Mãe só há uma, mas o roubo é sem fim. Sobre o novo filme de Anna Muylaert
por Marcia Tiburi
O filme de Anna Muylaert não é sobre maternidade. Pelo menos não é só sobre maternidade. Mãe só há uma é um filme sobre adolescência, mas também não é um filme que trata apenas desse tempo de limbo corporal e psicológico do qual depois, como adultos, ainda nos ressentimos. É muito mais um filme sobre o direito à diferença, tão mais simples de sentir quando estamos nesses tempos de exceção. Mas isso também não o resume.
Corre sob a história e o roteiro de Mãe só há uma muitas questões que olhares jovens e adultos observarão com interesses e recortes os mais variados.
Um momento a meu ver fortíssimo sobressai no filme. Ele reflete uma angústia genérica e, ao mesmo tempo, ainda inominada em nossa cultura. Trata-se daquele momento em que Pierre (que um dia foi Felipe, se tornou Pierre e voltou a ser Felipe sem deixar de ser Pierre) diz à sua mãe biológica (a mesma atriz interpreta as duas mães do filme, o que coloca no nível da imagem a questão “mãe só há uma”, o que significa também que todas as mães que possam existir serão sempre a mesma? Poderíamos desconstruir essa figura genérica? Deveríamos?) que foi roubado duas vezes.
Pierre, ou Felipe, foi roubado duas vezes. Isso quer dizer que, no ato de ser devolvido à sua família de origem, ele é novamente roubado.
Como Pierre, ou Felipe, uma vez roubado da maternidade e outra vez roubado do cotidiano familiar, na qual vivia com a mãe e a irmã, uma escola, um bairro, uma realidade na qual se acostumou a viver, penso agora em quantas vezes fomos roubados de nós mesmos.
O filme de Muylaert, personagem e história, nos dá de presente essa questão que se pode expor de muitos modos: Do que fomos alienados? O que realmente perdemos ao longo da vida? Quem somos desde que perdemos aquilo que nos constitui? Que história nos pertence? A que história nós mesmos pertencemos?
A questão que o jovem Pierre nos traz é, portanto, a questão biográfica. O que foi feito de nossa biografia? Como poderemos contar e viver nossa história desde que somos objetos de instituições, de famílias, de pessoas, de leis e normas que nem sempre nos concernem? E como não transformar essa angústia em gozo narcísico? Como ser singular sem iludir-se com o individualismo?
Penso agora, quando a democracia nos foi roubada, que esse processo vem de muito tempo e está entranhado na estrutura do sistema econômico e político, esse sistema que administra a sexualidade, o gênero, a raça e as classes oprimidas para aniquilar o corpo físico que resiste sempre rebelde a toda opressão? Não somos sempre roubados de nossos corpos e de nossas próprias histórias?
Penso agora como poderemos contar quem somos se todo o sistema social e econômico apenas nos rouba de nós mesmos em um processo que não parece ter fim? Não seria esse o grande roubo, o grande desvio do que realmente importa? Um desvio do sentido ético da própria política? A corrupção espetacular atual não seria apenas uma cortina de fumaça dessa corrupção mais profunda que concerne ao sistema? Esse sistema que nos aniquila como pessoas?
A questão é profunda e não espero vê-la respondida tão cedo. Apenas posso agradecer a Muylaert por tê-la colocado de um modo tão sincero e tão poético por meio de cenas cotidianas tão perfeitas.