Maria Rita Kehl: subversão política e prática

Maria Rita Kehl: subversão política e prática
(Foto: Bob Sousa)

 

Cantora de samba – se está sozinha – e autora de ficção – quando tinha nove anos de idade –, Maria Rita Kehl é conhecida como psicanalista e escritora. Também trabalhou como jornalista e integrou, recentemente, a Comissão Nacional da Verdade. Premiada com o Jabuti de 2010, na categoria não ficção, pela obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões, lembra, em detalhes, de uma história que escreveu na infância.

“Rita, a personagem que criei, tinha sido raptada, fugiu, e teve que viver sozinha. Morava em uma cidade como se estivesse na selva. O bueiro era uma caverna; ela descobria depósitos de roupas para se agasalhar; roubava comida; assistia aulas sem estar matriculada”, conta a mulher, que se interessa há muito pelos deslocamentos.

O livro de infância, nunca publicado, foi perdido ao ser emprestado ao psicanalista da juventude. Já adulta, outros dez livros, de crônicas ou sobre Psicanálise, foram escritos e publicados. Dentre eles, Deslocamentos do feminino, lançado originalmente em 1998 e relançado neste mês pela Boitempo Editorial.

A nova edição foi revisada pela autora e traz, na orelha, um elogioso comentário de Marilena Chaui: “Como surgiu a ‘mulher freudiana’? Com essa indagação – e partindo da declaração de Freud de que não se nasce mulher nem homem, mas nos tornamos um ou outro –, Maria Rita Kehl propõe desconstruir a figura universal e abstrata d’A Mulher, isto é, um conjunto de imagens e representações que tentam produzir uma identidade para todas as mulheres, sem alcançar nenhuma delas em sua singularidade”.

E os deslocamentos são em variados sentidos: as mudanças nos conceitos de feminino e de feminilidade, a nova posição das mulheres na sociedade urbana industrial, as representações que as mulheres passam a ter de si, e um sentido gigantesco, segundo Chaui, das mulheres como sujeitos que tornaram a psicanálise possível, fundadoras da psicanálise junto a Freud.

“Anuncia-se, aqui, a subversão teórica e prática proposta por Maria Rita Kehl”, escreve Chaui. Nesse momento, em que o debate sobre gênero se expande, a entrevista a seguir trata, primordialmente, de Deslocamentos do feminino, um livro feminista, não só por colocar as mulheres como sujeito social e político, mas também por apontar restos de ideias arcaicas na psicanálise lacaniana.

CULT – No livro, você apresenta uma diferença entre mulher, feminilidade e feminino. É possível explicar essas noções em poucas palavras?

Maria Rita Kehl – A primeira é bem fácil, está no senso comum. Mulher se define com o sexo biológico: vagina, aí se desenvolvem os seios, a capacidade reprodutiva. E pode mudar depois. Quando eu escrevi o livro não existia transgênero. Coelho macho e fêmea, cachorro macho e fêmea, ser humano macho e fêmea. Ao nascer, mesmo no caso de uma pessoa transgênero, a primeira coisa que o médico diz é se é menina ou menino. Essa é nossa primeira noção de identidade. Homem e mulher são definições muito básicas, muito calcadas no biológico, e você se identifica com uma delas desde a certidão de nascimento. Independentemente de você mudar isso no futuro ou não.

E feminilidade?

É o modo como você se transveste de mulher. E isso muda em cada  cultura, tribo, país. É o que Freud diz: não nascemos homem ou mulher, nos tornamos. Morreu Elke Maravilha – pensando agora, é como se ela fosse a femi- nilidade no mais alto grau, a ponto de ficar quase uma palhaçada. Com aquilo que é do feminino – se maquiar, mudar isso, aquilo – ela se transformava quase em uma caricatura de mulher. O gênero dela ficava genial. Não fazia isso de mau gosto, era de propósito, criando um estilo artístico. A feminilidade é uma construção de estilo.

Dilma foi muito questionada por não se adequar a um modelo de feminilidade.

