O tupi e o alaúde, ainda

O tupi e o alaúde, ainda
(Desenho: Odiléa Setti Toscano)

 

Tomo emprestado o título do livro de Gilda de Mello e Souza sobre Mário de Andrade para voltar, ainda, a ele. Mais especificamente, para partir de certa cena inaugural cifrada no seguinte poema:

 

O trovador

Sentimentos em mim do asperamente
dos homens das primeiras eras…
As primaveras de sarcasmo
intermitentemente no meu coração arlequinal…
Intermitentemente…
Outras vezes é um doente, um frio
na minha alma doente como um longo som redondo…
Cantabona! Cantabona!
Dlorom…

Sou um tupi tangendo um alaúde!

 

Publicado em Pauliceia desvairada, livro de 1922, o poema parece condensar a visão de um ideal de formação da identidade nacional. Mas é a visão de uma identidade certamente paradoxal. Com efeito, a figura (a começar pela do poeta, entende-se) é compósita, em certo sentido rapsódica ou macunaímica em seu centro mesmo: seu coração é arlequinal (em Picasso, lembremos, encontramos reiterado o motivo do arlequim). E o sujeito que surge do profundo das primeiras eras, cantando seus melancólicos sentimentos na tateante modernidade dos trópicos, parece marcado pela suspensão, pela indecidibilidade, pela reticência… Entre o som e o sentido, entre o sensível e o sensato, entre a repetição e a diferença: Cantabona! Cantabona! Dlorom…

Ou seja, intermitentemente, entre uma aparição e outra, como um longo som redondo, essa voz que diz e se diz ecoa, ao modo de uma pulsação que é própria das imagens, em tudo que as imagens têm de impróprias e inapropriáveis. É notável, ademais, que esse sujeito, um tupi, um indígena, se afirme tocando um instrumento ancestral alienígena: um alaúde. Daí que a intermitência dessa figura trabalhe não apenas entre espaços distintos, mas igualmente entre tempos dissímeis. É como se, das primeiras eras à modernidade, o Ocidente se apresentasse por meio da descontinuidade e da tensão entre as pessoas e as técnicas, descontinuidade e tensão das quais emerge, num presente sempre fraturado, aquilo que somos e o que não somos: o que talvez tenhamos sido, o que não pudemos ser e o que todavia é possível imaginar ou desejar que sejamos – isso se pudermos, é claro, deixar de ser o que ainda somos.

Diríamos assim que, como um fundamento sem fundo, essa identidade inaugural falta em seu lugar. É uma identidade ausente. Sua origem é fruto da apropriação da tradição técnica e da sua ressignificação desviante pelas mãos de um brasileiro tão arquetípico quanto impuro, sem inteireza: um tipo apresentado na imagem de um tupi que sobrevive, transviado de qualquer traço romântico e a despeito da barbárie civilizatória, na anacrônica rememoração de um homem branco de alma doente; um homem profundamente tocado pelo mal-estar e que, disposto a imaginar-se, enfim se imagina, na ficção do poema, radicalmente outro.

Desse modo, por um lado, temos a fórmula da gênese: o papel do modernismo nacionalista era mediar o contato com a tradição artística estrangeira para que dessa relação, que passa pelo saudável desvio criativo do autóctone e do popular, nascesse o Brasil moderno. Não obstante, por outro lado, temos a ficção da origem: “O trovador” parece apontar para uma ontologia vazia, que por isso é uma e outra vez suplementada, enredada pelas imaginações individuais e coletivas que buscam realizar o seu real, impossível por definição. Como representação da modernidade, portanto, o alaúde de Mário remete não somente ao trânsito das vanguardas e às técnicas da modernização em torno do projeto nacional; ele se refere, também, a todo artifício “moderno” com o qual a produção de subjetividades e de realidades comuns pode ser articulada.

Agora, nesta nossa modernidade avançada, neoliberal e planetária, quando estamos distanciados quase cem anos e inclusive revendo muitos aspectos dos modernismos, a questão que gostaria de repor neste espaço – um problema que sem dúvida foi muito intensificado com a pandemia e vem sendo discutido insistentemente desde então – seria: quais as subjetividades e as realidades que estão surgindo, com o inaudito reforço do mundo técnico que presenciamos?

