Notícias de outras ilhas: Marcos Siscar

Notícias de outras ilhas: Marcos Siscar
(Foto: Divulgação)

 

Marcos Siscar publicou Manual de flutuação para amadores (2015) e Isto não é um documentário (2019), entre outros livros de poemas. É também professor da Unicamp, autor de livros de ensaios como Poesia e crise (2010) e De volta ao fim (prêmio Jabuti 2017).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica textos de Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Raduan NassarA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário do poeta abaixo.

 

O confinamento parece ter trazido sentimentos contraditórios. Renovou, de imediato, alguma ideia dolorosa de exílio – do exílio dentro de casa. Mas foi revelando também a importância de nosso vínculo (pra dizer como Drummond) com “o tempo presente, os homens presentes”. Num certo sentido, nunca nos sentimos tão pouco ilhados como agora. A privação do encontro em presença acabou gerando a urgência de outras formas de contato, facilitadas pelas redes sociais. O exílio trouxe o desejo de notícias (como em outros tempos, o envio de cartas, jornais, postais, fotografias e objetos diversos de um cotidiano distante). Em poucas semanas, a necessidade de relação ganhou urgência inédita e dramaticidade. Certa ideia de “comunidade” reencontrou seu conteúdo sensível, ainda que virtual.

Ao mesmo tempo em que a solidão se tornou tema comum de escritos e conversas, prorrompeu também a “cavalaria” (para usar o termo de Guimarães Rosa) dos compartilhamentos: textos, leituras, gravações de vídeos, entrevistas, debates, cursos, números especiais, traduções, séries de artigos, lives, encontros virtuais, ações diversas com e para os poetas. O arquipélago da “poesia contemporânea” se mostrou ativo e acolhedor (como os artistas, de modo geral), reativando a ideia de que, do exílio e da ausência, podem nascer outras experiências de comunidade.

Creio que “Notícias de outras ilhas”, de Tarso de Melo, é exemplar nesse contexto. Apesar do isolamento, as ilhas do presente da poesia se reconhecem como rede de “notícias”, feixe de relações – uma espécie de arquipélago, cercado de riscos e de cuidados por todos os lados. Parece que aceitamos colocar entre parênteses, por um instante, alguns ritos da vida literária para cultivar esse traço mínimo da convivência, compartilhar ideias, prazeres, circunstâncias; ou seja, cultivar a sensação crua de que “estamos juntos”.

O arquipélago não é apenas uma justaposição múltipla de ilhas, mas uma rede. Visto de cima, ele certamente revelaria “o jogo das ilhas” (como diz Clarice Lispector) e o mar que as cerca. Revelaria inclusive outros arquipélagos espalhados no imenso azul (lembrando que a etimologia de “arquipélago” diz respeito ao mar, e não às ilhas). Os arquipélagos são tramas de ilhas.

Visto da ilha, o arquipélago da poesia passa a sensação de que não estamos sós. Quando é que a poesia não está só? Foi com essa pergunta e com essa motivação que resolvi escolher três textos de livros que não são normalmente considerados como poesia, mas que têm uma qualidade de relação com os limites da linguagem que prefiro chamar de poesia. Não são poemas no sentido estrito, tampouco poemas “desentranhados” da prosa. São notícias de outras ilhas, logo ali. O que têm de interessante é justamente o modo como lidam com as fronteiras.

Ir na direção das fronteiras é sempre de alguma maneira, paradoxalmente, ir para casa (para retomar o fragmento de Raduan Nassar). “Estamos indo sempre para casa” quando saímos em direção ao exílio. Caminhar para o vertiginoso vazio é comparável à volta para aquilo que jamais será o mesmo. O exílio como em casa: esse o drama da casa, esse o drama da ilha, quando a morte, a desigualdade e a intolerância se espalham no mar à nossa volta.

Esse também o drama da poesia – a compartilhar – quando o paradoxo do exílio que é a casa ganha sua mais terrível forma de realidade.

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De “Pé-duro, chapéu-de-couro”, em Ave Palavra.

À cavalga

Guimarães Rosa

Eis senão vamos. Por lá e lá e lá, passantes de uns seis centos. Corre, de ponta a ponta, um silenciado, fio dentro do rumor em que as bulhas se dobraram. Apaga-se o apinho do povo, as zabumbas dos zabumbeiros. Sinuosa, funda, recua alalém, por rua e praça, a perspectiva povoada de um estradão campeiro, cheio de manhã, caminho do vaquejo. Somam-se, simultâneos, os perfis de homem, homem e homem, inscritos em esquema, pululantes na linha repetida dos chapéus de couro, sobrelevando o cabecear dos cavalos, o travado raplaplo, cruzo último de ritmos, série de desmoverem-se, sus e jus, compasso de não bulir, e o esbregue rijo de arreatas, brida a brida, arção a arção, espenda a espenda. O chão se dá. Os cavalos contritos. Filas e fileiras se armaram: sem ababelo, sem emboléus, tal, e al, contêm-se os vaqueiros, de aguarda. O formo deles se preencheu, térreo, barroso, lei dum rio de dezembro. Esses contingentes, hoje e ontem de pequeno chegados — remessas do escol da vaqueirama geral, da grei comarcã dos tabuleiros escabrosos — agora coeridos, concorpados num regimento. E eis, no homogêneo, os boágides. A em passo pronta cavalaria. Prorrompem.

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De Água viva

Clarice Lispector

Este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha sua secreta redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto voo. Então adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares. Entende-me: escrevo-te uma onomatopeia, convulsão da linguagem. Transmito-te não uma história mas apenas palavras que vivem do som. Digo-te assim:

“Tronco luxurioso”.

E banho-me nele. Ele está ligado à raiz que penetra em nós na terra. Tudo o que te escrevo é tenso. Uso palavras soltas que são em si mesmas um dardo livre: “selvagens, bárbaros, nobres decadentes e marginais”. Isto te diz alguma coisa? A mim fala.

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Capítulo 6 de Lavoura Arcaica

Raduan Nassar

Desde minha fuga, era calando minha revolta (tinha contundência o meu silêncio! tinha textura a minha raiva!) que eu, a cada passo, me distanciava lá da fazenda, e se acaso distraído eu perguntasse “para onde estamos indo?” – não importava que eu, erguendo os olhos, alcançasse paisagens muito novas, quem sabe menos ásperas, não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: “estamos indo sempre para casa”.


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