A literatura migrante segundo Léonora Miano

A literatura migrante segundo Léonora Miano
divulgação / Editora Pallas

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A França é um dos países europeus que mais exercem influência sobre suas antigas colônias ainda hoje. Herança da colonização francesa, o Franco CFA continua sendo a moeda oficial de doze países francófonos das Áfricas ocidental e central.

O passado e o presente das relações entre África e Europa aparecem na escrita de Léonora Miano, autora convidada da Festa Literária Internacional de Paraty de 2024, com o intuito de fazer a sociedade francesa “olhar para as suas margens”, evidenciando as condições precárias às quais os imigrantes, principalmente as mulheres, são submetidos na Europa nos dias de hoje. Segundo dados de 2023 do INSEE (Institut national de la statistique et des études économiques), há 3,5 milhões de pessoas nascidas na África morando na França, 48% do número total de imigrantes.

Léonora classifica a atuação francesa na África como “uma relação de amor e ódio em que uma parte não consegue se desvencilhar da outra”. Segundo ela, “há uma juventude africana em busca de autonomia e soberania, que não quer mais a influência francesa nos assuntos africanos. Aceitamos a presença cultural da França, mas não desejamos mais sua presença política e econômica. Estamos em meio a uma espécie de batalha, uma guerra simbólica, e ainda não sabemos qual será o saldo disso e quem sairá vitorioso”.

Recentemente lançado no Brasil pela Autêntica, o novo livro de Léonora, Stardust (Autêntica), é um relato autobiográfico escrito durante seus primeiros anos como imigrante camaronesa na França há mais de duas décadas, quando a autora foi forçada a se alojar em um abrigo para mulheres sem-teto.

Admiradora da obra de pensadoras brasileiras como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento, Léonora enxerga paralelos entre o racismo praticado no Brasil e a discriminação sofrida por imigrantes de origem africana na França: “Lélia refletia sobre a natureza do racismo no Brasil, dizendo que o Brasil pratica um racismo cordial, ou seja, um racismo sutil, que te faz acreditar que você é da família, mas nega sua parte na partilha de poder. […] Isso é exatamente o que acontece na França. Não há brutalidade, mas há muita hipocrisia, chantagem e violência emocionais.”

A autora ira lançar na Flip deste ano os livros Vermelha Imperatriz e A outra língua das mulheres, pela editora Pallas.

A escritora Léonora Miano conversou com a Cult sobre a relação dos imigrantes de origem africana na França com a literatura, a busca da autonomia pelos países francófonos na África e a intertextualidade que sua obra estabelece com a produção intelectual afro-brasileira.

Como a literatura pode contribuir para dar voz a grupos frequentemente silenciados ou ignorados?

A resposta está na própria pergunta, pois o que a literatura faz, especialmente o tipo de literatura que eu produzo, é adentrar as zonas inexploradas da experiência social, histórica ou política. Nesses espaços, encontramos principalmente figuras que normalmente não são convidadas a tomar a palavra. A literatura nos permite colocar no centro da narrativa aqueles que geralmente habitam as periferias. Para mim, esse processo é bastante simples: é uma questão de deslocar o centro e decidir o que normalmente é periférico que se tornará central. Fazer a sociedade olhar para as suas margens significa contribuir para melhor nos conhecermos.

Qual o papel que a literatura desempenha nas comunidades migrantes na França? Ela tende a estreitar o contato desses grupos com seus países de origem ou a inseri-los em um novo contexto?

É difícil responder a essa pergunta porque os imigrantes na França formam um grupo heterogêneo. Há muitos imigrantes que vivem em situações de grande precariedade e estão distantes dos meios culturais, e não têm acesso a eles simplesmente porque não falam a língua do país mesmo estando aqui há muito tempo. Portanto, não podemos dizer que essa categoria de pessoas utiliza a literatura como ferramenta de integração ou solidariedade.

Na França, a literatura é, antes de tudo, uma experiência individual. Não se trata de uma experiência coletiva. É nos percursos individuais que o livro pode fazer a diferença. Observando os diferentes grupos de imigrantes na França, não creio que a literatura ocupe um grande espaço na vida da maioria dos imigrantes, porque essas pessoas estão tão ocupadas lidando com as dificuldades do cotidiano, como o racismo, que nem sequer pensam que há um lugar para eles nos livros.

