Macri é uma vitória da impunidade dos crimes da ditadura argentina?
Quanto a mim, eu não tinha dúvida, na época, de que a todo momento cada um de nós, homem, mulher, criança, talvez até o pobre cavalo velho que gira a roda do moinho sabia o que era justo: todas as criaturas vêm ao mundo trazendo com elas a lembrança de justiça. “Mas vivemos em um mundo de leis”, eu disse a meu pobre prisioneiro, “um mundo de segundos colocados. Nada se pode fazer a respeito. Somos criaturas decaídas. Tudo o que podemos fazer é preservar as leis, nós todos, sem deixar a lembrança de justiça se apagar.
(COETZEE, J. M. À espera dos bárbaros. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 183).
Não há dúvida de que a recente vitória eleitoral de Macri para presidente da Argentina significou, em verdade, uma derrota das forças populares e progressistas.
Diante desse cenário, as conquistas sociais e os avanços em direitos humanos do período kirchnerista são, automaticamente, colocados em questão, sobretudo se lembradas declarações machistas, homofóbicas e reacionárias de Macri.
Não à toa, no dia seguinte à eleição, o jornal La Nación publicou um editorial intitulado “No más venganza”, em que ressuscitou a teoria dos dois demônios, equiparando o terrorismo de Estado com as guerrilhas, além de classificar estas como fascistas e associá-las aos atos terroristas do Estado Islâmico que acabaram de ocorrer na França.
Isso é bastante grave se considerarmos que a Argentina passou por sua mais recente ditadura civil-militar com um saldo de mais de 30 mil desaparecidos políticos. É mais grave ainda se considerarmos que o país vizinho é o que mais avançou na formulação e implantação de uma política de direitos humanos de memória e justiça, levando ao banco dos réus, entre 2007 e 2015, mais de 2700 pessoas acusadas por crimes contra a humanidade (http://www.cels.org.ar/blogs/estadisticas/).
A luta contra a impunidade, no entanto, nem sempre foi vitoriosa e teve uma dura e nada linear trajetória até alcançar o status de um patrimônio político e jurídico do povo argentino, que serve de paradigma para todo o mundo em termos de políticas de direitos humanos.
Assim, para responder à questão que dá título a este artigo, vale examinar o conturbado processo de desconstrução da impunidade na Argentina para que se compreendam os possíveis impactos dessa vitória da oposição no trabalho de memória e justiça.
As leis de perdão: um caminho de impunidade
Na Argentina, a última das Juntas Militares que governou o país viu-se enfraquecida após uma derrota severa na Guerra das Malvinas, somada com a crise econômica, além da crescente resistência de setores internos da sociedade argentina, que foram dinamizados e mobilizados pelas organizações de familiares de desaparecidos com apoio dos organismos internacionais de defesa e promoção dos direitos humanos. Vale destacar a cifra de mais de 30 mil desaparecimentos políticos que nutriu um ainda presente inconformismo profundo.
Essa situação preocupante do ponto de vista político para os militares, que viam antecipar-se uma saída do poder em condições de extrema deslegitimação, ensejou a outorga de uma lei de auto-anistia (Ley n. 22.924 de 27/09/1983). Tal dispositivo legal, no entanto, foi revogado pelo primeiro presidente civil eleito, Raul Alfonsín (Ley n. 23.040 de 29/12/1983). No entanto, após levar adiante o julgamento penal dos comandantes das três Juntas Militares que governaram de 1976 até 1983, pressionado por forças militares, teve de aprovar duas leis, conhecidas como Ley de Punto Final (n. 23.492 de 29/12/1986) e, diante da insuficiência dessa, a Ley de Obediencia Devida (n. 23.521 de 09/06/1987). A primeira estabelecia como prazo para o ajuizamento de ações um período de 60 dias após sua promulgação. No entanto, ao invés de frear os julgamentos que estavam em curso contra os militares, o prazo exíguo fez com que essas ações judiciais multiplicassem por vinte. A segunda, por sua vez, veio como remédio ao efeito colateral da primeira. Estabelecia a presunção geral e a priori de que os militares que praticaram atos de violação aos direitos humanos o fizeram cumprindo ordens e sob um clima psicológico de terror, o que justificaria a não punibilidade dos mesmos.
Apesar dessas leis, diversos processos ainda estavam sendo intentados contra os agentes públicos que cometeram crimes de violação aos direitos humanos. No entanto, no governo de Carlos Menem, este se valeu de uma prerrogativa constitucional atribuída ao presidente, editando uma série de decretos que concediam perdão não só a condenados, mas também àqueles que estavam sendo ainda processados sem que houvesse uma decisão final.
