Do ponto de vista de um útero, poeta recria a história do Brasil
Luiza Romão (Foto Sérgio Silva)
Ciclos, resistência e sangue compõem Sangria, livro da poeta, atriz e slammer brasileira Luiza Romão. Lançado em outubro e editado de forma independente, a obra poética remonta a história do Brasil desde a colonização até os dias atuais através de uma voz pouco convencional – o útero.
Para dar vida e força ao que é visto como um simples órgão reprodutor, Romão constrói o livro tomando como base o ciclo menstrual: a obra traz 28 poemas (um para cada dia do ciclo), que acompanham as fases biológicas da mulher e, também, denunciam os traumas tipicamente femininos.
Com títulos como Dia 10. 1ª Masturbação, Dia 17. Cólica e Dia 16. primeiro estupro, os versos resgatam a perspectiva feminina sobre os acontecimentos históricos do Brasil: “não à toa/ terra é substantivo feminino/ a ela pertenciam os homens/ (e não o contrário)/ não à toa/ neutralidade termina em “o”/ (uma língua dominada não comporta assovios)”, diz um dos poemas, intitulado Dia 4. Idioma Materno.
“A ideia de Sangria é desvendar como a colonização e seus mecanismos exploratórios, suas repressões e seus golpes de Estado moldaram a amordaçaram o feminino. O intuito é subverter este silenciamento e revisitar a história do Brasil sob a ótica de um útero”, diz Romão à CULT.
O livro se propõe a questionar a colonização de vários pontos de vista – desde o nome fálico do Brasil (que deriva de “pau”-brasil) até a cultura do estupro – e mostrar como o modo de vida patriarcal se liga intimamente à economia e à política. Para isso, a narrativa poética mistura os ciclos econômicos coloniais (da borracha, do café, e do ouro) aos ciclos biológicos do útero (ovulação, menstruação, concepção).
um país nasceu
não de parto
nem de partida
mas na chegada
enviado da corte
fruto de cortes
fundos na pele
sempre “mestiça”
– Dia 2. Data de Nascimento
Sangria já tem tradução para o espanhol e conta com o prefácio de Heloísa Buarque de Hollanda, ensaísta e crítica literária. Nas palavras dela, o livro não é apenas mais uma reunião de poemas, mas “um projeto literário sobre a História do Brasil vista pelas entranhas de uma feminista contemporânea”.
A ensaísta tem razão: além de livro, Sangria é também projeto audiovisual. Depois de terminada a edição da obra, Romão convidou 28 artistas mulheres para gravar, em vídeo, a declamação de cada um dos poemas que compõem a coletânea, com interpretação própria e música de fundo também tocada por mulheres. Os vídeos foram, mais tarde, publicados online. A ideia ali era fazer o grito uterino ir além da palavra impressa e vagar no mundo de forma livre – como deveriam ser as mulheres.
Processo de guerrilha
A ideia de escrever um livro como Sangria veio da percepção de que o Brasil teve e tem toda a sua história narrada por homens, sejam historiadores, antropólogos, pesquisadores, professores ou políticos. A partir daí, a poeta iniciou uma longa pesquisa, buscando narrativas históricas femininas, como a de Angela Davis. “Assim, você aprende a colocar tudo em perspectiva e começa a questionar coisas que, antes, pareciam certezas”.
Em meados de 2015, quando o movimento pelo impeachment de Dilma Rousseff se fortaleceu, a poeta já tinha começado a escrever Sangria. Mas, com os acontecimentos políticos e a misoginia que crescia cada vez mais na esfera pública, Romão subitamente percebeu que não poderia fazer uma “antologia de si mesma”: “Eu precisava abranger mais mulheres. Então, o processo do livro passou a ser quase um processo de guerrilha – pelo conteúdo e pela forma independente e colaborativa”.
Aos poucos, através da “técnica de guerrilha”, o livro foi sendo costurado e tomou forma. Em outubro, Sangria foi lançado oficialmente através de uma campanha de financiamento coletivo digital e dentro do selo independente Selo do Burro.
Romão conta que o livro já teve impacto inclusive fora do Brasil: ele foi levado para o 32º Encuentro Nacional de Mujeres, que aconteceu em outubro, na Argentina, onde foi apresentado a mais de 60 mil mulheres. Mais tarde, esteve também no 14º Encuentro Feminista Latinoamericano y del Caribe, no Uruguai.
Para a poeta, estabelecer relações entre feministas da América Latina e do mundo é a grande missão de Sangria. “Estamos em um momento de muito conservadorismo, mas, na medida do possível, confrontamos isso com a nossa criação. Porque a arte, em um momento de tanta apatia, é uma forma de sobreviver”, conclui.