Manifesto artificial: contra a passabilidade estética

Manifesto artificial: contra a passabilidade estética
Que nós, pessoas trans, reivindiquemos o reconhecimento de nossas identidades (Arte Revista Cult)

 

Muitos de nós têm uma noção negativa de tudo aquilo a que chamamos “artificial”.

Essa condenação moral se dá pela noção de que o artificial é criação do homem em oposição à criação de Deus: a natureza. Essa audácia do ser inferior não poderia ser tolerada à convenção moral da cultura que construiu a divindade. A manutenção destes valores antagônicos de natureza versus artificialidade é parte do processo para a permanência da série de dogmas que organizam a civilização.

O medo, a resistência e a violência contra o artificial são defesas inatas das estruturas que teme-se corroer, levando assim a seu desabamento e o consequente soterramento da civilização. Aceitar a artificialidade a colocaria em igualdade com a natureza, abrindo brecha para colocar-se em cheque uma série de conceitos estruturais.

Podemos notar o preconceito ao artificial em qualquer modificação corpórea cujo resultado não seja harmônico à expectativa dentro do padrão.

Os originados pela natureza com os chamados “erros”, como pessoas com condições físicas ou mentais diversas, também sofrem a exclusão, ao mesmo tempo em que despertam o hipócrita sentimento da compaixão automática por suas insuficiências. Mas ainda assim são naturais.

Aqueles que rompem com a natureza biológica por desejo são traidores, desertores, e merecem toda a marginalização, incluindo a rejeição e a violência que se acentuam de acordo com a escala de gravidade moral da artificialidade em um sujeito.

Alguém que mude a cor ou a forma de seus cabelos e não soe suficientemente natural sofre represália social de forma branda, enquanto uma pessoa que faz modificações corporais para ter a imagem de um réptil alcança o máximo da rejeição, não à toa sendo associada à doença, ao mal, ao diabo, ou seja: ao anti-natural.

Não é surpreendente, então, que nós, pessoas transgêneras, provoquemos um enorme mal estar a uma sociedade que conserva os conceitos de moral, padrão, natureza e Deus. Imaginam que, se não queremos nossos corpos como de animais ou alienígenas, talvez queiramos nos igualar ao próprio Deus criando em nós mesmos outros seres humanos. Heresia.

A sociedade não pode permitir que nasça uma mulher ou um homem de suas próprias mãos, como criação do indivíduo, seja lá por que motivos este for levado a tais transformações (em geral, apenas trata-se da necessidade de adequação externa do real ser interno).

Não por acaso, quanto menos soarmos artificiais, menos nós, pessoas trans, estaremos expostas ao preconceito. A chamada passabilidade não nos garante imunidade, mas é um salvo-conduto para a sociedade, que nos recompensa perversamente por nossas adequações a seus padrões.

É compreensível que nós busquemos a passabilidade estética, mas não podemos permitir que ela apague nossas identidades trans. Nossa identidade artificial.

Reivindiquemos então que nossas artificialidades sejam respeitadas e congregadas na coabitação do mesmo tempo e espaço. A artificialidade não é quimera, porque está em nossos corpos.

Utilizemos a tecnologia para esculpir nossa morada de carne. Sejamos apliques e próteses e químicas. Ou nada disso. Apenas o que desejamos e somos. Não nos conformemos com a cultura e seus padrões civilizatórios. Reivindiquemos o reconhecimento de nossas identidades.

Sejamos artificiais.


LUH MAZA é mulher trans, dramaturga, diretora e crítica de teatro

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