Maria de Buenos Aires: “A força de uma mulher que emerge do underground”

Maria de Buenos Aires: “A força de uma mulher que emerge do underground”
Crédito: Larissa Paz

 

O compositor Astor Piazzolla é conhecido pela renovação do gênero musical do tango no contexto da modernidade argentina. No dia 21 de novembro de 2024, a música de Piazzolla se encontra com o principal marco geográfico do modernismo brasileiro, o Theatro Municipal de São Paulo.

A obra escolhida para encenação foi Maria de Buenos Aires, uma parceria de Piazzolla com o poeta uruguaio Horacio Ferrer, uma ópera (ou “operita”, como definia Piazzolla) que marca o nascimento do tango nuevo argentino. A trama acompanha Maria, uma prostituta da capital portenha que passa por um processo de morte e renascimento em uma espécie de submundo místico e onírico.

Em entrevista à Cult, o diretor Kiko Goifman, que assina a montagem, falou sobre sua relação com a obra, a atualidade de Piazzolla e a importância de tratar do tema da prostituição.

 

Uma coisa que parece se destacar na encenação da opereta são as imagens projetadas no telão. Poderia comentar um pouco a escolha dos elementos visuais usados para ilustrar a montagem?

Eu sou da área do cinema. Uma das minhas propostas para essa montagem foi trazer a ópera para a minha área. Durante todo o espetáculo, sou eu que projeto imagens no telão sobre o palco ao vivo. O intuito foi ilustrar um pouco do universo de Horacio Ferrer e de Piazzolla, que é um universo um pouco do submundo, do subterrâneo. Para isso, filmamos em Buenos Aires e usamos muitas imagens de arquivo da cidade, além de criar algumas imagens que, na verdade, são imagens metáforas. São imagens, por exemplo, de copos transbordando, que de alguma forma evocam esse subterrâneo, esse subterrâneo da ópera. Essas imagens não são somente um cenário. São imagens potentes que, de alguma forma, convidam as pessoas a entrarem juntas nessa viagem poética.

 

Em que medida o ambiente pensado por Piazzolla a partir dos bordéis portenhos pode se relacionar com a realidade brasileira hoje? 

Acho que podemos dizer que esse universo criado por Piazzolla se relaciona conosco principalmente por tratar de uma mulher inventada. Em Maria de Buenos Aires existe uma questão que trata de uma potência feminina que vem de Piazzolla quando ele cria essa personagem que morre e depois volta. É uma personagem de uma força absurda. Isso é completamente atual. De alguma forma, estamos falando não só sobre uma situação na Argentina, mas sobre a América Latina. Estamos falando de um poder de uma mulher que emerge do underground, enfim, dos bordéis.

 

Como surgiu a ideia de reencenar Maria de Buenos Aires?

Eu fui convidado em 2021 para dirigir essa ópera, que é uma remontagem. Eu topei mesmo sem saber muito bem o que era uma ópera. Isso cria também na minha vida uma experiência maravilhosa, que é trabalhar com o diretor cênico Ronaldo Zero, meu namorado. Ele domina o espaço da ópera. Eu não, mas, para mim, foi um espaço de aprendizagem.

Quando eu fui entrando no espírito de Ferrer e de Piazzolla, eu fui entendendo que, de alguma forma, estávamos falando sobre temas tabus na ópera, sobre um submundo de prostituição, de assassinos, de picaretas, de ladrões e tal. Isso tem a ver com o meu trabalho. Eu sempre tive esse olhar para as putas também. Então, de alguma forma, os temas tabus dos meus filmes se enamoram com o tema principal da ópera.

 

Existe esse tema do submundo, mas existe também o tema um pouco do onírico. Como você vê essa articulação?

O tempo todo o onírico é fundamental. Quem for ao Theatro Municipal achando que vai assistir uma historinha contada do começo ao fim vai se decepcionar. A gente está falando do onírico, de uma viagem surreal. Estamos falando de coisas que têm a ver com o mundo dos sonhos, com a poesia, com viajar. Não é uma ópera para você pegar e tentar entender tudo exatamente o que está acontecendo. Não é isso. Piazzolla não a concebeu assim e jamais numa montagem eu tentaria explicar a história.

 

Piazzolla é conhecido por renovar o gênero do tango dentro da modernidade argentina.  E o Theatro Municipal é o principal marco geográfico do modernismo brasileiro. Como você sente essa ressonância nessa encenação?

