A literatura de Roberto Schwarz: sujeitos e capitalismo
Ao retornar ao Brasil em 1973, após o trabalho na embaixada de Paris onde buscava dar apoio aos exilados do tempo que estavam por lá, Francisco Alvim recebeu de um daqueles proscritos, o amigo Roberto Schwarz, algumas folhas datilografadas contendo um conjunto de escritos, poemas curtos, relatos, poemas em prosa. Segundo a memória do poeta e diplomata, o crítico, que mergulhava à época em seu radical e renovador estudo de Machado de Assis, ao lhe passar os papeis deve ter dito algo como “dá uma olhada se dá pra fazer alguma coisa com isso no Brasil”.
Se foi assim, a rememoração for correta, não havia lá ênfase ou crença excessiva no futuro e na especialidade do material. O escritor estava contido em uma modalidade de auto parcimônia, sem excedente de valoração do trabalho realizado. Motivos havia para a generalização da dúvida. Como se verificaria depois, a posição parecia afinar com a matéria concreta e sua forma dos poemas. De fato, tratavam-se de imagens recessivas, que emulavam uma própria melancolia social, coisas quase michas, ainda que muito afiadas para a política do tempo. Os pequenos poemas, que seriam publicados por Alvim em 1974 numa coleção de poesias de então sob o título Corações veteranos, eram, como se verá, atestado de desconformidade radical; não apenas com as coisas do Brasil como estavam, mas, desde aquelas coisas, com o próprio lugar da poesia e do intelectual, para si e para o mundo, que então não animava nada.
Poesia de choque como um intenso ponto negativo na vida pobre que reconhecia onipresente, desde o início tudo parecia indicar que o material, apesar da própria força estranha, não tinha nenhuma vocação para explodir nada, ou quase nada. Nenhuma ilha, nenhum país ou vida em armas, que ainda ocorria na época, poderia praticamente contar com ele. Pois o livro parecia mais vocacionado a radiografar a natureza lenta e prosaica da implosão que a vida nacional, encarnada em “sujeitos”, vinha conhecendo em todas as dimensões. Ainda, de longe, e por dentro, os poemas deixavam a coisa mais dura e mais triste, muito pobre e bastante burra, do que supunham os animados artistas do último desbunde modernizante brasileiro da época – outros poetas que, forçando a felicidade em mundo complexo de transformações históricas, também observavam ao seu próprio modo absurdo e burrice, enquanto insistiam na beleza e na alegria para definir o mesmo quadro.
De fato, diante do massacre histórico total do início dos 1970, que o escritor radiografava sem perdão, os pequenos poemas contraditos, marginais e intelectuais, de tipo cosa mentale, de Roberto Schwarz faziam papel de mínimo contraponto, constrangido mas não constrito, de toda a situação. Eles iam abertamente contra as relações de subjetividade, sociedade e política que predominavam no país, do ponto de vista da nova vida comum e sua má modernidade, que se instalava aos trancos. Já então, sabendo do tamanho e da extensão da derrota, e de sua natureza, o crítico infletia a desgraça cultural e social da própria vida nacional sobre os seus vencedores, os degradados e estupidificados que falavam nas poesias: banal gente de bem da época, com a sua cultura simplória e geral de facilitação e contenção celebrada, efeito e correspondência nos micros sujeitos do Brasil grande da ditadura grosseira. Se o mundo da violência política era rebarbativo e excessivo, ele era ao mesmo tempo escondido da consciência média e bem exposto no totalitarismo da própria propaganda, a oficial e a de novo tipo, comercial.
Diante do quadro, então sem nome, de ascensão veloz da sociedade do espetáculo da alienação e da baixeza da mercadoria ao modo brasileiro, era preciso ser contido, tornar o poema uma quase pedrada conceitual, justo no alcance da própria forma limítrofe. Uma pedrada, para a tentativa de, ao mesmo tempo, estar naquela ordem social de forma sensível e estar inteiramente contra ele. Era um modo, informado, hipermoderno e negativo, pela estrutura do próprio entendimento da realidade, de lutar com dureza e com grande mordacidade, mesmo que em poucas linhas, ainda que embaraçado com um próprio decoro pessoal em participar, contra a recente estabilização da ruína cultural e política satisfeita das classes médias, sobreviventes e emergentes, amigas da ditadura de então, regime que já ia para completar uma década.
Personagens rebaixados e limitados, perspectivas históricas embaçadas, ausência de ideias razoáveis, baixaria elevada à ordem do dia, ideologia como pão e violência social como ar, se revelavam em uma linguagem direta e palpável, simples de certo modo, sem excesso e, principalmente, sem nenhum efeito de beleza imaginária, ou ilusão de esperança. A secura dura, da beleza inexistente naquele mundo poético, tentava dar conta liminar do mundo corrente, até ontem comum, mesmo pessoal e íntimo, que se tornara o inimigo real e perigoso no Brasil. Assim mesmo, Heloísa Buarque de Holanda ainda assinalaria o poema mínimo “Ulisses”, daquele livro como “belíssimo” à sua sensibilidade de estudiosa da época:
Ulisses
A esperança posta num bonito salário,
Corações veteranos
Este vale de lágrimas. Estes píncaros de merda.
Constatação, descrição de situação social e existencial, e acusação simultânea, sem escape, toda a história da literatura do herói evocada no título se reduzia ao típico e simplório imbecil com aspirações, sem grandeza, figura concreta adaptada, que vai se enganar assim, com um último brilho de valor, e será desenganado assado, pela desgraça da própria vida. Já então um bonito salário, e seu melodrama de justificação pequeno burguesa, do vale de lágrimas, apontava para a lapidar acumulação de merda, o seu futuro. Inscrita no personagem, aristocracia do nada pauloemiliana embrulhada novamente em papel novo e brilhante pelos horizontes do capitalismo à brasileira, com ditadura e tudo, a dissolução do sucesso do homem de futuro em merda era social. Significava, ao mesmo tempo, fracasso pessoal e grande e fatal ironia histórica, coletiva. Os corações veteranos – dos a favor, mas também dos que lutaram contra – não encontrariam saída da aporia na vida dos vales da queda do dinheiro e nos picos eventuais de sua acumulação, já sabida acumulação de ruínas. Ao tempo, muito antes do fim do mundo da fragmentação generalizada e sem razão que vivemos hoje, o poema já sabia.
Roberto Schwarz é um intelectual de matriz marxista de crítica negativa da vida econômica que, porém, leitor de Machado de Assis e do problema arrevesado e insólito do campo da cultura no Brasil, não despreza a própria dimensão humana em seu trabalho. Assim, sua pesquisa literária é uma antropologia hipermoderna, da ideologia encarnada como subjetivação na lida social, fazendo os seus depósitos inconscientes do tempo, delineando a patetice nas gentes, nas classes e na linguagem que se apresenta à cultura, que, de seu ponto de vista, tem valor histórico. Diferente de outros colegas de geração e de experiência, os demais veteranos, os importantes pensadores do marxismo a partir do lugar de exceção positiva do Brasil no sistema mundial da acumulação, Roberto sempre percebeu, com um olho, o andamento geral do Capital, lá e por aqui, e, com outro, suas peripécias culturais e existenciais, sua encarnação como corpo ideológico em agentes reais no mundo, em suma, a sua disposição por linguagem corrente e exibida, como formações de compromisso e poder encarnadas. Sua literatura, de pouca extensão, mas sempre exigente, é de fato uma antropologia política, entre os vales de lágrimas e os píncaros de merda, a própria concepção subjetiva da história em país como o Brasil. Nela, toda ilusão é uma falsificação e toda beleza é uma mentira, porque os vínculos sociais complexos dos personagens, enunciados e ocultos por eles mesmos, frequentemente as desautorizam.
