Livro das noites

Livro das noites

Revelado nas histórias e nas narrativas de viagem, o harém recendendo a amores perversos vai penetrar lentamente no imaginário ocidental.

 

Eis um livro, que se assemelha a um livro,
e que não é propriamente um livro,
mas a imagem de sua tentativa.
Edmond Jabès

 Todo livro conta a história de um livro perdido. Todo livro é uma ausência e guarda perturbadora semelhança com um outro livro possível, que ainda não se fez, mas que engendra outros, infinitamente. Embora mero fragmento, todo livro restaura e reescreve um texto único, original, ao qual é sempre preciso voltar. E a literatura, essa terra de destroços e de múltiplos espelhamentos, só pode ser apreendida enquanto busca nostálgica desse texto milenar, adâmico, ao qual não se tem mais acesso. Essas tópicas, que são com freqüência evocadas pelas teorias da narrativa e magnificamente encenadas na literatura barroca, na obra de Jorge Luis Borges ou na de Stéphane Mallarmé, vão encontrar um solo comum e uma matriz essencial nas Mil e uma noites do Oriente.

A história desse livro, mágica e misteriosa, confunde-se com as histórias nele narradas. Sua origem mais profunda estaria ligada a um texto sânscrito, desaparecido. Evoca-se, na seqüência, uma obra de origem persa, o Hizar ifasáni, ou Mil contos, da qual restou apenas o título, cujas histórias seriam encadeadas por um conto análogo ao que abre e fecha o Livro das mil e uma noites. Mas antes que os primeiros manuscritos, em língua árabe, começassem a surgir, suas narrativas foram divulgadas oralmente pelos confabulatores nocturni, homens encarregados de distrair seus soberanos insones, atormentados pela traição das mulheres e pelas permanentes ameaças de destronamento que pesavam sobre suas coroas. Esse tema, recorrente no livro, faz de Shahrazad fabuladora noturna, herdeira dessa tradição. Outra forma de transmissão oral das histórias teria sido por meio do rawi, rapsodo dos cafés árabes que reunia à sua volta um público exclusivamente masculino, o que explicaria, segundo alguns comentadores, o conteúdo erótico dos contos.

O texto nunca tomou uma versão definitiva, nunca constituiu uma versão canônica, mesmo depois de sua impressão. Os manuscritos não coincidem, assim como suas sucessivas edições e traduções, o que chega a impedir qualquer leitura comparativa. Tradutores, arabistas e comenta-dores enfrentam-se, há séculos, em uma guerra insana e todos reivindicam a legitimidade de seu “original”, a descoberta do “verdadeiro autor” ou a decifração, enfim, de sua origem obscura.

Jorge Luis Borges, em um divertido ensaio sobre os tradutores, considera-os uma “dinastia inimiga”, já que cada um deles traduziu, decididamente, um contra o outro. Para ilustrar essa curiosa fórmula da “tradução contra”, poderíamos dizer, como numa Quadrilha drummondiana às avessas, que Richard Burton traduziu contra Edward Lane, que traduziu contra Antoine Galland, que não traduziu contra ninguém, já que se baseou em um texto anônimo encontrado ao acaso de suas viagens em terras árabes. Já René Khawam, um dos últimos tradutores franceses, que ainda não havia entrado na história, traduziu contra si mesmo, pois em 1965 havia apresentado uma outra versão da obra, que hoje repudia. O estigma do adultério feminino, que ronda as histórias, parece estender-se ao livro e seus tradutores, esses modernos copistas que, no entender de René Khawam, querem fazer passar suas “belas infiéis” por modelos de virtude.