Nessa linha, primeiro foi editado por Menem o Decreto n. 1002 de 6/10/1989, que selou o perdão de 216 militares mais 64 membros das forças de segurança. Seguiram-se, ainda, outros decretos: o n. 1003, que indultou lideranças da luta armada, algumas inclusive mortas; o n. 1004, dedicado aos que comandaram as quarteladas de 1987 que levaram à promulgação da Lei de Obediência Devida; e o n. 1005, que consagrou o perdão dos responsáveis pela Guerra das Malvinas. As duas leis referidas, mais a série de decretos, conformam a política de perdão implantada na Argentina e que se manterá substancialmente em vigor em toda a década de 1990.
O primeiro juízo de constitucionalidade dessas leis de perdão foi realizado em 1987, no caso Camps, quando se decidiu que “o Poder Judiciário não deveria avaliar a conveniência ou a eficácia dos meios adotados pelo Poder Legislativo para atingir seus propósitos, exceto quando violassem os direitos individuais básicos ou fossem irracionais em relação aos fins que buscavam atingir”.
Assim, o Judiciário respaldava a impunidade total herdada do período Menem.
Rompendo a impunidade: a responsabilização dos torturadores
No entanto, diante da intensa judicialização dessa matéria na Argentina, acompanhada de um maior clamor popular e de intensa mobilização social, após duas décadas de legislações de perdão que impediram a continuidade de processos penais contra os agentes públicos da ditadura e mais de quinze anos depois dos indultos concedidos aos já condenados, em 2005, a Corte Suprema da Nação Argentina declarou insanavelmente nulas e inaplicáveis as Leis de Ponto Final e Obediência Devida em um caso concreto, conhecido caso Poblete. Esse leading case desencadeou a abertura de inúmeros juízos que ainda se encontram em curso. Outro caso importante foi o Mazzeo, julgado em 2007 na Corte Suprema de Justiça da Nação, no qual foram declarados nulos os indultos presidenciais editados por Carlos Menem.
Nesses casos, a Corte Suprema argentina afirmou seu compromisso com todos os tratados internacionais e com as orientações jurisprudenciais consolidadas pelo sistema interamericano de proteção aos direitos humanos. Em um acórdão de 275 páginas, esse órgão julgador declarou a nulidade das leis de perdão. Um dos principais fundamentos foi que “la creación de organismos de investigación y el dictado de normas por los Estados Partes que establecieron reparación pecuniaria a los familiares de desaparecidos u otras medidas semejantes no son suficientes para cumplir con las actuales exigencias del derecho internacional de los derechos humanos”.
Nesse sentido, a Corte Suprema fez questão de registrar a especificidade do direito internacional, inclusive no tocante à sua interpretação adequada, ao afirmar que “de nada serviría la referencia a los tratados hecha por la Constitución si su aplicación se viera frustrada o modificada por interpretaciones basadas en uno u otro derecho nacional”.
No que se refere às garantias penais nacionais, normalmente vistas como obstáculos à responsabilização criminal retroativa dos autores de crimes de lesa-humanidade, entendeu-se que o “encuadramiento de aquellas conductas investigadas en los tipos penales locales en modo alguno implica eliminar el carácter de crímenes contra la humanidad ni despojarlos de las consecuencias jurídicas que les caben por tratarse de crímenes contra el derecho de gentes”.
No caso argentino, ao enfrentar o caso Poblete, a Corte Suprema revisou seu entendimento anterior de 1987, declarando inconstitucionais e insanavelmente nulas as leis de perdão operadas não pela ditadura, mas pelos governos de Raul Alfonsin e Carlos Menem.
O papel fundamental do kirchnerismo
Sem dúvidas, foi fundamental para essa mudança a orientação política emanada do bloco do governo e, especialmente, do Poder Executivo. Os presidentes Nestor e, em seguida, Cristina Kirchner foram entusiastas de primeira hora e efetivos apoiadores das lutas pelos direitos humanos.
No entanto, a postura de seus governos refletia uma história de décadas de mobilização intensa de organismos de familiares de desaparecidos, que sensibilizaram a sociedade argentina para essa temática.
O direito à verdade, à memória e à justiça estruturado em boa medida a partir dessa luta contra a impunidade se enraizou e se tornou uma questão incontornável para os governos democráticos desse país.
Nessa linha, o episódio ocorrido com o jornal La Nación é um retrato bastante expressivo do que se seguirá com nossos vizinhos: a cada ofensiva aos direitos conquistados, virá muita resistência.
Com efeito, logo após a divulgação do referido editorial, uma assembleia dos trabalhadores do jornal se reuniu e expressou, publicamente, seu repúdio à linha editorial do empregador: “Los trabajadores del diario La Nación decimos SI a la DEMOCRACIA, a la continuidad de los juicios por delitos de lesa humanidad y decimos NO al OLVIDO. Por MEMORIA, VERDAD y JUSTICIA”.
Macri não conseguirá, impunemente, recolocar na ordem do dia a cultura da impunidade. O contexto é outro, e a sociedade estará atenta.
É fantástico ver como, na Argentina, a consciência política e a articulação da sociedade conseguem nos encher de esperanças até mesmo num momento de retrocesso.