Como se sabe, suas figuras críticas mais agudas são resultado de estruturas esdruxulas de dominação social e produção específica de Capital, contudo, historicamente bem firmadas. O país novo, moderno, de matriz colonial escravista produzindo para um mundo tendencialmente liberal, e também, simultaneamente, de subjetivação singular, modos de ser, aparência de sujeitos em ação no mundo, formas de gozar pela linguagem, caráter complexo e malandro da elite, de senhores e de agregados, equações sociais encarnadas como estruturas subjetivas ainda não descritas nem nos cânones teóricos da literatura e ainda menos da psicologia, da volubilidade ideológica e social e do fascinante uso sem culpa, impune, de toda palavra.
Nessa escala histórica da voz dos personagens, em Corações veteranos, passando pelas pessoas e pelos sujeitos, por assim dizer, daquele sistema mundial de violências de uma liquidação de guerra fria que se resolvia no Brasil como convencionalismo reforçado, pequeno burguês e micro cristão, patético sem pathos e de indústria cultural acelerando, celebratório decoroso da nova ordem e do que brilhava no novo mercado banal da sobrevivência, o escritor também dava a ver, em uma espécie de poesia pau no Brasil, o desencanto do fim de festa da própria experiência da esquerda independente brasileira. A esquerda, também personalizada, que trabalhara muito nos anos de 1930 a 1960 pela emancipação da consciência local, de nosso lugar no mundo, e que deu nos ditos corações velhos de guerra. O próprio grande narrador dos poemas, o foco critico agudo, violento com o mal e desencantado com a história encarnada dos inimigos culturais e políticos, eu lírico do próprio coração veterano, uma geração interrompida, também era produto da mesma ordem histórica má. Se realizava assim, em sua mínima épica, a encarnação final da percepção original de Drummond, de branco e preso à sua classe, de que o sujeito da enunciação da poesia se confundia, por mais exigente que fosse a sua perspectiva, com o mal da história que vivia e encarnava, como choque, efeito traumático e adesão irreversível da própria classe.
Mínima moral, de mínima épica de ainda jovens, mas já veteranos, derrotados em quase tudo, menos naquela solução estética de fato limite:
O cidadão que vejo no espelho
é mais moço do que eu
mais eriçado que eu
mais infeliz que eu
Ao seu modo, mais estruturado na crítica da mortificação da sociedade de classes ao modo brasileiro rebatida em seus personagens micro políticos, pobres humanos cujo caráter era só mascarada e desconcerto, desconjuntados historicamente de si próprios, que reorganizavam velhos preconceitos para uma nova sociedade que lhes aparecia como prêmio, Roberto Schwarz alinhava com a voga concreta porque mundana, crítica porque cínica e violenta porque direta do movimento geral da poesia de Cacaso, Charles, Chacal, Francisco Alvin e outros marginais. Todos jovens que se tornaram negativos, de classe média urbana, ainda intelectuais, brancos, se diz hoje, que apanharam bem na cara do Brasil nos anos 1960 e que, recolhendo a crítica ao apartamento familiar de Copacabana, não cediam do corte e do choque.
Aquela floração de mal-estar da poesia brasileira dos primeiros anos 1970, apesar de altamente pessoal, não tinha modo de se recusar ser agudamente social, e tinha seus antecedentes históricos, mais próximos ou mais distantes. Para além da óbvia conexão com a poesia de um Oswald sintético e pequeno alegorista da história, polêmico piadista – inimigo insolente individual da própria classe, contra a qual entrou em guerra, como entrou contra quase tudo – e com os elegantes, negativos e esplendorosos “O cacto” e “O beco” do velho e agudo Bandeira, um clima de confronto, mais precisamente de liberdade na percepção do confronto, tendente ao direto ao assunto, também acintoso e inimigo da farsa, se estabelecera no Brasil desde o advento da regressão política espetacular do golpe de 1964, do fracasso da democracia social no país.
Já em 1965, Hélio Oiticica radicalizava por si mesmo de fato tudo e, se afastando da lógica construtiva e racionalizante, ainda que com sua ginga particular, de seus metaesquemas, muito ligados à esperança do Brasil inteligente e civilizado dos anos 1950, passava a criar verdadeiros objetos sem brilho, sem aura alguma e sem previsão, incômodos, próximos ao lixo e ao descarte, com a matéria sem definição, da terra, da madeira, do vidro, da tela, em seus bólides, reais arranjos confrontantes e pobres, na ordem do precário da vida, enigmas obscuros de arte menor. E, em um deles, o B 33 Bólide caixa 18, o artista imprimiu a foto de um amigo pobre, popular e favelado morto, o seu mítico Cara de Cavalo, fuzilado com 66 tiros pelos homens de ouro da Escuderia Le Cocq, a proto-milícia de extermínio de então, que se tornaria o esquadrão da morte da ditadura; escrevendo no objeto os dizeres em formato de oração: “Aqui está e aqui ficará, contemplai o seu corpo … Seja marginal, seja herói.”
Três anos depois, após a explosão do delírio negativo e carnavalizante de Terra em transe, e a descoberta da experiência social insólita, não iluminista, não racional, tendente a afirmação do poder direto como modo próprio de fascismo local da própria vida popular em O bandido da luz vermelha, Júlio Bressane e Rogério Sganzerla escancaravam, como novo arranjo verdadeiro no precário junto à matéria social brasileira, a violência e o irreconciliável das cisões sociais que emergiam, em filmes como O anjo nasceu, Sem essa aranha, Copacabana mon amour e Cuidado madame. Cinema povero e concreto, cinema limite, feito nos morros e nas ruas, instável no objeto e na imagem quase dissoluta, entre a loucura popular do abandono de um destino social possível e a esplêndida alienação e proteção dos ricos e dos bem postos do Brasil, que só podiam negar em bloco tudo o que deixaram de pensar e ver sobre a vida no país, tal arte configurava aquelas novas formas violentas de passar a navalha nos olhos dos inseridos, de ser marginal e ser herói.
Se o crítico Roberto Schwarz estranhou muito, em texto publicado na Temps modernes de Sartre em 1969, a festa da atualização rápida, mais uma vez da noite para o dia, do novo modernismo tropicalista de 1967, super atualização de jovens super bacanas que possibilitava suas reais vantagens de geração em relação aos próprios pais medíocres, que ficavam para trás, para a inserção social nova dos artistas que passavam a apontar o absurdo do Brasil relativamente de longe, “do ponto de vista de marte” e como emblema, se aproximando vertiginosamente da nova onda gigante do mercado emergente, na música poderosa de um Caetano Veloso e de um Gilberto Gil, por exemplo; se o crítico observou a transformação alegórica da vida social em comentário e expressão dadá alegre, pop orientada, em posição existencial e psíquica nova calculadamente distante do embate da luta contra a violência política real; também, é preciso acentuar, havia no interior de todo tropicalismo pós-moderno do Brasil fortes núcleos negativos, no limite até mesmo da impossibilidade de se viver naquele mundo novo, que se buscava seduzir, para alguns dos jovens revolucionados pelas teorias da comunicação e pela emergência da realidade cultural industrial. Também, até mesmo na faceta mais luminosa do processo cultural, que intuía algum futuro no mercado de massas capitalista democrático, por vir um dia, transformado pelo próprio andamento da modernização induzida pela forma mercadoria em explosão, coisa nova por aqui, figuras radicais do negativo e da não conciliação das existências no Brasil apareciam com frequência: afinal, aqui era o fim do mundo, os acordes dissonantes da bossa nova e sua utopia realizada se integravam ao som dos imbecis, não se devia temer a morte, concreta, presente no horizonte e nas esquinas, os ex-hippies modernos se transformavam também em urubus e Nosferatus de si próprios, pegavam o velho navio, se matavam como o poeta de Terra em transe e a panamérica multifacetada era a antessala da loucura impotente diante do Hitler terceiro mundo. Negativo, marginal e de confronto, maniacamente agregado à nova ordem da festa do que existe, da TV, ou melancolicamente exterior, como peça concreta de choque e de violência referida ao todo, eram esses os termos gerais da cultura da vanguarda do tempo, radicalmente isolada do poder e da política.
