Privado: Manifesto ao espectador contemporâneo
“Pero de que nos sirve la verdad que tranquiliza al propietario honesto? Nuestra verdad posible tiene que ser invención…” (Julio Cortázar, Rayuela)
Muita gente vai ao teatro e se aborrece. Outros acham a peça de mau gosto. Outros ainda não compreendem o que estão vendo (sem perceber que, sendo a análise muitas vezes uma desvantagem, o melhor mesmo é se divertir). Existem os espectadores obedientes, que reagem a tudo com aquele tipo de admiração resignada, e os bélicos, que travam uma luta aberta com qualquer tentativa de significação. Há os que reduzem o que veem a um mero exercício eficaz e luxuoso de insensatez. E há aqueles também que concordam com a loucura toda e se entregam de corpo e alma à farsa. Muitos são os modos de fazer teatro e incontáveis os tipos de espectadores. Mas, basicamente, um indivíduo assiste a um espetáculo teatral por três razões: para se divertir, para jogar (o jogo que toda arte, a rigor, propõe e que algumas línguas, como o francês e o inglês, no caso do teatro, aproximam da noção de interpretação) e para conhecer melhor a si mesmo e ao outro. Nota-se que motivações clássicas, como “Para adquirir mais cultura” ou “Para ficar mais inteligente”, não entram aqui, por representarem os estereótipos culturais burgueses de “acumulação” e “ornamento”.
Pelo fato de o teatro ser uma arte concebida a partir de uma transgressão primordial – atores são seres que ousam ultrapassar a medida e sair de si – e possuir uma trajetória histórica que quase sempre lhe conferiu um poder de combate notável (seja pela mais intrincada ideologia transmitida, seja pela simples arma do convite ao riso), é possível acrescentar uma quarta motivação à lista: podemos ir ao teatro também para vermos abaladas nossas próprias convicções. Muitas vezes dispomos das convicções mais arraigadas como portos-seguros do bem-pensar e do bem-agir, quando elas não passam, simplesmente, de falsas-consciências. Seguem seis das certezas mais comuns que o teatro pode ajudar a derruir. As três primeiras dizem respeito a formas tradicionais às quais o espectador acaba se acostumando. Por serem historicamente consolidadas, parecem perenes e definitivas. Não são. As três últimas tratam de conteúdos que o teatro, dada a relação presencial ator-espectador, pode explorar de maneira bem mais radical e percuciente do que as demais artes.
Primeira convicção a ser abalada: a noção de gênero. A partir do modernismo, a arte de modo geral rompe programaticamente com a ideia de gênero, sendo possível misturar o lírico, o trágico, o dramático, o épico e, acima de tudo, propor o “romance dentro do romance” e o “teatro dentro do teatro”, como, aliás, já haviam feito, respectivamente, Cervantes e Shakespeare, verdadeiros artífices da liberdade de criação moderna da qual somos tributários até hoje. O teatro nos dias atuais tem se valido reiteradamente de um expediente que podemos chamar de circulação de gêneros, sobretudo entre o dramático e o pós-dramático e entre o ficcional e o documental, isto é, o “dentro” e o “fora” da peça – “blasfêmia” que o drama realista do século 19, por exemplo, reprovou por completo. O respeito excessivo ao gênero, no teatro, submete a fruição da experiência ao maneirismo da forma. “Não existe pureza de gêneros em sentido absoluto”, adverte Anatol Rosenfeld.
Segunda convicção a ser abalada: a noção de texto. Embora o repertório de peças escritas desde os gregos seja vastíssimo e esteja ao alcance de artistas e público até hoje, o teatro não é essencialmente uma arte literária. É muito comum que se confunda a arte do espetáculo com a literatura dramática e se repudiem soluções que “fugiriam” ao texto ou ao que o autor queria dizer. O texto, no teatro contemporâneo, perdeu o estatuto de elemento organizador do espetáculo, e o autor deixou de ser um deus todo-poderoso. Atores e diretores continuam se debruçando sobre palavras e frases, agora criadas pela natureza coral dos processos colaborativos, que também implicam uma mudança na relação texto-espectador. Quando retiramos o discurso de outrem do pedestal, ficamos livres para ser coautores da escritura teatral. “Na cena do texto não há ribalta: não existe por trás do texto ninguém ativo (o escritor) e diante dele ninguém passivo (o leitor); não há um sujeito e um objeto”, assevera Roland Barthes.
