A ridicularização da política

A ridicularização da política
O deputado Jair Bolsonaro (Foto Marcelo Camargo/Agência Brasil/Arte Andreia Freire)

 

 

Não costumo publicar entrevistas nesta coluna, mas como as perguntas do Juremir Machado valem mais do que as respostas que tentei apresentar – e  que foram publicadas no jornal Correio do Povo, que circula no Rio Grande do Sul -, acho que está valendo (além de tudo, estou escrevendo um romance e minha cabeça está lá…).

Que as perguntas e as respostas (sempre inconclusas) nos façam pensar nesses tempos em que o Ridículo Político é cada vez mais infinito e as cenas inacreditáveis continuam nos mostrando sinais para mudar de rumo em termos éticos e políticos.

O ridículo na política, analisado no seu livro, é uma forma de esvaziamento da democracia rentável para certos setores?

Certamente, rentável e muito útil para todo um processo de absolutização do capital ao qual tudo deve servir. Isso dentro de uma cenário em que a imagem é capital. O ridículo político é a nova vitrine da capitalização política. Ele é uma mutação na cultura política que não surge espontaneamente, mas por um processo histórico no qual percebemos a transformação da esfera política em esfera publicitária. A política sempre teve uma dimensão teatral, cênica, mas no contexto da sociedade do espetáculo, na era digital que avança sobre nós e por dentro de nós, a política foi rebaixada a mercado e os políticos não são apenas personagens em um palco, mas surgem como mercadorias expostas em uma vitrine. Daí a impressão que temos de que estamos diante de um show de horrores quando vemos a atuação deles em certos contextos, tais como aquele momento da votação na câmara dos deputados do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. A democracia está desmoralizada em um sentido técnico. Não há mais moral, muito menos ética, e ela mesma de nada vale senão como acobertamento de uma democracia falida ou de fachada. Por isso, não há mais o valor da verdade. O cinismo que impera tem a ver com esse novo estado de coisas em que se pode falar todo tipo de “merda”, em um sentido linguístico mesmo, e ainda angariar simpatizantes e votantes com isso. Além do falar, há o fazer. Os políticos das cenas ridículas são despreparados para seus cargos. De Berlusconi aos pastores neopentecostais brasileiros campeões em participação em cenas ridículas, de Trump a João Doria que é um exemplo muito importante, estamos vendo crescer um fenômeno perigosíssimo que parece, tanto para os otimistas quanto para os ingênuos, algo inofensivo.

Por trás da ideia do país da piada pronta se esconde no Brasil um cinismo que pode se transformar em descrença na política?

A crença na política é desenvolvida numa linhagem humanista e idealista, depois utopista, romântica e socialista. Refiro-me a produções sistemáticas de teorias e visões de mundo que nos propuseram um ideal de sociedade. A politização era o caminho para efetivar visões mais ideais. Em nossa época aspectos ou elementos idealistas e utopistas que fizeram parte dessas visões de sociedade estão em baixa. Venceu uma certa ideia de prática que em tudo evita o refinamento de sua própria posição, o que só aconteceria pela reflexão. É a substituição da política pela economia, do político pelo gerente, pelo sujeito da gestão. Isso se dá à esquerda e à direita, mas enquanto na esquerda isso é ônus, na direita isso é bônus. Se alguém é um político ruim à esquerda pior para ele e para todo mundo, porque ao defender um ideal social, ao defender a coisa pública, está defendendo um mundo melhor para todos que deve se realizar conforme a promessa. Já aquele que é um político ruim à direita, não faz mal nenhum, pois não há uma preocupação ideológica com o bem de todos, com um ideal de sociedade. Por isso, as pessoas despolitizadas até suportam os corruptos da direita, enquanto que odeiam os da esquerda. Os valores do individualismo são mais fáceis defender porque não são exatamente valores morais e éticos, mas apenas garantia do benefício próprio. Por trás desse cenário há uma ideologia que tem uma astúcia impressionante, a de fazer-se passar por não ideológica. Ela se propõe como uma aposta concreta e útil na prática, ao mesmo tempo que descarta o pensamento. Toda reflexão, sob o seu prisma, torna-se firula inútil. Essa visão promove-se como algo útil enquanto ao mesmo tempo etiqueta tudo o que não se submete ao seu jogo como inutilidade. As visões mais idealizadas de sociedade dependem sempre de imaginação e reflexão, de uma alta sensibilidade que em tudo se liga à inteligência como capacidade de sonhar, de criar, de sugerir mudanças, transformações e soluções. É essa subjetividade capaz de sonhar e de propor uma sociedade com outros valores ou princípios que é destruída por uma ordem ideológica na qual o sonho de uma sociedade mais justa para todos está proibido. Essa ideologia chama-se neoliberalismo. Ele é responsável por plantar a descrença na política tratando a política como uma inutilidade diante da absoluta utilidade do mercado. O mercado é a forma do útil em seu estado mais puro.