Da tradição ambígua, luminosa e crítica, do modernismo brasileiro, chegava-se a um tempo em que o elemento negativo, a percepção da catástrofe, social e cultural da modernização se tornara predominante, em pleno voo do processo de modernização. Visões confrontantes radicais, esparsas no passado, moduladas então pela certeza de um destino moderno que viria na brecha revolucionária da redenção do país, moderno de modo único no mundo, apareciam agora em toda cultura relevante como o real estado das coisas de uma modernidade que descarrilhou. Desde a vertigem do poeta/político/funcionário/jornalista de Glauber Rocha, caindo para sempre nas dunas de Terra em transe, com o seu dito elegíaco e trágico “não é mais possível” suspenso na história, que constatava sociedade perversa em funcionamento perene como grande máquina alegórica do mal no mundo da qual ele fora expulso, até a poesia como pedra concreta no meio do caminho e na testa dos vencedores, dos jovens “marginais” dos primeiros anos 1970, de poetas e políticos sem destino no tempo da tecnocracia e da televisão, a radicalização do negativo ganhava perspectiva de vanguarda única no Brasil, sem que pudesse dar conta de nada do que acontecia ao redor.
Melancolia de esquerda com história própria, os jovens corações veteranos tentaram estratégias paralelas de ataque negativo a uma realidade social e política até então sem registro nas ilusões da civilização por aqui. Os brilhantes músicos tropicalistas articularam visão do mal e esperança gozosa popular, festa e terror, tristeza e indústria, corpo em êxtase e exílio, vendo também na nova chave modernizante do país um potencial de transformação possível do mal, como desejo para além das estruturas de poder. Em seu trabalho o desejo e o erotismo tentavam completar aquilo que o pais de fato negava. Diante do imenso mal, eles induziam a integração de sociedade dilacerada, mesmo que como gesto formal e utópico, que no gozo próprio da canção sempre parece possível; e tinham a seu favor a forte tradição de parceria da música com a técnica e com os meios de comunicação, que vinha de longe no Brasil. A música popular já nascia no interior do mercado e da técnica, guardando relações eletivas com a nova sociedade do shopping center e da novela. Chico Buarque, noutra direção, manteve a grande narrativa e épica pessoal da poesia moderna brasileira, daqueles dos que sabem cantar a guerra, como dizia Manuel Bandeira desde sua própria “poesia menor”, olhando para a queda geral do mundo da violência da ditadura que se construía, principalmente a dos pobres, caindo para sempre, buscando uma perspectiva “universal negativa” que tentava, ao mesmo tempo que compreender o terror, manter o alto modernismo como alternativa, em um horizonte das coisas de mundo ainda não totalmente fechado, como sua obra dava testemunho. Enquanto os jovens poetas marginais, dentre eles Roberto Schwarz, mergulhavam nos fragmentos familiares e sociais de um cotidiano modernizado para a violência, confundindo, de modo muito concreto e discriminado, a própria unidade do eu lírico com a ruína patética geral e bem composta e, principalmente, de sua própria classe. Mínimos afetos, máxima ironia, mordacidade, em imenso mundo degradado que cercava o eu por todos os lados, Paulos Martins sem grandeza nem perspectiva, inventariavam a ruina incorporada, como fato social de valor da própria classe média, que se desfibrava daqueles modos próprios dos poemas.
Lembremos dois momentos de Roberto Schwarz em Corações veteranos; o primeiro, o mundo do qual ele mesmo vinha, onde vida, humanidade e Capital são confrontados, com os resultados bem conhecidos para os irmãos sem destino na ordem das coisas:
Depois do Telejornal
Pela terceira vez explico a manobra legal usada contra os pretos ativistas à velha tia surda que visito em Nova York. Seus olhos cansados postos em mim, também as mãos, são da irmã que envelhece em outro continente. Está aqui desde 42. Fugiu aos nazistas em 39, foi internada em 40 em um campo francês, em 41 passou para um quartel em Casablanca perdeu a mãe em Buchenwald e costurou seis dias por semana, 25 anos, numa fábrica de tecido no Bronx. Sem entender acena ao sobrinho do Brasil – onde as coisas vão mal – a cabeça que não pacienta mais com as lutas infindáveis do planeta. – Sei que você vai dizer que explico fatos sociais como se fossem naturais, e vai pensar que sou uma velha. Mas às vezes acredito nalgum defeito genético do homem. Senão por que esse gosto de brigar? É tudo muito, muito triste, e eles enquanto isso, os donos da vida como dizem os outros, os donos dos meios de produção – a lepra do mundo, me entenda bem, a lepra do mundo! – nos acabam de trabalho, desemprego, guerra ou loucura.
Tudo dito. O segundo, a carta à filha de um pai de família brasileiro em meio à sua própria posição naquela mesma história, indicando para onde pais, filhos e famílias da classe média do Brasil iam naquela mesma ordem do Capital mundial que, aqui – onde as coisas iam mal – se produzia assim, negando o terror da história no mesmo movimento de se instalar nele, com proteção, mesmo que idiota:
Natacha querida – estou radiante contando as horas para amanhã, dia 12 de abril, ir buscar o Sylvio na Tiradentes. Fazem hoje dois meses que me tiraram ele, pouco antes de irmos para a mesa do almoço. Foram dois meses de um triste pesadelo, de saudades; de angústias e aflições no primeiro mês, até o dia dos anos de Marilda, quando as coisas melhoraram com a remoção dele – para a Tiradentes – e a primeira promessa de sua libertação, que amanhã, com a graça de Deus deverá se efetivar. Deus atendeu as nossas preces, penso
também que à sua, conforme eu lhe pedi em uma carta. Só mesmo a misericórdia Divina e de Nossa Senhora podem ter obtido esse milagre. Continuo, pois, nas minhas preces para os meus filhos, que tanto necessitam da proteção dos céus. Preciso cada vez mais ter muita fé e todos os dias rezo muito por Vocês todos e comungo, na mesma súplica, todos os Domingos. Deus há de permitir a reconstituição do nosso lar, com todos nós reunidos em torno da mesa para render-LHE Graças. Cuide-se bastante, minha querida filha, e volte com bastante saúde física e de ESPÍRITO, para ajudar-nos nesta missão e confortar-nos para que eu tenha forças bastantes para corresponder À confiança do Sylvio. Preciso de um ambiente de calma e de muito AMOR E OPTIMISMO SOBRETUDO para fazê-lo. VIAJE, POIS, BASTANTE, desvie a vista dos lados negativos de todos os povos e de toda a humanidade para só guardar na sua retina e no seu coração os aspectos positivos e caridosos desse mundo sofredor, na sua ânsia de PAZ E AMOR.