A chegada ao Ocidente do Livro das mil e uma noites, na tradução de Antoine Galland, leitor de línguas orientais de Luís 14, está ligada à voga de contos de fadas que fascinou a corte francesa a partir da última metade do século 14, assim como o gosto pelo exotismo e pelos relatos de viagem. A primeira edição foi publicada ao longo de 14 anos, de 1704 a 1717. Para suprir as imperfeições do texto, Galland recorreu à prodigiosa memória de Hanna, um criado vindo de Alep, que recitava de cor aqueles contos. A Hanna devemos muitas das histórias mais conhecidas, direcionadas a um público infanto-juvenil, como Aladim e a lâmpada maravilhosa e Ali Babá e os 40 ladrões. Mas a ele devemos também as primeiras acusações que pesaram contra Galland: estudiosos e futuros tradutores vão negar a autenticidade dos contos já que, ao menos aparentemente, eles não estariam registrados em nenhum “original”.

No entanto, ainda que sob protestos, esses mesmos tradutores fizeram constar em seus livros as histórias contadas por Hanna a Galland, devido ao deslumbramento que despertaram e à sua grande divulgação. O inglês Richard Burton, cuja tradução data de 1885 e é considerada a mais obscena, tentou limpar suas histórias dos galicismos do texto gallandiano e, para isso, declarou-se disposto a vertê-las novamente para o árabe, e só então, depois dessa imersão de cor local, retraduzi-las para o inglês.

Os defensores de Galland, tentando livrá-lo da acusação de ter acrescentado textos espúrios ao original, apontaram indícios, não muito precisos, de que o francês teria localizado os contos narrados por Hanna em outros manuscritos, aos quais teria tido acesso posteriormente. As querelas sobre a autenticidade dos manuscritos atingiram seu ponto mais pitoresco quando, estranhamente, a cópia começa a produzir seu próprio original. Em 1887, foram descobertos na Biblioteca Nacional de Paris dois manuscritos que revelam influência da redação de Galland e que podem ter sido copiados diretamente da primeira edição francesa. Mas as acusações contra Galland não acabam aí. Acusam-no ainda de ter feito os sultões falarem a língua de Versailles e de ter despido o texto do conteúdo erótico e dos poemas que, no livro, alternam-se com a prosa. Mas foi por meio dele que o Ocidente conheceu, segundo Borges, a felicidade e o assombro. As primeiras traduções independentes do seu texto só apareceram mais de século e meio depois da sua, e a primeira edição árabe surgiu em Calcutá, em 1814.

Por ordem de relevância, dentro da linhagem francesa das traduções, segue-se a de Joseph Mardrus, cujo trabalho, dedicado a Stéphane Mallarmé, foi realizado entre 1889 e 1904 – e que contou com fervorosos adeptos, como André Gide. Sua versão é marcada pela obsessão da literalidade e, ao contrário de Galland, carrega nas tintas em tudo o que diz respeito às tentações da carne, e por isso foi acusado, dentre outras coisas, de ter narrado As noites apenas da ótica do boudoir. Outras acusações reproduzem a ladainha de sempre: sua versão contém textos não autenticados e é tão fin-de-siècle quanto a de Galland reflete o século 18.

Quanto à tradução de Richard Burton, iniciada em 1872, é em tudo excessiva e significa apenas um pequeno item na imensa produção desse erudito vitoriano. Aventureiro, pesquisador das fontes do Nilo, Burton dizia dominar mais de 35 idiomas. Traduziu, dentre outras coisas, o Kama sutra, Os lusíadas, o Alcorão e até mesmo Iracema, de José de Alencar. É autor de mais de quarenta livros de viagens, alguns deles sobre o Brasil, onde viveu durante três anos como cônsul  na cidade de Santos. Peregrinou por Meca e Medina, disfarçado de afegão, mas sua lenda ainda é mais vasta e não o livra sequer de acusações de canibalismo: quando foi recebido na tribo dos daomé, conta-se, teria comido “estranhas carnes”. Boato que, segundo Borges, teria sido divulgado e fomentado por ele próprio.

Já o espanhol Rafael Cansinos Assens, mestre de Borges, assina primorosa tradução, mas nem por isso deixa de enredar-se em uma tão interminável quanto vã querela com seus antecessores sobre o número exato de herdeiros que Shahrazad teria dado ao príncipe Shariar.

