Estante Cult | Livros, esses diabos sábios e maliciosos
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Uma pequena grandeza. Assim pode ser classificada a reunião dos quatro textos que integram o volume Como organizar uma biblioteca, de autoria do ensaísta italiano Roberto Calasso (1941-2021). Dono de espessa erudição e fina ironia, o autor presta uma homenagem muito original ao mundo das letras e à cultura do livro, não de forma saudosista e anacrônica e, sim, à luz da civilização ávida pela mediação das telas de cristal líquido como essa em que mergulhamos de cabeça nos últimos anos, sem conseguir voltar à superfície para tomar um pouco de fôlego e respirar.
Nascido na cidade de Florença no ano em que Benedito Mussolini enviou 230 mil soldados para se juntarem aos alemães na invasão da União Soviética, Calasso, filho de um professor universitário que militava contra o fascismo, demonstrou, desde muito cedo, um vivo interesse pela vida intelectual, dominando várias línguas e trabalhando por quase 60 anos como diretor – e, posteriormente, presidente – da Adelphi Edizioni, a prestigiada casa editorial italiana responsável por brindar os leitores com títulos de alta qualidade ficcional e ensaística.
Boa parte dessa larga experiência pode ser comprovada direta e indiretamente nas páginas do mais recente lançamento de uma obra do autor no mercado editorial brasileiro (há cerca de uma dezena de livros dele publicados entre nós), uma pequena coletânea da qual emana a aura de peça de ourivesaria. De origens diversas e extensões variáveis, os quatro capítulos do livro, apesar de suas abordagens específicas, tratam do mesmo grande tema: o apreço e a afeição do autor pelo mundo da palavra impressa, seja nos livros, seja nas revistas literárias, e a crise por que atravessamos atualmente, em que a fragmentação parece tomar conta de tudo.
O primeiro texto, que batiza a obra, é um primor de criação ensaística. Originalmente publicado em edição não comercial, pela Adelphi, em dezembro de 2018, “Como organizar uma biblioteca” parte da questão que desafia todo e qualquer leitor que tenha uma boa quantidade de livros em casa. Paralelamente aos conselhos de ordem prática (nenhuma ordem na disposição dos títulos nas prateleiras de uma estante parece superar a regra áurea do “bom vizinho” – segundo a qual, “na biblioteca perfeita, quando se vai em busca de um livro, acaba-se pegando um que está ao seu lado e que se revela ainda mais útil do que aquele que procurávamos”), Calasso articula ao longo do ensaio uma série de informações e reflexões exponencialmente exploradas, tratando de assuntos os mais diversos, desde a biblioteca do historiador de arte alemão Aby Warburg e sua relação com o filósofo Ernst Cassirer até a postura assumida por São Jerônimo em seu gabinete, retratada nas pinturas de Antonello da Messina e Van Eyck, passando pela surpreendente comparação entre o livro e a colher como objetos que foram inventados “de uma vez por todas” – o que leva o autor a demonstrar seu profundo conhecimento da cultura védica (extensamente estudada em O ardor, de 2010):
Em relação à colher, era uma das principais “ferramentas”, sambhārāh, prescritas para a liturgia védica, usadas então mais de um milênio antes da Idade Moderna. Desde o início separado em sruva (masculino, semelhante à concha) e sruc (feminino, usado para “aquela libação que é a raiz do sacrifício”).
Essa inesgotável capacidade do autor para, a propósito de falar de uma coisa, estar também tratando sobre inúmeras outras, levou o escritor Italo Calvino a cometer uma blague deliciosa. Na dúvida a respeito de qual era o assunto de As ruínas de Kasch (o livro que Calasso lançou em 1983 sobre a transição do Antigo Regime para a Restauração), Calvino declarou que o primeiro tema da obra era o estadista francês Charles-Maurice de Talleyrand-Périgord e o segundo, “todo o resto”.
No segundo capítulo (nunca antes publicado) – “Os anos das revistas” –, Calasso recupera um pouco a história das grandes publicações europeias dos anos 1930 dedicadas à literatura, como Commerce, Bottheghe Oscure, La Révolution Surréaliste, The Criterion, Bifur, Mesures e Le Grand Jeu, constatando que elas fizeram parte de um momento em que o sistema literário ocidental era tecido coletivamente por interesses comuns, diferentemente dos anos pós-guerra em que a literatura se torna “um fato de indivíduos, tenazmente separados e solitários”.
Nas quatro páginas de “Nascimento da resenha” (publicado em 2016 no Corriere della Sera), Roberto Calasso inventaria o surgimento desse gênero literário, recuperando como uma deliciosa anedota a relação do moralista francês François de La Rochefoucauld com a escritora e filósofa Madame de Sablé, autora da primeira resenha da história, publicada em 9 de março de 1665 no Journal des Savants.
O último capítulo do livro, “Como organizar uma livraria” (discurso proferido na Fondazioni Cini, em Veneza, em 2019), funciona como uma espécie de espelho do primeiro, estendendo as observações do autor ao universo do combalido mercado livreiro dos dias atuais. Novamente, para além dos aconselhamentos de ordem prática, o autor lança mão de uma série de reflexões sobre a cultura dos livros físicos, contrastando-a com o mundo virtual.