Com a benção e o beijo muito saudoso do
Pai
Se o primeiro poema em prosa, baudelairiano, mas também brechtiano, machadiano ou, ainda, de um Graciliano hipermoderno, de espírito negativo seco e sem ênfase, condensa na conversa com a tia estrangeira do mundo uma complexa conjuntura e explicita os processos de sentido histórico e de consciências e corpos, abalados pelos modos do poder, consciências que ainda julgam com rigor aqueles processos, o segundo, ao contrário, oculta cuidadosamente em sua matéria o sentido histórico da violência ao redor, que existe e que pôs tudo a perder contra a vida convencional do pai de família, religioso e amoroso, mas apenas de seus filhos, cifradamente um amigo do próprio algoz. Sentimento do mundo versus proteção mítica da família, nos dois poemas história, violências políticas e sociais as mais amplas, e soluções de pensamento e ideologia encarnadas em posições reais de classe e lugares no mundo, falam alto. Mas, em direções totalmente opostas. Sempre interessadas na relação entre classe, consciência e formas a elas articuladas, o caráter dialético destas composições é notável, até mesmo quando demonstram a intimidade social de um pensamento que suspende, com método, toda a crítica.
De um lado, a experiência histórica com o nazi-fascismo da guerra mundial europeia do capital do início do século XX e com a exploração mortífera e universal da vida do trabalho, de sempre, leva a uma noção nítida sobre a natureza social, encarnada, da lei do capital, a lepra do mundo, biologia ou história?, valendo permanentemente, em meio à grande confusão de nova rodada histórica de violências e guerras – os negros ativistas da televisão americana comungam com os socialistas internacionalistas que assistem o novo golpe, da democracia contra o povo, e um jovem brasileiro, crítico na ordem geral das coisas daqui, dá notícia rápida, em meio a mundo revolto, de país onde as coisas também vão mal. De forma precisa, o contexto histórico ilumina o detalhe. O contingente da vida, assistir ao jornal na televisão com a velha tia exilada, irmã de armas, e seu real coração veterano na luta de classes universal e na tragédia continuada do século, resplandece como matéria histórica, política de maior porte. Roberto Schwarz antecipava, com sua ideia concreta dos corações marcados por aquele modo de mundo em guerra sem fim, que constantemente nos acaba de trabalho, desemprego, guerra ou loucura, muito do que viria a ser a posição, quase estrutural, afiada na consciência mas sem armas para a ação, da esquerda crítica por vir.
Do outro lado, o cálculo e a autocensura permanente para não dizer o nome e a verdade da violência, reduzem os movimentos destrutivos imensos do tempo à um desejo de ordem familiar pacificada, em que o destino é ainda decidido por Deus e pela Virgem Maria, na impossibilidade patética da classe assumir de fato e de frente a história e a política, como direito e como verdade. Assim escreve o pai protetor, que comove por tentar manter um traço de amor, no mundo revolto dos filhos: o moço, preso pela ditadura na prisão Tiradentes – termo duro, que ele evita, para não revelar a força e a natureza histórica da violência, que cerca a todos, mas deixa vazar –, a moça, mandada para fora do Brasil em jornada de paz e amor pelo mundo, o famoso desbunde comportamental dos anos 1970, para evitar o próprio risco da história e da geração por aqui, de modo que os princípios genéricos e de pouco corte social do hipismo, já adaptado ao turismo mundial, se coadunam intimamente com o catolicismo simplório e conservador do pai. Enquanto a crise da família brasileira na história, o filho preso por motivos que não se deve dizer o nome – absolutamente ao contrário da consciência de tudo, da conversa do sobrinho brasileiro com a tia operária em Nova York – se resolve como estrutura degradada, regressiva, de vida social típica, de favor pessoal endereçado ao poder, modo tradicional de sua própria confirmação sociológica e econômica profunda. É o momento perverso e social forte da poesia, em que o pai de família à brasileira pede à filha que retorne com amor no coração, por ele e pela família, para “ajudar-nos nesta missão e confortar-nos para que eu tenha forças bastante para corresponder à confiança do Sylvio”; ou seja, cifradamente como tudo naquele mundo, Sylvio Frota, o general sanguinário da ditadura que comandava o Primeiro Exército e a máquina de repressão e assassinatos que se espraiava pelo país, a quem o pai pedira por favor e pelo amor de deus pela liberação do filho de família.
Evitando sistematicamente dizer o que ocorre de fato, emoldurando a alienação política com religião barata e comum do catolicismo local, o pai de família acaba também por dizer tudo: da ordem de violência real e ideológica, subjetiva e política, a que submetia a família por submissão à ditadura, mesmo que em algum lugar, tornado inconsciente, de forma contradita. E, como sombra do que não é dito, realiza, à contrapelo da própria autocensura, o quadro revolto ao redor – aquele que, nos Estados Unidos de então se resolvia como manobras jurídicas contra os negros ativistas, aqui era sequestro, prisão e tortura de ditadura, ou… o desbunde protetivo da revolução dos costumes, que aparece como possível dentro da ordem familiar e de classes.
Assim se apresentava a trama, aparentemente simples e sem trombetas, da prosa social de Roberto Schwarz. Andamento da história, na sua hora do agora, formação social de longa duração, ideologia, linguagem corrente da vida e subjetivação, apareciam em balanço e equilíbrio mútuo, frágeis e acentuadas a um tempo. Nenhum fator, íntimo ou mundial, pode ser dissociado um do outro, todos falam simultaneamente, todos são, na vida da história, para perguntarmos que horas são das ilusões perdidas ou da corrosão do caráter.
Adiantemos as horas. Passado o tempo, com muito trabalho no meio, foi “resolvida” a ditadura brasileira da guerra fria como se viu, em processo de democratização conciliatória com a sua própria raiz envenenada, tutelado em anistia aos crimes cometidos e com perspectiva capitalista geral. Um processo social e cultural hegemônico corrosivo da negatividade e da crítica, com suas massas de homens de mercado sem renda fazendo qualquer coisa ou qualquer negócio, social ou mental, para sobreviver naquele mundo, o da ditadura sem a ditadura.
Já na época das grandes esperanças tucanas burguesas dos anos de 1990, em que a democracia dava ilusão de finalmente começar no Brasil, aquela prosa social seca e ampla do escritor crítico chegaria a outra configuração. Era necessário, perseguindo o método de pensar em chave comezinha da vida o sujeito com a história, o desejo com a ideologia, que a pacificação forçada das tensões e a interpenetração das perspectivas do capital formativo e da esquerda reguladora democrática chegassem a um modelo de prosa com ainda mais mediações, estilísticas, históricas e teóricas.
Acompanhando a complexificação ideológica do tempo do embaralhamento de esquerda e de direita, todos a favor do progresso e da sociedade e todos sequestrados no automatismo mundial das contas locais a pagar, o escritor atinge o máximo da própria complexidade, a meu ver, em um conto marcante do final do século 20 brasileiro, “Contra o retrocesso”, de 1994; afinal, como o próprio capital se fazendo de civilizador e mediado, ao mesmo tempo que pressionando com constância a ordem da ruína ao redor, inscrito na onda racionalizante das tautologias da globalização cujo resultado era a transferência de renda direta para os ganhadores mais gerais – o que, na época todos negavam – com seus agregados contemporâneos inteligentes, elites nacionais vendedoras, os homens também passavam a ser no novo estágio nacional tão modernos e conscientes quanto automáticos, e plenamente disponíveis.