Por outro lado, os que têm a sorte de ter filhos na escola podem talvez descobrir através deles que há escritoras como eu. Há também hoje em dia muitos imigrantes que vêm à França com bolsas de estudo, ou que já pertencem à uma classe média, têm emprego e estão bem inseridos socialmente. Esses são os imigrantes que costumo ver em lançamentos de livros e eventos semelhantes. Eles vêm, mas de forma individual, não como membros de uma comunidade. A França, como um país ocidental, privilegia o indivíduo e, de certa forma, não aprova quando pessoas, especialmente imigrantes ou minorias, se organizam. O individualismo francês se impõe contra isso.

Em 2013, você se tornou a primeira escritora de origem africana a receber o Prêmio Femina, pelo livro A estação das sombras (Pallas). Você espera que isso possa abrir um caminho para a literatura africana na Europa?

Sim, eu espero que sim. Para mim, a literatura é sempre universal. Mesmo quando se conta uma história que acontece na África pré-colonial, como é o caso de A estação das sombras, falamos antes de tudo de humanidade. Mesmo que você não seja uma pessoa vivendo na África antes da colonização, se você é uma mãe, pode compreender a sensação de ver seu filho ser raptado. É uma situação que pode ser transposta para qualquer contexto. Você pode estar na China e entender a dor de uma comunidade que de repente perde seus filhos sem explicação.

Por isso, creio que a literatura é universal, e desde que você seja capaz de reconhecer outro ser humano como seu semelhante, você poderá ouvir sua voz e se interessar por sua história.

Não se trata apenas da literatura, mas do olhar que lançamos sobre as pessoas. Quando nosso olhar inclui toda a humanidade, somos capazes de nos interessar pela história de qualquer um. E não só nos interessar, mas também nos reconhecermos em sua história. Reconhecemos uma parte da nossa humanidade na história dos outros.

É por isso que traduzimos a literatura. Caso contrário, diríamos que um livro escrito em francês deve falar apenas às pessoas que falam francês. Mas isso não é verdade. Traduzimos muita literatura porque todos somos humanos e sabemos que temos irmãos em todos os países do mundo.

Por que você decidiu publicar Stardust tantos anos após escrevê-lo? Por que decidiu revisitar esse texto?

Na sua forma atual, eu o terminei aos 27 anos e não fiz correções. Ele ficou como estava quando o finalizei. É um livro que fala de um período em que eu estava, assim como alguns migrantes, presa em uma situação de grande precariedade. Eu não queria que ele fosse publicado antes de eu ser reconhecida como alguém que produz literatura. Se esse livro tivesse sido lançado antes dos outros, eu acho que teria ficado presa à narrativa da migração e da vulnerabilidade, e eu não queria isso. Queria ser vista como uma autora válida, tão válida quanto qualquer outra. Portanto, esperei para produzir primeiro uma obra antes de expor essa parte da minha trajetória.

Que tipo de recepção você espera de sua obra no Brasil? Acha que a experiência de uma imigrante africana na França pode encontrar paralelos com grupos marginalizados no Brasil?

Acredito que isso encontrará necessariamente paralelos com a vida de pessoas marginalizadas, porque é precisamente disso que se trata o livro. Não é um livro que trata simplesmente do drama da migração, mas também das condições terríveis às quais as mulheres são submetidas nos centros urbanos.

Stardust remonta ao período em que fiquei hospedada em um abrigo para mulheres sem-teto. Claro, lá havia imigrantes e havia mulheres africanas, mas não eram todas africanas; havia também mulheres brancas. Ou seja, é um lugar onde havia pessoas que passaram por  grandes choques em suas vidas. Situações que fizeram com que, em determinado momento, elas perdessem tudo, até mesmo o apoio de suas famílias.

De repente, você acaba em um lugar que se assemelha a uma prisão, onde todos te controlam, onde você não tem autonomia, onde você é infantilizada e tratada como uma criança, não sendo mais alguém que tem direito à palavra. Acredito que todas as pessoas que, em algum momento da vida, enfrentaram dificuldades podem se reconhecer nessa situação.

Além disso, há a solidão que vem junto à marginalização, seja por levar uma vida que os outros não compreendem, seja por estar longe da família por diversos motivos. De qualquer forma, penso que todos, mas especialmente as mulheres, vão se identificar com este livro. Porque, mesmo que você não tenha vivido a precariedade,o leitor pode se sensibilizar com a dor do outro.

Acredito que a miséria existe em todas as cidades do mundo e que a forma como ela impacta as mulheres — e, consequentemente, seus filhos — é algo que fala a todas as sociedades do mundo.

Como você avalia a mudança no seu estilo como escritora desde quando escreveu Stardust até seus trabalhos mais recentes?