E mais: que visões de mundo ganham força neste momento em que os aplicativos, os dispositivos, os aparelhos, os aparatos, em suma, quando todas essas próteses que suplementam nossa falta constitutiva tendem a virtualizar e atomizar os corpos e os sujeitos, talvez na mesma medida em que os reúnem em novas modalidades de convivência, igualmente desafiadoras? Que problemas éticos e políticos derivam dessas contingências? As comunidades virtuais sem hierarquias e com circulação sem fronteiras são realmente inclusivas? A autonomia usuária, como a conduzida pelos maquínicos serviços de atendimento ao consumidor, é mesmo emancipadora? Quais as formas possíveis da comunidade, do efetivo viver em comum, quando há tantas formas perversas de exceção a uma regra que todos deveriam seguir, ou seja, quando há tantos modos de instrumentalização da segregação e da imunidade? Em uma palavra: seguimos tangendo os alaúdes? Ou estamos sendo tangidos, tocados por eles?

Como disse, o assunto vem sendo debatido largamente, desde o início da pandemia, com diferentes desdobramentos. Menciono apenas duas situações. Primeiro, como exemplo, as já bem divulgadas e discutidas intervenções de Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Jean Luc Nancy, Franco “Bifo” Berardi, Santiago López Petit, Judith Butler, Alain Badiou, David Harvey, Byung-Chul Han, Raúl Zibechi, María Galindo, Markus Gabriel, Gustavo Yañez González, Patricia Manrique e Paul B. Preciado, reunidas no volume Sopa de Wuhan, publicado em março de 2020 pelo editorial ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio).

Já a segunda situação se deu no segundo semestre do ano passado, entre julho e setembro, quando um colóquio organizado por Byron Vélez Escallón, professor de Literatura Hispano-americana da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), igualmente se dedicou a pensar a emergência dessas questões. O evento – cujo título já explicita a complexa articulação em jogo: “Universidade, virtualidade, experiência” – contou com pesquisadoras e pesquisadores de diversas áreas e variadas instituições de ensino superior, brasileiras e estrangeiras, e em breve os textos resultantes dos debates serão publicados num dossiê da revista Landa, editada pelo Núcleo Onetti de Estudos Literários Latino-Americanos, da UFSC).

Oportunidades como essas mostram como os problemas em questão são resistentes e escapam a uma resolução simples. E neste contexto crise, de inflamado momento pandêmico e neoliberal, certamente ganham gravidade muitas das derivas tratadas no evento: as relações que o pensamento crítico mantém com as formas possíveis da experiência comunitária, com as novas modulações da intimidade e da exposição, com o paradigma da biopolítica no Ocidente, com o conhecimento público franqueado pelas artes, com a onipresença do trabalho virtual e remoto etc.

Como visto, é claro que o problema da técnica se confunde com o que somos, com o que não somos e com o que poderíamos ser: confunde-se, enfim, com o próprio problema da origem, uma vez que na origem está a ficção. Quais ficções de nós mesmos inventaremos, então, neste nosso momento em que a extinção e o vir a ser se reafirmam indissociáveis? Diríamos que “a contribuição milionária de todos os erros” do nosso presente deverá passar, inevitavelmente, pela hipertrofia técnica, e não pelo seu rechaço (digamos: não pelos discursos do negacionismo). Deverá passar pelas formas de vida e de sensibilidade que as técnicas proporcionam. Pelas subjetividades e coletividades que resultam desse contato.

No entanto, há o impasse. Pois, como já ponderava Peter Pál Pelbart no início dos anos 2000, são justamente essas as modalidades do trabalho imaterial que sustenta a sociedade contemporânea tal como a conhecemos. Afinal hoje produzimos e consumimos imagens, informações, conhecimento. Através desses fluxos virtuais de dados e mais dados, com os quais formatamos nossos gostos e condutas, sonhos e opiniões, somos ao mesmo tempo produtores e consumidores, e produzimos e consumimos cada vez mais formas de vida. Em A vertigem por um fio podemos ler: “a subjetividade não é algo abstrato, trata-se da vida, mais precisamente, das formas de vida, das maneiras de sentir, de amar, de perceber, de imaginar, de sonhar, de fazer, mas também de habitar, de vestir-se, de se embelezar, de fruir etc. Se é um fato que a produção de subjetividade está no cerne do trabalho contemporâneo, é a vida que aí está em jogo”.

Assim, a meu ver, a saída não se encontra na euforia tecnicista. Ao contrário, mais vale organizar o pessimismo, como de resto já propunha Benjamin. Isso significa que a desilusão e a fidelidade devem comparecer, ao mesmo tempo, neste nosso presente; para que, por meio da técnica, ou seja, pelas imprevistas linhas de fuga do nosso contato crítico com os alaúdes, possamos imaginar e enredar, tocar e encaminhar outras ficções. De certa maneira, somos homens das primeiras eras e escutamos, dia a dia, um longo som redondo que se assemelha ao dobrar dos sinos: Cantabona! Cantabona! Dlorom… Daí a urgência de novos, de outros trovadores, com seus exercícios poéticos, artísticos e artificiosos, de reafirmação da vida comum.

Artur de Vargas Giorgi é professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)


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