Hoje o livro é algo que vive nas margens – e quase de reflexo –, em relação a um magma em perpétua mudança, que se manifesta em telas. Que se trate de telas e não de folhas de papel é uma diferença gnosiológica não funcional. Será necessário tempo para que se comece a entender o que acarretou, no aparato do conhecimento, esse deslizamento da página para a tela.
Se, no primeiro texto, Calasso já nos havia advertido a respeito do enfraquecimento da palavra diante da imagem nos ambientes digitais (“a imaterialidade virtual de qualquer tela exalta as imagens, mas despontencializa a palavra”), aqui o autor avança na discussão, reconhecendo a perda de território dos livros físicos, mas ainda lhes imputando uma superior “qualidade” em relação à leitura mediada por telas. Defendendo a existência das boas livrarias, Calasso projeta o futuro da humanidade sob a perspectiva do apreço aos livros.
Se isso não for suficiente, quer dizer que o livro em si não é mais suficiente. E, se o livro não é mais suficiente, quer dizer que o mundo está virando mais uma feia página de sua história.
Como organizar uma biblioteca constitui um título obrigatório para todos aqueles que ainda fazem do ato de leitura uma experiência de fruição, no sentido etimológico da palavra: legere, infinitivo do verbo legō (reunir), oriundo do grego λέγω, “dizer”, “falar”, “colher com os olhos”. Enquanto, diante de nossa visão, estiverem autores com a perspicácia de Roberto Calasso, a colheita certamente será farta.
ESTANTE CULT | NOTAS
Paulo Henrique Pompermaier
A partir do conceito de dispositivo de Michel Foucault, a filósofa brasileira Sueli Carneiro reflete sobre as dinâmicas raciais no Brasil e sobre o dispositivo de racialidade como fundamento do racismo e da própria modernidade. Como Wanderson Flor do Nascimento observa na orelha da obra, “para haver a ideia moderna de humano, é preciso retirar de algumas populações racializadas sua própria humanidade, inscrevendo-as naquilo que a autora chama de signo da morte”. Signo da morte, nota-se, é outro diálogo de Sueli com o conceito foucaultiano de biopoder, que pensa na necropolítica antes mesmo da popularização de Achille Mbembe no país. Além de operar a ideia de dispositivo de racialidade para compreender a formação e o funcionamento da nação, a autora também o encara como forma de refletir sobre o enfrentamento. Nesse sentido, conjuga diversos saberes – como a educação, o direito, a medicina, a comunicação e a arte – para pensar na emancipação coletiva dos povos não brancos.
Primeira peça do escritor togolês Kossi Efoui, publicada em 1989, A encruzilhada coloca em cena personagens arquetípicos e uma narrativa alegórica para refletir sobre o autoritarismo e a violência de Estado. Uma Mulher e um Poeta, os primeiros personagens que aparecem, procuram um futuro em uma encruzilhada que não tem saídas. Quase como bonecos sem vida, esses personagens animam-se pelo sopro de um Ponto, o personagem responsável por transmitir-lhes as falas. Ao contrário do Ponto que carrega a memória, o quarto personagem é um Cana, que não porta memórias nem procura saídas, pois tem “o medo no lugar da alma”. Sobre a peça, o autor declara: “foi um ato, um ato da vida, de vitalidade e, portanto, de exorcismo, ou seja, que eu estava proibindo esse sistema de me desvitalizar. E essa peça foi isso, ela ataca um tipo de opressão que convoca o corpo, a respiração, a liberdade de pensar”.
Abrangendo o período de 1924-1930, o terceiro volume dos Diários de Virginia Woolf desvela uma escritora no auge de seu processo criativo, consolidando-se como uma das principais vozes do modernismo literário. Nesse espaço de tempo, ela publicou Mrs. Dalloway e O leitor comum (1925), Ao farol (1927), Orlando (1928) e Um teto todo seu (1929), e também começou a escrever, em 1930, As ondas, que publicaria no ano seguinte. Além da consolidação de seu estilo literário, nas páginas do Diário também estão registrados outros momentos importantes da vida da escritora, como sua volta para Londres, após uma década vivendo em uma cidade vizinha, e seu caso amoroso com a escritora Vita Sackville-West.
Ambientando em um remoto vilarejo da Noruega, o romance aborda a relação de duas meninas de onze anos: Siss, a líder extrovertida e popular da escola; e Unn, uma jovem tímida e misteriosa que, após repentinamente se tornar órfã, é recebida pela tia no vilarejo em que se passa a narrativa e no qual conhece Siss. Apesar das diferenças de personalidade, as duas se encontram em uma noite no fim do outono e descobrem uma conexão insuspeita. Unn, todavia, sugere questões e problemas pessoais de forma obscura, o que instiga Siss a conhecer melhor a história da amiga. Nos próximos dias na escola, Siss não encontra Unn, que foi sozinha ao “castelo de gelo” – construção fantástica formada ao redor de uma cascata congelada – para conversar com seus pensamentos. Na distância que se forma entre as duas, tecem-se reflexões sobre a amizade, a memória e o fim da infância, em um embate contra a solidão e o esquecimento.