Com as novas volutas culturais dos esclarecidos anos 1990, com sua enciclopédia de velhas novidades da nova agenda – das bobagens homéricas zero à esquerda tucanas, de Paulo Arantes– junto dos constantes arrochos sociais, que apareciam agora como um golpe de gênio técnico das classes financeiras e proprietárias, surgia mesmo um novo personagem vivo da ideologia e da consciência. Personagem tão alto e rebuscado quanto a técnica do tempo, tão atravessado de teorias nacionais e globais quanto os medalhões, seus avós do passado – ou os colunistas de economia dos jornais do presente… – que, tentando ocultar, ainda cultivava, e tão disponível para jogar para o alto os escrúpulos, sejam eles da natureza que forem e bem reconhecidos por ele próprio, e partir para cima, para o velho corpo a corpo de uma soberania qualquer no pais que simulava atualidade sobre a própria ordem de atraso. Sujeito, assim, de um vale tudo, que oscilava entre o pequeno investimento no mercado que já se sabia falido, ou, o assalto cruel e liminar, na última hora, de gangue de protegidos e compadrio familiar ao mesmo país, que ele parecia entender como técnica e como cultura.
Alguma semelhança com a tragédia voraz da direita culta e cosmopolita do Brasil, informada e na vanguarda do saber do mundo, cheia de Consensos de Washingtons e passeios por grandes museus mundiais, nuvens que passam quando Wall Street quebra, que se fez bolsonarista – neofascista – da noite para o dia, de vinte anos depois? Toda, até onde se pode verificar. Era a estrutura geral do poder, da subjetivação e da ideologia, no caleidoscópio geral do progresso e do mercado, com a maior gestão das massas de desempregados e subletrados para a autossatisfação dos senhores, enquanto se tunga qualquer coisa, que se tornava a verdade da democracia que se revelava no habitus do corpo de classe que fala.
O sistema de correspondências literárias daquele conto também se deslocara. Era agora a muito meditada ironia formal machadiana, hiper-consciente da vida social e dos seus efeitos derrisórios das universalidades pressupostas, mas também em falta e suspensão no lugar. Mais a atenção à mediocridade bem posta e envolta em auto justificação semi-letrada, que confunde cálculo comezinho com cultura. E que também se expressava na aceitação da guerrilha conjugal cotidiana da sociedade econômica do casal pequeno burguês, cujo amor é de fato ascensão, vinda da prosa tradicional radical do mesmo cinismo kitsch pequeno ilustrado paulista e paulistano, que aparecia agora com toques de retórica técnica e nova agenda, de um Paulo Emílio Salles Gomes e de uma Zulmira Riberio Tavares. E até com ecos, conscientes ou não, na bem destrambelhada consciência modernizada totalmente em falso, que faz bom papel “intelectual” para si mesma, casando permanentemente ridículo com civilização, de Carlos e Carlos Sussekind; é esta tradição da alta razão formal cínica, e sua comédia do estilo, da vida de classes no Brasil, ainda mais do que Baudelaire e Brecht, o fundo de referências que se nota no conto, muito tramado.
No novo tempo do mundo local, de fantasia do poder de desenvolvimento democrático e prática do poder de sucateamento nacional simultâneos, a solução estrutural desde Machado de Assis de alta retórica e uso total da língua, que embaralha saber mundial e patetice social situada, técnica e vale tudo, ainda tinha muito o que dizer.
Assim começava o conto dos bem postos do Brasil – mesmo que por baixo, entre o capital e a ruína, a inteligência e a demência, o entendimento da razão do poder e a vertigem de se ver sem destino diante dele, sem pinguela, mas sempre insistindo no valor de toda a coisa, próprios à inteligência local:
Minha mulher e eu hoje levantamos cedo para comprar uma ponte. Ao que dizem será a última privatização realizada no país. A pinguela foi construída há muitos anos pelo Estado, mais precisamente pelo cunhado do prefeito. Ela vai de um lado ao outro do córrego e é atravessada por praticamente todo mundo várias vezes ao dia. A sua utilidade está fora de dúvida. Talvez de caso pensado, o edital da venda não explica se o governo costumava cobrar pedágio aos moradores. Sabemos que não, mas é claro que a intenção do comprador não pode ser outra. De minha parte, que não sou do ramo, confesso que estou me apresentando à licitação mais por curiosidade. Uma pinguela não há de ser cara e pode servir de entrada a quem está à margem da atividade econômica moderna. Foi a leitura da página de economia dos jornais que me alertou contra o perigo de ficar parado. Ainda assim, a hipótese de ser dono da ponte me perturba e parece um sonho. Não estarei repetindo o papelão do caipira esperto que comprou um bonde? Anedotas à parte, o que pensar de minha repentina taquicardia, sem mencionar o surto de caretas indignas, em que não me reconheço e que me desiquilibra o espírito? A pinguela é pouca coisa, mas muda tudo, se o negócio for feito. As idas e vindas no município jamais serão as mesmas, e também eu sairei alterado. Terei ainda força de passar por alto, de deixar sem comentário a inocência dos patos? O capital não ri enquanto cresce. Aos patos do mundo inteiro, aquele abraço! No meu sonho, além de pagar, todos os usuários me darão um alô, que não estarei lá para receber, devido aos muitos afazeres.
Assim se formalizam os compromissos e a pulsão de agiornamento com a época, de um arrivista qualquer do Brasil, na época dos arrivistas generalizados, que pondera aproveitar a voga e mudar de classe. Alta economia e baixo sadismo oscilam, na vida municipal de um homem que quer entrar para o clube da renda expropriada de alguma, ou de qualquer, forma. Nem que seja firmando a propriedade da última pinguela, coisa pública em sucateamento final, última ilusão de embarcar, ainda que na rabeira, em avião global que sobrevoe a dissolução do próprio mundo – como o daquele sonho mundial de Chico Buarque, com seu pálidos economistas que pedem calma, mais ou menos da mesma época. Pois, alertado pela esposa sobre o mistério econômico e social da expressão excêntrica a última privatização que cerca o negócio da pinguela, o narrador, que manda sua “missiva para ninguém”, vai entrar em um divertido, patético e até doloroso parafuso ideológico e conceitual ao longo de todo conto. De fato, é ele o pato que chegou por último à porta do paraíso da propriedade, ou, ainda pior, o próprio mundo do capital recolhe a última justificativa para dar conta do mundo de desempregados em massa que já produzia, do qual o conto falava pela primeira por aqui, gente que pouco ou nada poderia pagar pelo uso da ponte do emergente neoliberal de uma cidadezinha do interior? O pequeno capital, do agregado local e nacional, iria para o buraco, junto com o buraco geral que sugava tudo, próprio do capital mais amplo no mundo? Mais uma vez, o homem ideológico encarnado de Roberto Schwarz parece saber de tudo, ao mesmo tempo que desconversa e tenta saída retórica e mental de tudo.
Tirado o ponto fixo ideológico da pinguela, as privatizações mágicas para onde se encaminhava todo o sistema de razões tucanas do tempo, se enuncia, bem antes da história da democracia brasileira sincronizar com o fato, a dissolução geral no horizonte. E mais nada. Então, não se sabe mais o que pensar. Porque aquele não é um mundo em que de fato se pense, mas um mundo de semblante de pensamento, repetição comum de jornal interessado, a favor do que não sabe e não quer saber. A própria ruína? É muito interessante como tudo se estrutura como pergunta, pataquada ideológica e crise, sem perder a ternura da pressuposição de uma superioridade qualquer. A crise, que alcança os bem pensantes a favor, dissolve sujeito, teorias, referências e faz dos próprios tiques e repuxos nervosos seu inconsciente do mal-estar histórico, sem definição, mas bem definido, a sua própria verdade. Junto com a velha e boa retórica, estilema de classe.