No Brasil, as traduções das Mil e uma noites foram feitas, até o momento, salvo engano, a partir das francesas, sobretudo da tão censurada versão de Antoine Galland. Para confirmar a tradição, Cecília Meireles traduz contra Galland e adultera um adultério. Com efeito, em sua versão, prefere transformar a traição feminina em golpe de estado, forma singular de proteger as crianças da matéria imoral que emana do livro.

Prosseguir enumerando as traduções ocidentais do Livro das mil e uma noites significa reproduzir, à exaustão, polêmicas, virulências, cenas de ciúme, de injúria ou de infâmia, adulterações, enfim, à exposição já tediosa – a custa de se repetir – de uma história passional, dissimulada, tantas vezes, por uma aparência de rigor e probidade. Afinal, como disse certa vez Roland Barthes, a arrogância circula, como um vinho forte, entre os convivas do texto.

 Mas, para além do anedótico, o movimento das versões, construído a partir de sucessivas negações do modelo anterior, convida, por sua singularidade, a uma reflexão. O diálogo, tantas vezes perverso, entre um texto e outro, ou de tradutor para tradutor, seria menos intrigante se não significasse, também, além da negação do modelo uma contestação da ficcionalidade da obra. Em nome da “verdade”, da “verossimilhança”, da “integralidade” ou do culto do documental, os tradutores feriram, de uma maneira ou de outra, a autonomia estética da obra, revelaram uma forma particular de desprezo pela natureza ficcional do livro e estabeleceram, como estratégia de suas traduções, a negação permanente do imaginário.

No entanto, esse mesmo movimento de negação das Noites é que possibilita transformá-las em um livro eternamente inacabado, cujo destino é o de ser eternamente reescrito. Desse ponto de vista, interromper a cadeia das traduções elegendo um texto como definitivo ou decifrando seus últimos mistérios equivaleria a decretar a morte da narrativa. Nele, as histórias se fecham quando, por ordem do sultão, são escritas em letras de ouro e guardadas nos cofres do reino. Quando se transforma em escritura, a fala de Shahrazad se interrompe. Mas, para além da ficção, As noites, em suas infindáveis versões, prosseguem muito além do fim do livro.

Para perpetuar esse movimento, é preciso, pois, que cada nova tradução seja auspiciosamente recebida e celebrada, mas que seja, em seguida, denunciada como falsa. Mais que isso, é preciso que seja denegrida, renegada de todas as formas para que o movimento mágico desse livro se refaça e outras Noites se escrevam.

Quando as Mil e uma noites chegaram à corte de Luís 14, gestava-se o Iluminismo. O século 18, com suas promessas, mal se iniciava. Instalado às portas da Europa, o império otomano passa a exercer fascínio e terror, revelando ao Ocidente a natureza de um regime político e os secretos rituais de uma arte erótica até então desconhecidos. Das páginas do Livro das noites emerge, então, a figura de um soberano que vai fornecer dados essenciais para a construção da tipologia do tirano oriental, exaustivamente feita pelos franceses, de Racine a Montesquieu. Entre a ficção e a história, é possível identificá-lo em Harun al-Rashid, quinto califa abássida, “Comendador dos Crentes”, “Sombra de Deus sobre a Terra”, que reinou de 786 a 809. Da mesma forma, prolongando no tempo esse jogo de espelhos, é possível ver nele o ancestral arquetípico de um Osama Bin Laden ou de um Saddam Hussein.