As pessoas deixam gradativamente de sonhar em termos sociais, quer dizer, em termos políticos. São levadas a isso, porque não podem amar a política, já que pensam que a política não lhes dá nada em troca. Cada um está convencido de que a vida política não faz sentido, mas não observam como ela faz sentido para as elites, inclusive as formas novas de elitização, que, no livro, chamei de elite brega. As pessoas comuns, ou não sabem da prática da cidadania ou acham que ela não tem sentido. Quem ganha algo com a política continua a adorar permanecer nela. Pode ver: homens (porque as mulheres foram convencidas de que não ganham nada com política ou de se evitará que elas participem por mil caminhos), empresários, banqueiros, aqueles que usam o campo político para defesa de seus interesses privados em geral gostam de política. João Dória venceu a eleição para a prefeitura de São Paulo propondo-se como “não político” enquanto, filiado a um partido político, fazia campanha política. Em tudo ele é político, mas o elemento cínico de sua fala está em dizer que não é político. É uma desfaçatez, mas sobretudo, tornou-se uma estratégia. Os políticos de hoje para se elegerem aproveitam essa estratégia.

Por que Michel Temer e Jair Bolsonaro são os primeiros exemplos de ridículo político que lhe vem à cabeça?

A ideia do RP remonta ao espanto que sempre tivemos com Berlusconi fora do Brasil ou com Tiririca no Brasil. Michel Temer tornou-se um personagem exemplar, quando ainda fazia papel de vice. Jair Bolsonaro figura em várias cenas do Ridículo Político. Uma diferença importante no meu livro é que o Ridículo Político é uma categoria de análise geral que serve tanto para analisar o parlamento, as instituições do poder, mas também o cotidiano como instância da vida política. Meu foco não foram os políticos enquanto “ridículos” como costumamos tratar em um sentido mais vernacular, digamos assim, ainda que certos personagens entrem com frequência nas cenas do ridículo político. Eu quis responder à pergunta “como é possível que certos personagens conquistem tantos votos, se capitalizem politicamente justamente onde todos se sentiriam envergonhados e humilhados?”

Pierre Lévy saudou a internet como embrião de uma democracia virtual. Para Umberto Eco as redes sociais deram voz aos imbecis. O ridículo na política tem sido ampliado pelas fake news, pela pós-verdade e pelo fascismo disseminado no ciberespaço como lugar situado aquém ou além do social?

Podemos interpretar a vida política a partir das condições da cultura. Nunca esqueço a frase de Adorno e Horkheimer: a racionalidade técnica é a racionalidade da dominação. Em certo sentido, isso quer dizer que tudo o que pensarmos sobre o poder deve hoje em dia referir-se às condições tecnológicas que o instaura e sustenta. Essas condições hoje são digitais e espectrais, não podemos fugir disso.

Marcela Temer presta um mau serviço ao combate ao machismo e, de certo modo, se ridiculariza aceitando um papel anacrônico?