Ao longo do conto, o narrador vai desfilar essa complexa desmontagem, desconstrução economicamente orientada e social, que vai da mais sublime ideia metafísica moderna anticrítica da época, contra a emancipação e o socialismo…, até o mais patético uso dos vícios e das formas mais tradicionais de um país de origem colonial e escravocrata que, em último caso, é ainda retomado como salvação. Tudo com foros e cacoetes novos, de realista pensador da nova ordem, nos seus termos:
Isso no sonho, porque na realidade sou um homem esclarecido, amigo dos fatos, avesso às finezas com que um e outros gostam de ornamentar a simplicidade das coisas. Nunca me convenci por exemplo de que a propriedade fosse o coroamento do mérito. Nem apelo para o destino para explicar a existência dos miseráveis, que considero efeito normal da falta de dinheiro. Assim, não fujo dos problemas morais difíceis colocados pelo problema da privatização da ponte: por que eu? Por que não outro? E porque não eu mesmo, não havendo desfeita para os demais? No meu entender, os paradoxos da justiça e da injustiça desembocam num vale-tudo, o catch-as-cacth-can dos anglo saxões, preferível todavia ao igualitarismo doutrinário de 1793 ou 1917, quando se manifestou a falta de pragmatismo dos latinos e dos eslavos respectivamente
O equilíbrio escorregadio entre argumentação racional, o exercício de fineza para a própria imagem de um eu que faz boa pose no espelho – que também é aspiração de classe – e a descambada feroz para o vale tudo a qualquer instante é notável. Esse traço, estrutural de eu e sociedade a um tempo, desde o alto, vai atravessar toda a composição, como atravessa o país. Vista como ideologia, técnica retórica e ciência da técnica, do economicismo esperto da época, a história acontecendo na vida mesma do personagem que se tem por minimamente superior já aparece como barbárie, que se dá mais uma vez no próprio enunciador de sua visão de mundo, agora por cima da carne seca, mas que apodrece rápido. Nesta patetice tropical espevitada, inteligente ruinosa, há também um pequeno Kafka, da racionalidade europeia clássica que leva o seu próprio enunciador ao cadafalso.
E tudo vai alcançar o ápice, quase definitivo, na derrubada de toda justificativa e fantasia do tempo, de toda voluta de saudação ao capital contemporâneo como a verdadeira verdade da democracia e das vidas, alcançando, então, o velho núcleo oculto e presente por tudo, a ordem local de violência e estupidez diretas, de longa duração, sem as mumunhas da técnica da justificação:
E sem o pedágio a ponte ficara ligada a nosso nome somente à maneira antiga, pela anedota e a saudade, algo como por exemplo a Rua do Piolho ou a Travessa do Sapateiro? Retrocesso não é comigo, e vou me defender da inadimplência dos despossuídos. Dou de barato a função matrimonial dos prognósticos econômicos muito negativos, que às vezes projetam sobre a sociedade a falta de saída do constrangimento conjugal. Os que lembram contam que a aspiração antiga por uma sociedade sem oprimidos não passava da amplificação absurda do mal estar em família de alguns temperamentos messiânicos. Acho possível. Mas sustento que o impulso contrário também ocorre. O sopro que anima os dias de combate em grande estilo em minha casa é uma clarinada que vem de fora e de mais alto. Como não ver no meu desdém pela crase mal colocada o direito de mando das classes que dominam a ortografia? Quem sabe escrever sabe governar. A controvérsia violenta sobre o arranjo das folhas de salada no prato em última análise se refere à indisciplina da mão de obra brasileira. A desordem que flui e reflui em nossa sala de visitas é de natureza claramente insurrecional. Gosto dela. São antecipações de um dia pelo qual anseio, em que nós brasileiros ajustaremos contas fora da regra tacanha do lucro e do juro, com a liberdade e os movimentos amplos que fazem das evoluções do tubarão no cinema um espetáculo inigualável. Concordo plenamente com o rei que mandou enforcar o mais querido de seus pintores paisagistas porque o suspeitava de exaltar um sentimento da natureza sem lugar para a propriedade privada.Vejo na TV como o público vibra com a implosão de arranha-céus leprosos. De cuja inauguração com bandeirolas as pessoas de meia idade se recordam. Nesse ponto minha mulher e eu simpatizamos com o povo, como aliás achamos que o melhor da TV é desligar. Contam que ao chegar em Manhattan a refugiada de guerra Ernestina Roth se recusou a dobrar os joelhos e disse, com ingratidão imperdoável, que aquilo que tinha diante dos olhos era um despropósito, que não se sustentava conceitualmente em caso da humanidade alguma vez se levar a sério. Pois bem, vou à licitação assim mesmo. Não sei se quero a pinguela, que vai me dar uma porcaria por não sei quanto tempo, o qual tratarei de prolongar ao máximo, à bala ou como for possível, depois do que não fico no país nem um minuto mais. Não devo esquecer a minha carteirinha de primo da sobrinha do prefeito.
Além de Machado, Paulo Emílio, Zulmira Ribeiro, Carlos e Carlos Sussekind, Kafka, há algo de Robert Walser nesta prosa. A vertigem afirmativa das mudanças de posição do narrador faz do pensador o objeto, e não o seu pensamento, que, no entanto, o qualifica a cada momento do texto. Cada posição porta a sua própria verdade, por assim dizer, e o todo, que não é íntegro e tende à regressão ou a ruína, é o que importa. Avançando em choques constantes de suas verdades para o nada, entre a guerra conjugal como fato social, o tubarão estético da liberdade econômica absoluta e o ciframento do desejo de revolução, que atravessa toda a vida, a popular e a própria, o ponto de fuga sem saída daquela encenada dialética chega à verdade da coisa: a propriedade, e sua renda, se mantém à bala. Ou a qualquer outro método semelhante. E, ainda, nas condições históricas deste país e sua democracia mal entendida, gangues que imprimem seu renovado selo à política, velhas relíquias do passado social original, podem organizar de novo, por excesso de poder e da noite para o dia, o saque. Abandonando-o outra vez à própria sorte de uma falsa realização. Ficava sinalizado o vínculo de modernidade, corrupção e consciência anti-social forte, que dava a liga ideológica da teoria e dos sujeitos de uma elite periférica recém chegada ao mundo dos contratos globais entre “iguais”, com seu pathos multiforme. Aprofundava-se a agenda – como dizia Paulo Arantes sobre a coisa – da subjetivação tucana do início da corrida neoliberal no pais, dando um quadro da elite nacional no espelho de sua comédia, daquele tempo e de fato do que viria. E, novamente, se toda matéria do sujeito é história, a história também se representa como subjetivação.
Voltando o ponteiro do nosso balanço mais uma vez para trás, em nosso ziguezague e zaguezigue, Roberto Schwarz havia percebido também, 20 anos antes, uma outra dinâmica da cultura e da vida, de ainda outra nova ordem importante de gozos próprios de alienação e satisfação com o que existe. Desta vez, satisfação da própria esquerda e da inteligência e sua sociologia do compromisso social, que deixava de ser crítica e exigente para ser cultural e apologética.
