Reflexões sobre arte e censura para quem não conheceu a ditadura

Reflexões sobre arte e censura para quem não conheceu a ditadura
Registro da performance "O corpo é a obra", de Antonio Manuel, em abril de 1970, no MAM Rio (Foto: Divulgação/MAM Rio)

 

O reconhecimento de que a excelência das artes depende da liberdade oferecida por um governo democrático remonta às origens das democracias modernas no século 18. Em 1764, Johann Joachim Winckelmann, hoje considerado o pai da história da arte, afirmaria em seu livro A história da arte na antiguidade que a grandeza da arte grega só poderia ser explicada pela liberdade adquirida pelas artes no seio da democracia grega: “A independência da Grécia, originada em sua constituição e governo, deve ser considerada a causa mais proeminente de sua superioridade nas artes”.

A história nos prova que Winckelmann tinha razão em sua avaliação da importância da liberdade de expressão para as artes, e não faltam exemplos dos prejuízos sofridos nos momentos em que estados democráticos foram substituídos por governos autoritários. Assim como a liberdade democrática alimenta a arte, a censura de obras e a perseguição de artistas são características de governos não democráticos e ditaduras. Quando Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha em 1933, ele rapidamente iniciou sua política de perseguição à arte moderna, confiscando mais de 20 mil obras de museus públicos e coleções e impondo severas restrições à produção artística da época. Tal política culminou na realização da monumental exposição de Arte degenerada organizada em Munique em 1937, na qual 740 obras confiscadas ao redor do país foram apresentadas ao público como sendo o resultado da inferioridade genética de judeus, homossexuais e imigrantes, assim como do declínio moral da sociedade. A exposição, que serviu de bandeira de propaganda para o Estado nazista, reunia obras de artistas como Picasso, Matisse, Cézanne, Kandinsky, Klee, Lasar Segall e Otto Dix, entre muitos outros. Após a exposição, uma grande parte dessas obras foi destruída, ou vendida no exterior, levantando fundos para o financiamento do aparelho repressivo do Estado e para a guerra. A arte de propaganda de Estado, inexpressiva e protocolar que Hitler impôs à Alemanha, sobrevive hoje apenas como triste testemunho da violência e do terror impostos pelo governo nazista. As mesmas violência e pobreza estão presentes na produção dos países do ex-bloco comunista, obrigados a adotar rígidos preceitos estéticos conhecidos como Realismo Socialista. Olhando hoje para a história, não há como negar que a supressão da liberdade de expressão nesses países, que resultou na morte, perseguição e exílio de tantos artistas, apenas foi capaz de promover, além de violência, a aniquilação da criatividade de seus cidadãos.

Seria muito bom se pudéssemos restringir nossos exemplos de opressão às artes às histórias de outros países que não o Brasil. Porém, infelizmente, nossa história inclui também momentos, ainda recentes, de supressão da liberdade e consequentes censura e perseguição a artistas e sua arte. O golpe militar de 1964 que depôs o governo democrático de João Goulart instaurou uma ditadura militar no país durante duas décadas. Os militares perseguiram, torturaram e mataram cidadãos que lutavam pela sobrevivência da democracia no Brasil, impondo ao mesmo tempo uma rotina de censura à produção artística, especialmente à arte de vanguarda, que levou muitos ao silêncio e ao exílio. Especialmente após o decreto do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, agentes do governo passaram a monitorar atividades artísticas. Censura política e “moral” tornaram-se  rotina, provocando o fechamento de exposições e suprimindo notícias de jornais e outros meios de comunicação. A constante ameaça à liberdade de expressão gerou uma atmosfera de medo, repressão e violência na qual era impossível exercer a criatividade.

Em abril de 1970, o XIX Salão Nacional de Arte Moderna, realizado no MAM do Rio de Janeiro, recebeu intervenção policial e foi em seguida fechado, após o artista Antônio Manuel se apresentar nu na abertura do evento, na performance O corpo é a obra. Pouco antes, a polícia havia fechado a II Bienal Nacional da Bahia por conter obras de cunho “erótico” e político. Dez trabalhos foram confiscados, alguns foram destruídos e os organizadores da mostra, presos. Em dezembro de 1968 a história se repetiu no III Salão de Ouro Preto e novamente no I Salão de Arte de Belo Horizonte. Em 1969, a polícia fechou a exposição da delegação que ia representar o Brasil na Pré-Bienal de Paris, impedindo os selecionados de viajar para a França. Ao mesmo tempo, militares exigiam controle sobre o processo de seleção de artistas a serem convidados para a 10º Bienal de São Paulo, gerando um movimento internacional de boicote à mostra, que provocou o cancelamento de delegações de vários países, que se recusaram a vir ao Brasil. O boicote às Bienais de São Paulo continuou até 1979, quando foi decretada a anistia política e iniciou-se o processo de abertura. Por dez anos, o país foi isolado culturalmente, e a cena intelectual e artística tornou-se medíocre. A vitalidade criativa viu-se reprimida, ou foi obrigada a migrar para centros onde a liberdade de expressão era garantida, como Paris, Londres, Nova York ou Los Angeles.

Passados mais de trinta anos do fim da ditadura militar em nosso país, pouco restou da memória dos ataques sistemáticos contra artistas e suas obras no período. Hoje nos encontramos novamente em uma encruzilhada política perigosa na qual tememos por nossa frágil democracia. Os eventos de fechamento das exposições Queermuseu no Centro Cultural Santander em Porto Alegre, da abertura de inquérito para investigar a performance de Wagner Schwartz no MAM de São Paulo, e outros episódios, como a proibição da apresentação de uma peça em Jundiaí pela presença de um artista transgênero no papel de Jesus, ou o confisco de uma obra exposta no Museu de Arte Contemporânea de Campo Grande por um delegado nos fazem temer por nossa liberdade. Como vimos, a censura, sob a alegação de falta de decoro moral, é tão típica de governos autoritários como a  censura política, e só podemos nos alarmar com os últimos acontecimentos. Procuremos aprender com a história, com a recente e com a passada. A arte é antes de tudo lugar de reflexão crítica. Já no século 18, Winckelmann reconhecia a relação vital que ela estabelece com a liberdade de expressão e com a democracia.


CLAUDIA VALLADÃO DE MATTOS é doutora em História da Arte pela Universidade Livre de Berlim e professora livre-docente do Instituto de Artes da Unicamp


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