Stardust foi escrito quando eu era uma jovem mulher cheia de raiva. É um livro que reflete toda a fúria de uma mulher de 27 anos que ainda vivia à margem da sociedade. Eu havia saído de abrigos, mas era uma trabalhadora pobre. Trabalhava muito, de domingo a segunda, por um salário de fome. Além disso, precisava cuidar da minha filha, que era pequena. Portanto, é um romance escrito com muita raiva e com a experiência das injustiças sociais que eu vivenciava na sociedade francesa.

Na época em que escrevi, eu era sindicalista na empresa onde trabalhava. O livro é fortemente centrado nessas questões de desigualdade social, e é escrito com a determinação de uma jovem que quer lutar contra isso.

As publicações que se seguiram a Stardust, por outro lado, são escritos de maturidade. A distância em relação aos temas mudou, permitindo que eu escrevesse com mais reflexão, embora não sem violência. Meus primeiros romances eram sempre um pouco violentos e bastante políticos. O que talvez tenha mudado foi essa distância e a maturidade, além do fato de que o estilo se tornou mais musical e menos direto. Stardust é realmente muito direto, como se alguém estivesse conversando com você. Já nos outros livros, há uma busca poética maior.

Pode explicar a escolha do título em inglês?

Em Camarões, o país onde nasci e cresci, o inglês e o francês são as duas línguas oficiais. Portanto, o inglês nunca foi estranho para mim. Além disso, fiz meus estudos universitários em inglês; sou anglicista. Inicialmente, eu havia chamado o romance de “Poussière d’étoiles”, já que “Stardust” significa “pó de estrela”, um dos elementos que aparecem na relação das personagens Louise e sua avó. No entanto, já havia um livro com esse título na literatura francesa.

Então, traduzi para o inglês para não ter o mesmo título de outro romance. Além disso, na minha infância, especialmente com minha mãe, ouvimos muito a música de Nat King Cole, e um dos grandes clássicos de Nat King Cole se chama “Stardust”, o que me remete muito à minha infância. Por todas essas razões, o título justifica-se completamente para mim.

Um tema que aparece em sua obra é o que você nomeia como Afropéité, a potência transformadora e a maneira própria de habitar a história dos afrodescendentes europeus. Como você enxerga o futuro das relações entre Europa e África?

Eu reflito muito sobre isso, e esse é o tema de minha obra em longa duração. Não se pode simplesmente falar da África e da Europa em geral. No nosso caso, estamos tratando da África francófona e da França, porque, muito mais do que outros países europeus, a França tem uma relação muito forte com suas antigas colônias.

É uma relação marcada por amor e ódio de ambos os lados. É uma relação disfuncional, onde uma parte não consegue se desvencilhar da outra. E ninguém está feliz com essa relação. A questão não é tanto como eu vejo o futuro dessa relação, mas quais são as verdadeiras possibilidades. Existe realmente um futuro que permita que essa relação não continue disfuncional?

Recentemente, três países que eram colônias francesas começaram a se afastar do grupo dos países francófonos mais ligados à França, expulsando seus embaixadores e decidindo estabelecer uma nova política com novos aliados. Isso é algo muito novo, e ainda não sabemos se isso se expandirá para todos os países francófonos. Será que todos os países farão o mesmo, ou Burkina Faso, Mali e Níger permanecerão isolados ou serão apoiados por outros? Essa incerteza ainda persiste.

A relação está em transformação, pois mesmo nos países que não tomaram essa decisão, há uma juventude africana em busca de autonomia e soberania, que não quer mais a influência francesa nos assuntos africanos. Aceitamos a presença cultural da França, mas não desejamos mais sua presença política e econômica. Estamos em meio a uma espécie de batalha, uma guerra simbólica, e ainda não sabemos qual será o saldo disso e quem sairá vitorioso. É certo que haverá uma transformação e que as coisas não serão mais como antes.

Portanto, por enquanto, não podemos afirmar nada. Precisamos observar um pouco mais, levantar questões e fazer hipóteses, mas não podemos chegar a conclusões definitivas neste momento.

A abolição do Franco CFA faz parte desse projeto?

O Franco CFA faz parte das coisas que a juventude africana recusa hoje, pois é uma moeda criada para explorar os países da África francófona. E, simbolicamente, é muito poderoso um país utilizar uma moeda que não lhe pertence; a moeda é controlada externamente, na França, e, por muito tempo, foi a França que gerenciou essa política monetária. Ela também tinha muita influência sobre todas as transações comerciais que os países podiam fazer com outros parceiros, tudo tinha que passar pelo Estado francês. Portanto, é um instrumento de dominação muito poderoso, e hoje os jovens querem que isso seja abolido, e que a forma de gerir a economia dos países africanos também seja transformada.