É machismo. Ponto. A Dilma não é a Marcela Temer. Politicamente, podem chamá-la de horrorosa, isso é oposição política. Se fosse uma deusa grega de decote talvez fosse chamada de vulgar, puta. É de uma má fé… Usam o fato de ela ser a primeira presidente mulher. Acho isso muito baixo. Não piora nem melhora em nada o valor político da Dilma. Talvez uma mulher no comando tenha sido obrigada a ser mais dura. Mas parece que ela tem esse traço. Quem sou eu para dizer, não sou amiga dela para saber se sempre foi assim. O que eu sei, do pouco convívio que a gente teve pela Comissão da Verdade – eu vou usar uma impressão de propósito –, é que ela é uma fofa. Quando estava bem, entre nós, feliz de nos receber, a gente brincou, fez piada. Quando ela acorda de noite e quer fazer um chá, precisa chamar alguém do cerimonial. Ela não se sente bem. E aí eu brinquei: põe um fogareirinho no quarto, esconde debaixo da cama para fazer um chazinho de noite. Ela falou: é, mas se virem uma fumacinha saindo pela minha janela, em cinco minutos tem o exército, os bombeiros, a polícia. Ela estava rindo dessa prisão que é ser presidente. E era uma conversa divertida. Provavelmente, os presidentes homens achavam essa a coisa mais normal: serem servidos. Uma mulher que sempre circulou pela casa, que não era rica, não tinha criadagem, via isso como uma restrição, não um privilégio.

Falamos da mulher, da feminilidade. E o feminino?

Feminino é como você elabora e compõe a sua relação subjetiva com a sexualidade, com o seu desejo, que pode ser hétero ou homo. Também uma mulher pode existir um desejo masculino. Não há norma para isso. Eu usei esses três critérios até para dizer: olha, para compor cada mulher essas três coisas [mulher, feminilidade e feminino] se combinam de maneiras diferentes.

Assim, o desejo sexual feminino seria o de receber?

Sim. Até pela natureza biológica do órgão. O que não quer dizer que as mulheres não possam ser fálicas. Freud tem uma restrição de homem da sua época. Ele foi o cara que chocou todo mundo por falar de sexualidade infantil, que as neuroses têm natureza sexual. Ele foi muito ousado, mas não conseguiu totalmente ultrapassar uma ideia do sexual muito ligado ao reprodutivo. Então, é como se o órgão sexual da mulher, por excelência, fosse a vagina. E o do homem, o pênis. Mas a mulher tem dois órgãos sexuais: o tecido vaginal, que é um órgão de prazer, e o clitóris. Só que Freud considera – e aí é uma limitação mesmo de geração –, que a sexualidade clitoridiana é infantil, e que a mulher madura tem que passar da sexualidade clitoridiana para a vaginal. Claro que ela tem que passar para a vaginal se ela quiser o sexo com penetração. Mas não exclui a clitoridiana. A questão é que não tem o abandono de um pelo outro. A hipótese dele é que quando a mulher fica decepcionada porque ela nunca vai ter um pênis, abandona a masturbação clitoridiana. Como se você pudesse recusar uma excitação porque aquele órgão não vale tanta coisa. Tem muita ignorância. Claro, toda a formação dele, a principal concepção da psicanálise, é tudo do século 19. As mulheres não diziam para ele as coisas que hoje dizem em qualquer consultório de psicanálise. Em primeiro lugar, a zona erógena, que é o clitóris, não deixa nunca de ser excitável e ser excitada no ato sexual. E só os homens que são, aqui entre nós, ruins de cama, não sabem se colocar com a mulher de um jeito que ela possa ter esse duplo prazer. Só os homens que têm aquela estereotipia masculina de um jeito específico de penetrar a mulher é que não conseguem atender essa possibilidade inscrita no corpo. A região anal não é só para os homossexuais, ela é excitável para todos os seres humanos. E as possibilidades de carícias anais podem ser mais ou menos reprimidas. Freud não contempla isso. Mas foi pioneiro, esteve na linha de ponta de sua época.

No livro você também traz Madame Bovary.

Sim, porque ela é uma mulher insatisfeita com a condição feminina. Tem fantasias com uma vida diferente da vidinha de uma esposa de província. E ao mesmo tempo é mulher de uma época, que leu muitos romances. Por isso meu livro tem um capítulo sobre as mulheres do século 19, falando inclusive do momento em que começam a ler romances. As mulheres casadas não tinham o que fazer, ficavam entediadas. Abre-se um mercado de romances para mulheres, pois elas eram as que liam. E a mulher começa a ser a protagonista do romance. Naquele momento em que a família nuclear burguesa se forma, as mulheres vão para dentro da casa. Nas sociedades de corte, elas podiam ser rainhas. Mesmo as mulheres do povo, antes, tinham uma vida coletiva, comunitária, digamos assim. E é nesse período que a vida se privatiza. A figura da rainha do lar é quase que um prêmio de consolação: você vai ter um monte de filho, vai se entediar pelo resto da vida, mas você é a rainha dessa casa. Quem vai para a rua é seu marido, quem entende de política é seu marido, quem não é obrigado a voltar para casa e pode ficar conversando com os amigos é seu marido. E você pode, de vez em quando, fazer um chá para as amigas, vai costurar muito, se for burguesa ainda vai ter empregadas. Você vai morrer de tédio, mas você é a rainha do lar. É nessa passagem que Flaubert escreve o romance de uma menina que estudou em colégio de freira, leu muito, e se casa achando que vai ter a vida das heroínas dos romances que leu. Em um mês a vida dela é um tédio. Então ela se engaja com os amantes. Mas é muito importante lembrar que ela não se mata por amor. Além de tudo, ela não tem autonomia com o próprio dinheiro. Ela tem uma fantasia de ter uma vida mais elegante do que aquele médico de província podia dar, então começa a se endividar. Ela se mata porque ela se endivida, o que é muito mais radical. Uma mulher que quer bancar uma vida que não pode ter e não tem condições nem de pagar suas contas porque depende do marido.