Em 1972, à época dos poemas auto-ruinosos e provocativos de Corações veteranos, Roberto escreveu um outro conto, que entrava fundo em nova matéria social de grande relevância, que envolvia agora os jovens progressistas, de qualquer país. O conto, uma paródia social marcusiana seca, que aparecia então como literatura realista, sempre centrada no eu que encena o mundo junto da própria experiência, era esse:
Utopia
A festa estava animada, e já havíamos esquecido o seu pretexto. Cloé, a quem a pouco eu havia sugerido, baixando viva e indicativamente os olhos, que pusesse a mão em meu pinto, está sentada ao meu lado, zangada ainda. Mas penso que refletiu na minha proposta. Fala-se de um concerto de violoncelo que dentro em breve ela dará no Seminário B. Bartok. Sento no chão, e viro-lhe as costas. Enquanto aprecio as dificuldades da situação, sigo atentamente a conversa de uns rapazes, que discutem o preço da soja. Sem mais demora escorrego a mão para dentro das sais dela, e com o dedo médio lhe procuro os pequenos lábios. Cloé, que estava parada escutando, ficou mais parada ainda, como se fosse de pau. Mas lentamente deixou-se ficar, e começou um balanço ligeiro, como quem considera o que os outros tem a dizer. Breve o meu dedo estava quente e umedecido, e se o tirasse estaria luzidio, Senti uma grande ternura por Cloé, e tive a certeza de ser correspondido. Neste momento, silenciosa, surpreendente como um tiro de pistola, aparecia Aurora no umbral da porta. Ela tem o segredo destas entradas quietas e vistosas, razão pela qual não a esquecerei jamais. Fiz-lhe um sinal de silêncio, e com os olhos indiquei o que se passava. Ela levou a mão a boca, inclinou o corpo para trás e arregalou os seus olhos ridentes. Em seguida atravessou a sala, balançando o corpo de modo muito intencional. Estava tendo ideias. Cloe vira-se para mim, e pergunta com amável petulância: – Você permite? Pega-me pelo pulso, e afastando a minha mão, sai para passear pelo jardim. Levantei-me e cruzei com Aurora no centro da sala. – Eu quero alguma coisa no gênero, me disse ela, com um reproche no olhar. Respondi-lhe que não, que estava excitado, e que não era o dedo que eu queria lhe dar. Ela me olha com desprezo, dizendo que neste caso não interessava. È raro que duas pessoas se entendam.
Quando, no início dos anos 1960, Roberto Schwarz fazia sua pós-graduação em teoria literária em Yale um colega de turma, Peter Marcuse, um dia se aproximou e lhe disse: “As coisas que você falou no seminário, e este modo social de entender a forma literária, é semelhante ao de meu pai…, talvez você goste de conhece-lo…”. Pelo relato que me fez, Roberto Schwarz não tinha clareza de quem se tratava quando almoçou com Herbert Marcuse e sua família em um final de semana. Ele se espantaria ao ouvir o velho alemão bater na mesa ao responder às provocações agudas do filho, um progressista americano, sobre o desenvolvimento capitalista e a democracia liberal como valor suficiente e eficaz para a regulação da vida toda. Conversando, Marcuse lhe diria que, com sua obra dos últimos tempos – Eros e civilização saíra em 1955 e começava a fazer efeito político e social na cultura crítica jovem americana, efeito que, com o 68 francês, se tornaria mundial; e A ideologia da sociedade industrial, o homem unidimensional que estava sendo escrito naquele momento, apareceria em 1964… –, ele estava de fato ajudando o marxismo a hibernar. Para o jovem crítico brasileiro, engajado na percepção da revolução concreta, nacional socializante, que acontecia com toda energia da mobilização nas periferias do sistema, pensando o capitalismo global e sua dialética mundial de outro lugar, e a experiência da história desde o Brasil, o esforço teórico radical freudo-marxista do filosofo crítico era significativo, mas, no entanto, deslocado do que convocava. Continuando a prosa, Roberto Schwarz lhe perguntou sobre outro teórico, e descobriu ser ele de interesse mútuo: – E Adorno, professor, o senhor o conhece? O que pensa dele? – Ah! Adorno is my beacon! Adorno é o meu farol…, respondeu o filosofo da revolução sexual do capitalismo avançado, que deveria ser revolução radical crítica, anticapitalista.
A pergunta sobre Adorno tinha propósito. Em 7 de outubro de 1961, Roberto, jovem discípulo e estudioso de Antonio Candido e sua própria teoria dialética da forma literária desenvolvida no Brasil, escreveu a seguinte carta, para o filósofo e crítico alemão:
Caro Prof. Adorno,
perdoe esta carta que lhe dirijo sem ter sido introduzido e o meu mal alemão, eu não tinha alternativa. Sou brasileiro, acabo de concluir em São Paulo a graduação em sociologia e devo trabalhar futuramente como colaborador no “Departamento” [em português no original] de Literatura. Eu me interesso profundamente sobre os seus escritos e gostaria de utilizar uma eventual bolsa que iniciaria em outubro de 1962 para assistir suas aulas de estética. Gostaria, então, de saber se o senhor seguirá lecionando esse curso no período de 1962-63, o que, é claro, não se pode depreender do catálogo disponível de 61-62.
Atualmente me encontro em Yale e me irrita a falta de teoria da teoria literária que se faz aqui.
Espero que o senhor desculpe o incomodo,
Muito obrigado, do seu
Desde já, fica assinalada a semelhança da síntese de grandes concentrações de sentido, sempre claros, pessoais e sociais, mesmo que em balanço, que se dá entre esta carta concisa – que apresenta e alinha um intelectual com outro, intelectual de outro mundo mas que se sabe o mesmo – e a literatura seca, realista e de amplas implicações histórico-subjetivas de Roberto Schwarz de dez anos depois. A frase lapidar, de dialética chistosa aguda – que surge após a apresentação, sem excedente, da qualificação do escritor, em texto que se expressa na estrutura da linguagem direta ao assunto e contida, ao mesmo tempo – “atualmente me encontro em Yale e me irrita a falta de teoria da teoria literária que se faz aqui”, é um desses achados, me parece, entre o eu e o mundo, em que subjetivação e cultura se compõe e se constituem, se interpenetram e se chocam, com toda a história de uma vida contida no sentido mais amplo que se transfere pela frase, bem como, a evocação de sistemas ideológicos inteiros. No caso, tudo posto em uma consciência da recusa. É possível que Adorno não tivesse entrado em contato, antes desse, com um poema pau Brasil do país inserido desinserido, uma intensidade sintética de forma que transmitia assim, de modo especial que tem fundamento histórico, uma experiência critica radical, de outro lugar no mundo. Ao que tudo indica, Roberto Schwarz se referia, para o bom leitor para o qual a palavra justa basta, à falta de teoria dialética no entendimento da produção da forma, à falta de teoria social generalizada e à falta real de teoria crítica do departamento americano. Muito provavelmente. Mas, tudo dito como elipse da história, sem ser tudo dito, pois se supunha precisamente a consciência do leitor como complemento do sentido da forma e do enunciado. Adorno responderia, na mesma moeda, com suas próprias armas de escritor:
Caro senhor Schwarz,
para meu espanto, vejo que a sua tão gentil carta de 7 de outubro continua ainda sem uma resposta. Peço que me desculpe, pelo visto ela afundou na inundação de papeis em minha escrivaninha, sobre a qual há tempos eu não tenho mais domínio.