O problema é que a juventude nem sempre tem governantes que estão ao seu lado. Temos muitos governantes na África que são a favor do status quo, que não são a favor de uma revolução porque são amigos do opressor, porque se acostumaram a esse sistema e também se beneficiam dele.

Justamente, os três países que se desassociaram da França estão pensando em uma moeda comum para eles, que não seria mais o franco CFA. E já sabemos que sempre que um país da África subsaariana francófona tentou ter sua própria moeda, enfrentou grande resistência, especialmente da França, que chegou a fazer circular moedas falsas, além de cometer diversas atrocidades. Aliás, houve mortes por causa disso. Portanto, já sabemos que não será fácil, mas é necessário ter coragem para transformar esse cenário.

Se as instituições não mudam pacificamente e não há mudanças quando a população o pede, é necessário ter uma ação revolucionária; não há escolha. Qualquer um pode entender que não se pode viver em um país onde a moeda em circulação é controlada pela sua antiga metrópole colonial. Ninguém pode aceitar isso. Essa é a situação de 14 países na África subsaariana. Portanto, em 2024, esse sistema deve chegar ao fim.

A sua formulação teórica acerca da afropeité parece muito próxima da teoria da amefricanidade de Lélia Gonzalez. A intelectualidade afro-brasileira te influenciou de alguma forma?

Sim, claro, eu a cito em um dos meus livros, que está prestes a ser lançado no Brasil. Chama-se em francês “L’autre langue des femmes”. Eu cito Lélia Gonzalez e também Beatriz Nascimento.

Eu cresci em um país que foi muito afetado pela história das deportações transatlânticas. Cresci na costa do Camarões e, portanto, estamos ligados a essa história; e desde a minha infância, me interesso por essa história. Quero conhecer todas as pessoas que estão ligadas a ela.

Há muito tempo, portanto, me interesso por tudo o que os afrodescendentes vivem e produzem. Assim como todo mundo, no começo, conheci primeiro a afrodescendência dos Estados Unidos, porque, sendo os Estados Unidos uma potência mundial, sua cultura se dissemina mais facilmente. Também conheci muito cedo a intelectualidade negra francófona, através de escritores como Aimé Césaire ou Maryse Condé. Conhecer a intelectualidade negra é minha paixão, é como se fosse uma necessidade, é como se conhecer algumas grandes figuras e um pouco de sua história me curasse, me devolvesse pedaços de mim mesma.

Até mesmo sobre os afrodescendentes sobre os quais nunca falamos, como os afrodescendentes de países orientais, porque antes do tráfico transatlântica houve o tráfico árabe, então há muitos afrodescendentes dos quais nunca falamos em países como Irã ou Iraque. Preciso saber o que aconteceu com todas essas populações, que foram arrancadas da África: o que se tornaram, o que viveram, o que produziram, o que inventaram, quais são suas espiritualidades, quais são suas filosofias. Preciso conhecer tudo isso.

Descobri Lélia Gonzalez meio por acaso em uma publicação francesa sobre feministas do sul global, onde havia um artigo em que ela refletia sobre a dificuldade de definir a identidade dos negros no Brasil. Ela tentava encontrar um vocabulário para isso enquanto refletia sobre a natureza do racismo no país, dizendo que o Brasil pratica um racismo cordial, ou seja, um racismo sutil, que te faz acreditar que você é da família, mas nega sua parte na partilha de poder. Ou seja, enquanto se trata de dançar juntos, vamos dançar juntos. Quando se trata de fazer uma cerimônia aos orixás e tudo mais, vamos fazer juntos. Mas quando se trata de compartilhar o poder, aí não querem mais compartilhar com você.

Isso é exatamente o que acontece na França. Não há brutalidade, mas há muita hipocrisia, chantagem e violência emocionais. Assim que demandamos poder, somos rejeitados.Por isso, achei Lélia muito interessante e muito incisiva. E a partir daí, comecei a procurar quais eram as outras intelectuais afro-brasileiras que poderiam existir. Foi a partir dela que descobri todas as outras. Mas também me interesso pelas intelectuais cubanas e colombianas.

Em todos os lugares onde há afrodescendentes, quero conhecer suas vozes. Acho que isso realmente me ajuda a acalmar a menina que eu era, que precisava de respostas que ninguém podia me dar.

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