Essa é uma personagem curiosa, porque ela aparece com uma espécie de prótese política que não vingou na tentativa de melhorar a péssima imagem de seu marido. Michel Temer tem a maior rejeição da história, o que não é brincadeira para um político. Ele não existe nem mesmo no contexto em que a política se torna publicidade. Eu diria até que ele contribui hoje para desmoralizar o cargo de presidente, evidentemente como não poderia deixar de ser ao usá-lo ilegitimamente. Mas Marcela Temer não tinha qualidades que permitissem ajudá-lo realmente nesse processo de melhoria de imagem. Ficamos sabendo que ser “bela, recatada e do lar” é um mico. Para convencer o povo é preciso mais que isso, mais no sentido de melhor e de pior. Ela se colocou, ou foi colocada, como uma figura patética ao lado do marido e isso de nada serviu. No livro eu analiso o conceito de “madamismo” para dar conta desse fazer tipo, dessa atuação em torno de um tipo e de um padrão de gosto estético que inclui imagens como a dela e, ao mesmo tempo, todo uma população ligada a uma classe social que também faz tipo de “madame”, o que define o esteticamente correto como acobertamento do politicamente incorreto que conhecemos bem, mas que acabamos por disfarçar.

O ridículo é mais forte na política ou pode ser considerado como a marca de um tempo estética e culturalmente dominado pela adulação e infantilização das pessoas como públicos a cativar?

Meu livro trata especificamente da politização do ridículo que é, ao mesmo tempo, uma ridicularização da política. Meu interesse é mostrar que não se trata nem de comédia, nem de piada, mas de uma mutação grave na ordem da política e que isso tem a ver com indústria cultural, com sociedade do espetáculo, com uma cultura do “não levar a sério” que nos torna a todos otários de um círculo cínico.

Os políticos perderam o medo e a vergonha do ridículo?

O ridículo se tornou útil. Ele é um meio de obtenção do poder, como uma isca estética. O que Bolsonaro e outros fazem é capitalizar em cima disso. Essa a inflexão que o meu livro analisa: aquilo que era vergonhoso, tornou-se, por muitos caminhos, bacana. Onde antes alguém sentiria vergonha, hoje se torna sujeito do poder institucional com a adesão pública. Enquanto eles não sentem mais vergonha, ou se sentem, não se apresentam, nem agem a partir dela, a população que se mantém lúcida, sente vergonha alheia. A vergonha alheia é um efeito da falta de vergonha de quem, por envolvimento com o ridículo, deveria senti-la, mas não sente.

A mídia é a grande disseminadora de uma cultura do ridículo?

Na medida em que os meios de comunicação de massa vivem da imagem como mercadoria, sim. Que tipo de imagem é vendável em nossa época de pouco pensamento e pouca sensibilidade? A imagem fácil da piada. Ora, não existiria ridículo político sem sociedade do espetáculo. O ridículo político sempre é espetacular. O clima de palhaçada, de bufonaria da política é uma tecnologia do poder para encantar multidões. O ridículo político define um campo do constrangimento ético e estético ao mesmo tempo: afasta quem quer falar sério e capitaliza os mais histriônicos. Vence quem aparecer mais, mesmo que não tenha competência, nem conteúdo. Daí o sucesso de alguns personagens que manipulam simplesmente o campo do aparecer porque só o que importa é aparecer para se conquistar mais adesão.

A sociedade do espetáculo é o triunfo da estética do ridículo?

É a sociedade do espetáculo, como campo de relações mediada por imagens, como capitalização da imagem que dá as condições de possibilidade do ridículo político. Mas esse ridículo não é puramente estético, ele é também ético, ou seja, atua na ordem dos comportamentos, dos valores, das ideias, do tratamento do outro. A aparência “esteticamente correta” serve para acobertar preconceitos, ou para torná-los palatáveis e, assim, naturalizá-los. O que se pretende com isso? Sustentar os interesses das classes dominantes e do poder.

Há um vínculo entre intolerância e ridículo na política?

Há um vínculo com os preconceitos. O sistema de preconceitos é complexo e se vale sempre de artimanhas estéticas. Na verdade, podemos dizer que os preconceitos se sustentam esteticamente. A beleza, por exemplo, é uma valor branco, heterossexual, machista, capitalista. Vários preconceitos são sustentados a partir do valor capitalista-machista-branco-heterossexual da beleza.  Logo o “esteticamente correto” precisa ser desmascarado. Foi o que eu tentei fazer com o meu livro. Mostrar a política que está pro trás da estética e a estética servindo de fachada à política na era de sua destruição publicitária.

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