Esse paralelo é muito significante para mim. Encenar essa ópera no Municipal é tentar juntar e embaralhar essas coisas porque em Piazzolla há uma questão do tango misturado ao jazz e à própria ópera. Maria de Buenos Aires foi composta nos anos 60, quando já havia uma presença forte do rock. No Brasil, tínhamos a contracultura, a tropicália. De alguma forma essas coisas aparecem para podermos experimentar, para poder usar e se enamorar com questões modernistas e pós-modernistas que nos marcam.

 

Como resposta à grande demanda dos espectadores para ver a ópera, o Theatro Municipal, de forma inédita, resolveu fazer uma projeção do espetáculo em sua área externa. Como você espera que o público receba essa montagem?

É um prazer saber que estamos com todos os ingressos esgotados, assim como é um prazer saber dessa iniciativa que o Theatro está empreendendo em fazer essa projeção na rua, algo inédito. É um presente da vida. Assim como o Rodrigo Lopes, o ator que faz o Doente, é um presente na minha vida. Ele é um narrador que não explica essa história. Ele não está ali para contar exatamente tudo, mas para juntar a poética da obra. Ele é um grande ator. Rodrigo Lopez, é uma pessoa que tem uma grande experiência como ator. Quando ele fala, ele também está enamorado da figura de Maria, que são todas as Marias em cena.

 

Como aparecem as raízes negras do tango na obra de Piazzolla e em Maria de Buenos Aires? Como vocês buscaram trazer isso para a montagem?

A questão da origem negra do tango – desse tambor que toca e que já tocava na África – é uma coisa pouco conhecida sobre esse gênero musical, e que eu faço questão de trazer à montagem. Temos muitas pessoas negras no corpo de baile; temos dois bailarinos negros; dos circenses, quisemos ter o máximo de pessoas negras em cena. Essa influência é muito importante e, de alguma forma, ressaltar isso é tentar trazer ao palco essa Argentina que já foi negra.

 

Como foi trabalhar com as prostitutas na montagem da ópera? O diálogo com elas foi importante para a encenação?

Não é uma surpresa para mim trabalhar com prostitutas. Inclusive, em dezembro, lançarei pelo Canal Brasil uma série sobre prostitutas intitulada Puta retrato. Portanto, eu as conheço, elas são minhas amigas. Nós temos uma relação muito boa de intimidade, que traz uma frescura para as telas e para o palco. Isso me interessa muito porque elas não são atrizes: elas são performers, mas que, no palco, se convertem em atrizes. Isso é de uma beleza muito grande pra mim e percorre todo o meu trabalho. Não é a primeira vez que estou trabalhando com esse universo e tenho certeza que alguém que não tenha essa familiaridade encontraria dificuldades. Eu sou amigo, por exemplo, da Betânia Santos, a prostituta que abre o espetáculo, conheço suas filhas. Tenho uma relação de intimidade e amizade com essas pessoas e acho que é muito importante que o trabalho sexual seja reconhecido da forma que merece no Brasil.

 

Quem é Maria de Buenos Aires para você?

Acho que podemos falar de Marias, no plural. Não tem como falar Maria no singular. Estamos falando de mulheres poderosas, lutadoras, mulheres que, de alguma forma, foram discriminadas pela sociedade, mas que chegam com toda a potência, com todo o frescor da luta, do desejo. Então, assim, durante quatro récitas, a Maria será a Luciana, durante as outras quatro, será a Catalina, mas as Marias também são as prostitutas que estão no palco. As Marias também estão retratadas nos circenses. Catarina, que é uma bailarina maravilhosa, é também uma Maria. Acho que sempre temos que falar no plural, Marias de Buenos Aires.

 

Piazzolla parece se abastecer com o que há de mais marginal na cultura de sua época para construir uma obra que transita entre o popular e o erudito. Você acha que essa estratégia pode ser válida para artistas hoje?

Essa relação entre o popular e o erudito deve ser cultivada o tempo todo. Ela deve estar presente nos nossos sonhos diários. A gente tem que transitar nisso. Com Maria de Buenos Aires, vemos o Theatro Municipal, que é o lugar da erudição, o lugar do clássico, sendo aberto para o poroso e para o encontro com o popular. E Piazzolla já trouxe isso. Tem músicas no meio da ópera que são hits, músicas extremamente populares. Isso é o interessante em trabalhar com o que ele chamou de operita.

Deixe o seu comentário

Novembro

TV Cult