Lutos invisíveis e o que há de inviável no luto
O filme A natureza das coisas invisíveis, escrito e dirigido por Rafaela Camelo, poderia ser facilmente acomodado dentro de uma tradição já conhecida do realismo mágico latino-americano — tradição na qual a obra de Isabel Allende permanece como uma referência quase inevitável —, não apenas pela presença do “sobrenatural”, mas sobretudo pela recusa em tratá-lo como exterior à experiência humana. O sobrenatural, aqui, não é um artifício de gênero cinematográfico, mas uma hipótese sobre os limites da percepção, algo que o próprio filme explicita em um diálogo memorável entre as personagens adultas Antônia e Simone, interpretadas por Larissa Mauro e Camila Márdila, respectivamente.
Contudo, reduzir o filme a essa linhagem seria injusto. A natureza das coisas invisíveis é, acima de tudo, um filme sobre o luto. Ou, mais precisamente, sobre a impossibilidade de um luto unívoco. O que se encena na tela não é um único trabalho de luto, mas uma constelação de lutos que se atravessam, se contaminam e se desestabilizam mutuamente.
Há, em primeiro plano, o luto diante do apagamento da memória. A demência da Bisa — bisavó de uma das protagonistas — não é tratada como mera degradação orgânica, mas como uma experiência radical de desarquivamento do sujeito. Não se trata apenas de perder lembranças: trata-se de ver ruir o próprio arquivo que sustentava uma narrativa de si. Não é casual que o nome correto da doença, Alzheimer, ecoe como uma espécie de índice do que Jacques Derrida chamou de “mal de arquivo”: a ameaça interna que habita todo arquivo, a pulsão de destruição que atravessa precisamente aquilo que pretende conservar. A Bisa não apenas esquece — ela encarna o drama de uma memória que deixa de se reconhecer como tal.
Há, então, um segundo luto, mais silencioso, mas igualmente estrutural: o luto associado à transição de gênero. Uma das crianças protagonistas do filme é uma criança trans. Esse dado, no entanto, não é explorado como bandeira, choque ou panfleto. Pelo contrário: é mantido em registro ético de delicadeza e de normalidade. A câmera adere ao ponto de vista das crianças — algo que se revela tanto nos enquadramentos quanto na altura ótica das tomadas —, e esse dispositivo é decisivo. O mundo ainda não está totalmente encoberto pelas ficções normativas de gênero. O que se perde, aqui, não é uma “essência anterior”, mas uma arquitetura imposta.
Nesse ponto, o filme dialoga, ainda que implicitamente, tanto com Judith Butler quanto com Paul B. Preciado. Em Butler, sabemos, a identidade não é aquilo que se descobre, mas aquilo que se repete; o “antes” cis jamais foi uma substância ontológica, mas uma ficção regulatória. O luto, nesse registro, não é a morte de um “eu verdadeiro”, mas o colapso de uma norma incorporada. Em Preciado, a ruptura é mais radical: trata-se de uma morte política do sujeito produzido pelo regime heterossexual. O que o filme capta, sem teorizar, é exatamente essa tensão: a transição como trabalho de luto sem túmulo, sem ritual público, sem gramática social estável.
Finalmente, há o luto diante da morte mesma — aquele que seria, em princípio, o mais clássico de todos. Mas o filme o recusa como encerramento. A morte não aparece como fim absoluto quando se admite, ao menos como hipótese narrativa, a existência de uma continuidade invisível: uma alma, uma consciência, uma persistência que desafia o racionalismo estreito. Aqui, o filme toca o ponto mais delicado da reflexão derridiana sobre o luto: talvez o verdadeiro trabalho do luto não consista em “desligar-se” do morto, mas em aprender a conviver com a sua permanência espectral.
Importa sublinhar: tudo isso é feito sem que o filme abandone o ponto de vista das crianças. Esse é um gesto político e estético de enorme força. O mundo adulto — e suas ficções cristalizadas, inclusive aquelas que estruturavam a identidade da Bisa — aparece, assim, como algo já atravessado pelo risco permanente do desarquivamento. A subjetividade adulta não é retratada como estabilidade, mas como arquivo sempre à beira da corrosão.
E há ainda um dado que atravessa silenciosamente a mise-en-scène: A natureza das coisas invisíveis é um filme feito por mulheres. Não se trata aqui de slogan, mas de constatação estética. O resultado se afasta radicalmente do olhar marcado por uma “testosterona” imagética que historicamente objetificou corpos femininos no cinema. Os corpos no filme não são apropriados pela câmera; são acompanhados. Não são consumidos; são escutados. Essa diferença não é retórica — é perceptiva.
O que o filme nos dá, enfim, é uma cartografia sensível do que poderíamos chamar de lutos invisíveis: o luto pela memória que se dissolve, o luto pela identidade que se desativa, o luto pela vida que não se encerra na morte. E, ao mesmo tempo, o que ele nos obriga a encarar é aquilo que há de inviável no próprio luto: a fantasia de que seja possível concluí-lo, encerrá-lo, arquivá-lo. Talvez o verdadeiro drama contemporâneo não seja o excesso de luto, mas a crença ingênua na possibilidade de sua conclusão.
No mundo de Rafaela Camelo, o invisível não é o que não existe. É o que insiste.
Jean Wyllys é jornalista, escritor e artista visual. Autor, entre outros livros, de “Falsolatria” (Editora Nós e Edições Sesc SP, 2024) e “O anonimato dos afetos escondidos” (Tusquest Edtores)





