máquinas, instalações etc.) e para contratar a mercadoria força de trabalho. Todos esses elementos (M) são, então, colocados em funcionamento no processo produtivo do capital, o qual se encontra sempre organizado pelo capitalista ou por seus prepostos (…P…). Dele resultam novas mercadorias, as quais são levadas aos mercados para serem vendidas (M’). Se a operação for bem-sucedida, o capitalista obtém em geral não só o dinheiro inicialmente investido, mas também um excedente de valor, o lucro.
Os elementos desse circuito têm de ser vistos como dualidades; eles representam, ao mesmo tempo, valores de uso (bens) e valores mercantis. Para Marx, mas não para Keynes, os valores mercantis são constituídos por montantes determinados, ou seja, socialmente necessários, de trabalho abstrato. Para ele, é o próprio funcionamento do sistema mercantil que determina implicitamente, sem que os homens o saibam, tais montantes. Dito de outro modo, o processo social mercantil capitalista comensura os trabalhos, reduzindo os trabalhos concretos a trabalho abstrato. Desse modo, Marx, por um caminho teórico que requer muitos passos, explica o lucro como um mais-valor que é produzido pelo trabalho, mas apropriado pelo capitalista.
Para Marx, a dualidade entre o valor de uso e o valor forma uma contradição real; eis que o valor é sempre negação determinada do valor de uso – e vice-versa. Os valores de uso atendem sempre às mais diversas necessidades humanas, mas os valores, ao contrário, são objeto de acumulação, acumulação, acumulação… Por isso, ele define o capital como valor que se valoriza e concebe a lógica do capital como expressão de um processo insaciável que tende à expansão, à desmedida e, por fim, à crise. A valorização do valor, no curso do processo de acumulação, segundo Marx, entra necessariamente em disparidade com a produção de bens. A crise é gerada em geral pela própria acumulação de capital, mas ela aparece como superprodução de mercadorias ou, o que é o mesmo, como falta de demanda efetiva.
Como está indicado na imagem, o circuito do capital monetário pode ser dividido em três momentos ou esferas próprias do processo de acumulação: aquele em que ocorrem os investimentos, aquele em que acontece a produção das mercadorias e aquele no qual se dão as vendas das mercadorias produzidas e a realização dos valores mercantis na forma de dinheiro. Os signos D e M no circuito indicam as formas transitórias do capital, já que este é compreendido como uma forma social que só existe em perpétuo movimento. Assim, o capital monetário se transforma primeiro em capital-mercadoria, depois em capital produtivo, novamente em capital-mercadoria para, finalmente, voltar à forma de capital dinheiro.
Keynes, na compreensão do funcionamento do capitalismo, privilegia a esfera da realização do capital, vista positivamente como um grande “mercado”, um mercado de muitos bens. Pois é aí que ocorre o que Marx chamou de salto-mortal da mercadoria. Os capitalistas, ao procurarem vender as mercadorias, visam realizar os seus valores na forma de dinheiro, mas podem eventualmente descobrir, em certos momentos, que parte delas se mostra, pelo menos provisoriamente, como invendáveis. Em vez de um salto bem-sucedido, parte delas fica no estoque ou mesmo vai para o lixo. A crise aparece assim, na visão de Keynes, como uma falha possível da “economia de mercado”.
Considerando o sistema econômico como um todo, Keynes toma M’ como a oferta agregada e D’ como a demanda agregada, esmerando-se em compreender em que nível elas se ajustam no funcionamento econômico. Rejeita a Lei de Say – segundo a qual a oferta cria a sua própria procura –, porque ela prescreve que o sistema econômico tende automaticamente ao pleno emprego. Ao contrário, ele admite que esse sistema não funciona perfeitamente e que pode sofrer crises. Keynes não evita, assim, a contradição possível entre valor de uso (que orienta a demanda) e valor (que orienta a oferta) no nível macroeconômico, mas a dissimula sob uma noção equívoca de equilíbrio abaixo do pleno-emprego. Vê imperfeições na “economia de mercado” sem abandonar, entretanto, o modo de pensar da teoria neoclássica.
Ao visar à lógica do capital enfocando primariamente a esfera da realização, Keynes pode dar primazia à demanda agregada na compreensão da dinâmica macroeconômica. E essa prioridade cristalizou-se em sua teoria por meio do princípio da demanda efetiva; segundo ele, é a propensão a consumir dos trabalhadores e o nível do investimento dos capitalistas que determinam o nível do emprego no sistema econômico como um todo. Segundo Keynes, ademais, o investimento é o componente mais instável da demanda efetiva já que os capitalistas, em certas conjunturas, podem preferir manter os recursos na forma líquida do dinheiro em vez de aplicá-lo na aquisição de capital fixo que amplia a capacidade de produção no longo prazo e mesmo de capital circulante que enseja a produção no curto prazo.
Segundo Keynes, o investimento é volátil porque o cálculo capitalista sobre as oportunidades de lucro é fortemente afetado por uma incerteza radical. Quando ela se torna insuportável para os capitalistas, sobrevém uma crise porque eles cortam os investimentos. Ele não vincula, entretanto, essa incerteza à anarquia inerente à economia mercantil e ao movimento endógeno, turbulento, da própria acumulação. Em consequência, as crises para ele sempre podem ser enfrentadas com certo sucesso pela política econômica. Eis que o seu papel é sustentar a demanda agregada e restabelecer a confiança.
Para Keynes, portanto, as crises capitalistas são, sobretudo, crises de realização que podem, sim, ser contidas ou mesmo invertidas pela atuação política do Estado, desde que os tecnocratas que conduzem a política econômica estejam de posse de um saber realista sobre o processo econômico.
Marx, diferentemente, foca em primeiro lugar a esfera da produção do capital. Pois é aí que surge a fonte do lucro, isto é, o mais-valor. E é a produção possível de mais-valor que governa o investimento. Marx, diferentemente de Keynes, tem uma teoria do investimento que está assentada no próprio processo de acumulação. O investimento, para ele, depende crucialmente da taxa de lucro empresarial, aquela que o capitalista obtém depois de pagar juros ao capital financeiro e impostos ao governo.
E ele, considerando em conjunto as esferas da produção e da realização do capital, mostra em O capital que o próprio processo de competição das empresas capitalistas, as quais lutam cotidianamente para se apropriar do lucro gerado no sistema como um todo, produz uma tendência endógena à redução da taxa de lucro. A acumulação de capital, assim, contraria a si mesma: o impulso de acumulação produz uma queda da acumulação e mesmo do estoque de capital já acumulado. Marx, como se sabe, compreende esse evolver reverso por meio da lei da tendência decrescente da taxa de lucro, sem se olvidar, porém, das tendências contrariantes que operam no processo de acumulação. Em sua perspectiva, portanto, o colapso periódico do investimento e, assim, a crise econômica, são gerados pelo próprio capital. O problema da realização reaparece aqui não como fonte, mas como consequência da crise.
Para Marx, portanto, as crises capitalistas são, sobretudo, crises endógenas de lucratividade e, por isso mesmo, não podem ser contidas ou mesmo invertidas pela atuação do Estado. Este último, por meio da política econômica, pode apenas modificá-las, abrandando-as ou agravando-as ainda mais. Porém, a ideia de que é possível salvar o capitalismo dos seus trambolhões históricos – cada vez maiores e mais destrutivos – engendrados pelo próprio capital permanece predominante, pelo menos por enquanto.
ELEUTÉRIO F. S. PRADO é pós-doutor em Economia pela Universidade de Yale e professor titular aposentado da FEA-USP