Você está falando da mulher branca, do Ocidente. É uma visão eurocentrada. Não necessariamente essas noções são universais.

Veja, não estou fazendo uma análise da mulher. Estou tentando entender como a psicanálise criou uma teoria sobre a mulher. Que mulher estava sendo escutada. Não tinha como Freud escutar a indiana, a africana, a nordestina, a brasileira. Eram as europeias que ele podia escutar.

Olhar para essa pluralidade de mulheres ainda é um desafio para a psicanálise?

Desafio eu diria se fosse uma coisa que a psicanálise ainda não faz e tem que fazer. Acho que não. Nos quase vinte anos que nos separam da primeira edição desse livro, também a psicanálise mudou muito. Não por mérito da psicanálise, mas porque as moças estão se fazendo ouvir, e quem não escuta fica para trás. Se não quiserem ouvir, nem adianta algodão. Tem que pôr chumbo no ouvido.

O que havia de arcaico na psicanálise quando você escreveu o livro?

Freud cria uma teoria da feminilidade a partir do que ele escuta das histéricas. O que estou discutindo é o que chega à psicanálise como sendo próprio do feminino que não é exatamente próprio do feminino. É próprio ou da histeria ou de uma condição muito específica do século 19, começo do 20, que cerceou e colocou as mulheres em um lugar onde elas não estavam antes e de onde elas saíram depois. A histeria se torna quase que símbolo da feminilidade porque a histérica manifesta um sofrimento que é de todas as mulheres. Por exemplo: dizer que a menina tem um complexo de inferioridade porque ela não tem um pênis é quase uma afirmação de época. Isso vale para uma época em que não ter o pênis vinha junto com uma série de limitações. Então a menina pequena pensa: eu sou que nem a minha mãe, ela não pode sair de casa, não pode trabalhar, não pode ganhar dinheiro, obedece a meu pai. Minha mãe é inferior e eu também sou. Hoje, a filha de uma feminista, minha filha, a sua, vai achar que faz diferença ter ou não ter um pênis para ser superior ou inferior? A ideia de que a menina tem um complexo de inferioridade, que precisa superar, que tem fantasias de que seria bom ter um pênis, que se sente castrada, tudo isso acontece, você ainda escuta ecos disso na clínica. Ora, o importante é o que Lacan fez pela psicanálise freudiana, sem desvirtuar em nada a teoria freudiana. Castração não é a perda do pênis. Castração é a condição humana. Isso também está no Freud, mas Lacan dá uma ampliação. Quer dizer, nenhum de nós é completo. Nenhum de nós não tem falta. A castração é simbólica. A castração é a incompletude de todo ser humano. E depois que você passa o Édipo, digamos assim, ou na análise, é aí que você deve chegar. Não é no sentido de perceber que eu sou perfeita, eu sou maravilhosa. É descobrir que essa é a minha condição. É a condição do meu desejo. Se eu não tivesse falta, eu não teria desejo. E essa é a condição humana. Essa é universal. Acho interessante ver como Freud trouxe para a cultura do Ocidente um dispositivo altamente progressista. Porque hoje isso tem a ver com o capitalismo também, com a sociedade do consumo: temos uma diversidade de modos de compor gênero. E mais, não só de compor gêneros, a diversidade de opções sexuais que se inventam, que não existiam no final do século 19. E que não são mais consideradas perversões. Aquilo que era ainda  homossexualidade e heterossexualidade explodiu, multiplicou. Há, praticamente, uma sexualidade para cada ser humano. Claro que a psicanálise tem uma responsabilidade enorme por isso. Do ponto de vista moral e  também ideológico e por trazer isso como saúde psíquica e não como doença.


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