Terceira convicção a ser abalada: a noção de espaço cênico. Embora o teatro tenha nascido ao ar livre e logo ocupado praças e ruas, ainda é muito forte em nós a vontade de nos sentarmos em poltronas confortáveis – dispostas diante do chamado palco italiano, que nos oferece uma visão bastante objetivada das ações – dentro de edifícios suntuosos ou impregnados de história. Muitas companhias hoje (que a sensibilidade lexical moderna chama de coletivos) ocupam os mais surpreendentes locais da cidade, abertos ou fechados – para celebrar a arte de Dioniso. Atender ao chamado que essas derivas urbanas empreendem pela pólis já é, em si, uma atitude política. E o arremate da semântica não poderia soar melhor. Teatro não quer dizer “lugar confortável e aconchegante”. Teatro em grego significa, simplesmente, “local de onde se vê”.
Quarta convicção a ser abalada: a noção de entretenimento. O apelo constante à necessidade de diversão, embora esta seja uma moeda cada vez mais poderosa no mundo das artes e da comunicação, pode se transformar na mais ilustrada das alienações. A arte tem nos convidado, por exemplo, a entrar e a sair ludicamente de seus próprios mecanismos de criação, proporcionando-nos uma aventura agradável. Entretanto, muitas vezes, o lúdico e o divertido acabam se revelando perfumes venenosos, borrifados como distrações do espírito. (A etimologia de “distrair” implica a noção de “desvio do caminho”. E o que não é a cultura moderna senão um reiterado exercício de distração do que seja verdadeiramente essencial?). O teatro pode e deve naturalmente divertir, mas com a ousadia de levar o espectador a assumir um percurso radical: desviar-se rumo àquilo que o atraia de modo essencial.
Quinta convicção a ser abalada: a noção de sentido. Muitas vezes, somos enredados no mecanismo de produção de sentidos unívocos, artificialmente construídos, mas que parecem tão naturais. O senso comum nos confere uma infinita liberdade de produzir significação (máxima, quanto a detalhes, vale acentuar), mas acabamos nos submetendo àqueles que detêm o poder de fixar o sentido único das coisas. O teatro é uma arte que leva o espectador a renunciar aos conluios semânticos e a violar as regras dos significados vigentes.
Sexta convicção a ser abalada: a noção de eu. As criações teatrais mais penetrantes da atualidade tratam da natureza intersubjetiva do fenômeno teatral, tecida a partir do desejo do espectador de se relacionar plenamente com o outro, à custa mesmo da perda de referências individuais, pessoais, psicológicas etc.. a que tal envolvimento possa conduzi-lo. (Palavras como subjetividade e desejo estão sendo pouco a pouco expulsas do léxico da arte, da cultura e da educação. O “eu” hoje não é capaz de se relacionar com aquilo com o qual ele rapidamente não se identifica ou, indolentemente, não tem vontade de se relacionar).
Essas são algumas das proposições capazes de serem defendidas pelo teatro – uma das poucas artes da atualidade ainda não plenamente seduzidas pelos ditames da tecnologia e pelos apelos da indústria cultural. À tipologia de espectadores apresentada no início desse texto (livremente adaptada de um conto de Julio Cortázar – “Instruções a John Howell” – que confere à representação teatral um poder que a um só tempo fascina e desconcerta; vale a pena conhecer) podemos acrescentar mais um tipo: o espectador-criador, cuja busca, ao ir ao teatro, transcende os sentidos ordinários e vai ao encontro da invenção permanente. Quantos de nós, espectadores (e também leitores, alunos, cidadãos…), estamos dispostos a assumir o exercício de confrontar nossas convicções mais íntimas, caminhando por trajetórias que nos levem a impasses quanto a quem verdadeiramente somos e ao que essencialmente desejamos? Se Hamlet pode ser espectador de si mesmo, nós também podemos nos transformar em personagens de ficção, propõe o escritor mexicano Carlos Fuentes. Aquele tipo de ficção para a qual a prática da alteridade se torna a autoindagação mais verdadeira.