Livro-reportagem investiga exercício da maternidade atrás das grades
Uma das crianças nascidas no Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade, em Minas Gerais (Foto: Leo Drumond)
Ana*, 18, foi presa em flagrante roubando um frasco de xampu em um supermercado. Grávida, ela seria obrigada a dar à luz na prisão, o que normalmente significaria um parto traumático, algemada, e uma rápida separação de seu bebê. Por sorte a moça foi detida em Minas Gerais, onde fica o Centro de Referência à Gestante Privada de Liberdade – única unidade prisional do país em que mães encarceradas podem cuidar de seus filhos até que eles completem um ano de idade, recebendo apoio obstétrico e pediátrico.
Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), entre 2000 e 2014, o número de mulheres encarceradas no Brasil aumentou de 5.601 para 37.380 – o Centro de Referência pode receber apenas 60 detentas. Partindo dessa incongruência, a jornalista Natália Martino e o fotógrafo Leo Drumond produziram o livro Mães do cárcere, uma investigação sobre a maternidade dentro da unidade prisional.
Impressa de forma independente, por meio de financiamento coletivo, a publicação de 208 páginas foi lançada em junho em São Paulo e em Belo Horizonte, e reúne, além de dados e estatísticas sobre o sistema prisional brasileiro, fotografias e histórias de dez entrevistadas. Ela pode ser adquirida no site do projeto em comum da dupla, o Voz, e no portal do fotógrafo – a Agência Nitro.
A ideia da dupla, com o livro, é mudar a visão que se tem sobre os presos em geral, vistos, segundo eles, como uma massa de “criminosos cruéis”. “Na verdade, há muitos grupos diferentes entre si, e um deles é o de mulheres com crianças e mulheres grávidas”, define Natália.
O livro nasceu mais modesto, na forma de uma reportagem sobre o Centro Referência à Gestante Privada de Liberdade. Mas logo ficou claro que um só texto não seria o suficiente para apresentar o local: além de ser o único que permite um longo contato entre as mães e seus filhos, o Centro também promove acompanhamento pré-natal em parceria com o SUS, oferece partos humanizados e disponibiliza consultas pediátricas na própria penitenciária após nascimento das crianças
“Algumas entrevistadas já tinham tido filhos em outros centros de correção e contaram que a situação é bem diferente: muitas haviam dado à luz algemadas, por exemplo”, conta Natália.
A reportagem virou livro, e o livro levou um ano para ficar pronto. Neste período, jornalista e fotógrafo frequentaram semanalmente a unidade prisional: “Queríamos conquistar a confiança das detentas. Foi um processo lento e sempre respeitando o tempo delas”, lembra Leo. Durante os encontros, a dupla fazia entrevistas, fotografava e acompanhava o cotidiano e eventos importantes como festas, partos e aniversários de um ano dos bebês – data-limite da estadia tanto da criança quanto da mãe, que deve ser transferida para outra penitenciária, já que o Centro é focado apenas nas gestantes e puérperas.
Confiança confinada
O início não foi fácil para os autores. “Tivemos muita dificuldade de conseguir autorização da diretoria para fazer nosso trabalho. Sempre havia algum problema burocrático”, lembra Natália. Leo aponta que ser homem tornou as coisas duplamente desafiadoras: “Havia muita desconfiança das entrevistadas e da própria diretoria”.
Foi fotografando os bebês e presenteando as entrevistadas com as fotos que a dupla ganhou o apreço e a confiança dessas mulheres – pois muitas delas são separadas dos filhos sem ter qualquer imagem deles para guardar como recordação, e por isso os retratos eram preciosos para elas.
Para respeitar ao máximo as fontes, todas as histórias foram reproduzidas em primeira pessoa, usando gírias e outras formas de linguagem próprias dessas mulheres.“Não queríamos tirar delas nem mais um pedaço daquilo que o sistema prisional já tirou”, explica Natália. Por isso, na escrita do livro, o primeiro nome de cada entrevistada foi mantido, e o sobrenome não publicado para preservar a identidade sem alterá-la.
“Na cadeia, a primeira coisa que roubam de você é o nome. Não quisemos reproduzir isso”, acrescenta a jornalista. Nas imagens, a busca foi a mesma: “Tentei trazer essa verdade também nas fotografias, nas quais não usei flash e nem fiz correção de cores”, diz Leo.
Ao final do processo, as mulheres já estavam entrosadas na produção do livro, opinando até sobre as fotografias. Foram elas, também, que incentivaram a dupla a publicar o livro de forma independente, quando nenhuma editora se mostrou interessada: “Elas cobraram, incentivaram. Algumas, já libertas, apareceram no lançamento em Belo Horizonte”, conta Natália.
A jornalista aponta que é urgente o debate sobre a maternidade dentro do sistema carcerário, já que este problema é a base de muitos outros: “A prisão afeta toda a família e a comunidade da mulher privada de liberdade”, diz, lembrando que, além da dificuldade de reinserção após a privação de liberdade, as presas sofrem por não poderem educar os próprios filhos, que podem entrar no ciclo do crime por falta de estruturação familiar. “Não existe nenhum estudo que diga que a prisão diminui o crime e apesar disso a tomamos como solução única. Precisamos rediscutir isso.”
* Nome alterado com a intenção de preservar a identidade da fonte.