Melancólico, patético, tirânico, o califa é um ser noturno, porque insone. Atormenta-se em vigílias tenebrosas, feitas do medo da infidelidade das mulheres e de seus súditos. Se adormece, seus sonhos anunciam sua morte ou a perda do trono, sempre à traição. Tem o fígado “ulcerado pelo amor das mulheres, e o coração eternamente embrulhado em suas saias”. Para aplacar seus temores, precisa ouvir repetidas histórias, maravilhosas e encantadas. Generoso, é capaz de oferecer por elas todos os impostos acumulados em Bagdá e Bassorá. É terrível em sua vingança e desmedido em sua cólera: se em um sonho sente seu trono ameaçado por uma criança, manda arrancar-lhe os olhos. Se ultrajado em seu amor por uma mulher, condena-a a ser enterrada viva. Mas se uma noite de amor o deixa feliz, ordena que sejam iluminadas as cidades e engalanadas as ruas. E embebeda-se, pois só assim é capaz de se saturar de volúpia.

Frágil, todavia, o príncipe das Mil e uma noites sofre de um mal localizado em algum ponto impreciso do ventre: talvez no baço, que secreta a bílis negra, ou, quem sabe, no fígado, território das mais avassaladoras paixões. O astro que o governa é o obscuro Saturno. Talvez por isso, o ser mais poderoso da terra morre de melancolia.

Ser essencialmente sensorial, o califa exerce seu poder doméstico sobre uma humanidade mutilada, habitante do harém: mulheres, eunucos, anões, príncipes cegos, mudos. Só ele é possuidor dos cinco sentidos e, mais do que isso, do falo, já que, por sua vontade, são castrados todos os machos. Criado na promiscuidade do serralho, recebe as condições necessárias para o exercício de seu futuro poder. Não uma educação principesca, bem ao contrário, a dissolução em todas as paixões.

Revelado nas histórias e nas narrativas de viagem, o harém recendendo a almíscar e a amores perversos, espaço de gozo e de morte habitado por sultanas veladas e eunucos sinistros, vai penetrar lentamente no imaginário ocidental a partir do final do século 17. Sem janelas, sem saídas, quase sem portas, vai representar, já no século das luzes, o lugar da cena trágica por excelência. A corte francesa transformou-o em seu tema mais atraente e criou em torno dele verdadeira mitologia. Espaço de segregação e de medo, mas também de transgressão, ao penetrarmos em seu recinto, a primeira porta já denuncia o caráter de interdição do lugar: chama-se umbral da morte. Uma outra, já interna e mais escondida, dá acesso aos aposentos do sultão e encerra outras promessas: seu nome é umbral da felicidade. Mais um pouco e chegamos ao hammam, a sala de banhos, onde as mulheres se banham e se perfumam com óleos aromáticos e afrodisíacos antes de seus encontros amorosos. Encontros esses que, muitas vezes, passam pela figura equívoca do eunuco, ao mesmo tempo assexuada e sedutora.

Shahrazad, “a narradora da língua de mel”, mestra de cerimônia desses secretos rituais, é quem nos conduz nessa viagem pelo reino das Mil e uma noites. Embora cultive, tantas vezes, o gosto pelo perverso e pela blasfêmia, as histórias que narra são impregnadas de uma espécie de erotismo sagrado, que parece ter sido retirado diretamente do Cântico dos cânticos, onde os amantes se consomem e se embriagam na celebração de si mesmos. Por meio de suas histórias, o Livro das noites do Oriente forneceu-nos um legado inesgotável de imagens, que hoje já não se separam, antes se confundem, com nossas mais secretas fantasias.

Mariza Werneck
professora do departamento de Antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, autora de uma tese de mestrado sobre as Mil e uma noites

bibliografia básica
• Challita, Mansour. Arábia saudita e as mil e uma noites. São Paulo: Acigi, 1999.
• Clot, André. Haroun al-Rachid et le temps des Mille et une nuits. Paris: Fayard, 1986.
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• Hovannisian, Richard & Sabagh, Georges. The thousand and one nights in arabic literature and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1997.
• Linderbenger, James M. Aramaic proverbs of Ahiqar. Baltimore: Johns Hopkins University, 1983.
• Mahfouz, Naguib. Noites das mil e uma noites. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
• Wajnberg, Daisy. Jardim de arabescos – Uma leitura das mil e uma noites. São Paulo: Imago, 1997.

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