A coisa não é, no entanto, tão trágica assim, porquanto nos próximos semestres não lecionarei estética, eu estou terminando este curso agora, nas últimas semanas do semestre. O tema de meu curso no semestre de verão é uma introdução à terminologia filosófica. Ainda não tenho certeza do que será no de inverno; não é impossível que eu tire um período sabático para finalmente concluir algumas coisas mais extensas. Em todo caso, a sua carta é de tal natureza que eu ficaria particularmente contente se o senhor viesse para cá e quisesse estudar conosco. Sou imodesto bastante para crer que o senhor não partiria de mãos vazias se nada imediatamente concernente à estética fosse tratado.
Com as mais cordiais recomendações,
do seu fiel,
Essa tensão na vida da experiência, entre o Marcuse do erotismo estrutural da psicanálise como crítica e o Adorno da teoria estética e da dialética negativa radical, que informavam em algum ponto o crítico e o escritor, junto a Machado de Assis e Antonio Candido e seus próprios pressupostos dialéticos, talvez estejam presentes no conto erótico, seco e social a um tempo, “Utopia”, da festa dos novos jovens, da nova vida cultural como erotismo aceitável, expansivo e também consumível, já sem corte algum na esfera dos poderes do mundo.
Afinal, no horizonte do acontecimento do conto de 1972, quase um instantâneo, um retrato do tempo, o preço da soja – coisa do mercado mundial da circulação do dinheiro, que faria a riqueza do país no futuro… – quando ninguém prestava atenção no assunto, já ia alto e interessava, mesmo que fortuitamente, tanto quanto a cultura elevada de seminário estético que desceu ao chão da vida ao redor. Oswald comentou o preço do café em um poema que Roberto Schwarz destacou, e Drummond cifrou o preço do ferro em seu em busca do tempo perdido poético Boitempo. Mas a situação social da “Utopia” de agora era muito diferente daquelas visões heroicas e provincianas da modernização do Brasil dos fluxos globais de commodities. Agora, classe média ou ricos, chics entre si, homo cultural ou apenas os culturetes por vir, saiam displicentemente para o jardim da festa em uma casa com jardim e, entre conversas sobre mercado e vanguarda musical, sentavam no chão. Não há política na cena, exceto essa mesma. A modernidade antiburguesa de choque dos tempos passados convivia recentemente, plena de outra ordem de poder incorporado, com a própria vida burguesa que aparecia como desejável. Aqueles jovens gozavam das suas novas prerrogativas de corpo e de sexo em um mundo pacificado assim, entra a alta cultura como cultura comum e as potencias de eros, estabilizadas naquela nova vida moderna. Pois o seminário B. Bartok – ou B. Brecht… – acontecia envolto em concerto para violoncelo, alta cultura e novo erotismo desrecalcado, tudo em situação de câmara, de classe, que pode estar em qualquer lugar do mundo, da mercadoria como cultura e da sua excitação.
Resolvendo nesta forma o problema que apontara em 1969, da postura hiper-estética como política – e também erótica, como se sabe – dos jovens artistas tropicalistas dos anos 1968, porém, estética em verdadeira dissociação e por vezes oposição à vida do comprometimento popular que havia sido massacrada no pós-64, Roberto Schwarz completava a percepção de que algo inteiramente novo, e não necessariamente bom, estava acontecendo no próprio mundo da sua cultura. Vanguarda e conformismo, como ele diria em outro ensaio, sexo e capitalismo, desejo e vida rebaixada à estetização do presente, crítica e conservação das razões do poder como mercado da vida, Marcuse e Adorno pode-se dizer por metáfora, estavam fundidos em uma nova experiência de classe e de produção, configurada no conto como excitação sem política, embora seja tudo sociedade.
Quando toda a cultura no Brasil voltava-se para o negativo radical, o esforço novo de criar pontes políticas para a redemocratização necessária e o novo erotismo do desbunde, que se fundia facilmente à indústria cultural, como modernismo aceitável de costumes a favor da expansão da forma mercadoria e seu mundo, Roberto Schwarz nos dava um vislumbre claro de outra dimensão social formal, na festa dos jovens cultos, eróticos e atinados com o mercado. Aquela esquerda jovem, pressuposta, em sua experiência de classe e de câmara já era bem contra o retrocesso, pois tinha a sua própria concepção erótica do progresso. De resto, a mesma nova experiência social que em meados dos anos 1980 viria a ser chamada, por críticos como Frederic Jameson e David Harvey, de pós-moderna: com seu cinismo informado, sua naturalização, blindada por TV, vídeo clip, vídeo cassetes de Bergman e vinho francês de supermercado, do capitalismo em novo capítulo de globalização e seus sujeitos que, enquanto frequentam a cultura de vanguarda a vivem na esfera da vida individual, confundindo autonomia da arte com a individuação privada. Era a vida como “micropolítica”, se aproximando constantemente da pequena diversão, do entretenimento. Ainda mais do que na teoria de seus ensaios do tempo, em sua literatura, “se o fim da Guerra Fria é
é ao mesmo tempo o surgimento de nosso próprio momento histórico – para o qual ‘pós-modernidade é uma palavra tão boa quanto outra qualquer – então o que Roberto Schwarz estava descrevendo, já que não poderia saber naquele momento e nem poderia desejar, era nada mais que o modelo de produção cultural pós-moderna.”
De fato, em um conto muito crítico do destino marcusiano da lógica de eros e civilização do mundo mantido bem cindido e violento, de sujeitos gozosos da cultura do mercado ampla e nova, da arte, das coisas e dos homens – a mesma crítica que também Marcuse, já em 1964, realizou, com seu conceito de dessublimação repressiva próprio às sociedades industriais avançadas, que era isso mesmo – Roberto Schwarz apontava na história da cultura por aqui dimensão que não tinha nome, verdadeira subjetivação de classe que reduziria ao próprio fetiche a vida da crítica. Tudo se resolvia enquanto corpo e gozo direto, enquanto o mundo, produzindo bem longe dinheiro, e a crise ambiental por vir, já era apenas a cifra do interesse e um espetáculo para uso privado, o que era lógica geral.
Pulemos, por fim, para hoje e para o Roberto Schwarz de agora… O salto parece imenso, e com efeito é. Mas, como se verá, nem tanto. Acompanhar a história bem de perto gera as conexões de afinidades que costumam se ocultar e dá linhas de coerência ao diagnóstico. Roberto Schwarz acaba de publicar uma peça de teatro, de caráter político e de enquadramento social, sobre as próprias intensidades ruinosas de nosso presente nacional, a Rainha Lira. Uma peça de teatro não é poesia, nem a prosa medida de um conto, no entanto, muito dos procedimentos de forma subjetivo política descritos, com o alcance histórico o maior que der e seu cotidiano teórico bem amalgamado nas vozes, estão presentes no espetáculo de multiplicidades e fragmentação dos personagens, sujeitos do mundo de nosso novo transe, que estão em toda parte no novo escrito.
Rainha Lira se organiza a partir do reconhecimento de tudo, a incorporação na peça dos agentes sociais de qualquer natureza ou ordem de nossa crise atual amplíssima. Assim a peça evoca a ideia do todo, que ainda importaria em algum lugar do pensamento crítico e da história. Ao mesmo tempo, ela descreve e acentua a impossibilidade meio patética de duas posições na vida e no país chegarem próximas de concordar em alguma coisa, dissolvendo, por esse lado, a própria ideia de todo em múltiplas vozes e em perspectivas esgarçadas. Surge muito nítida, o que é proeza do pensamento e da forma, a geleia geral nova – nova ordem de transe, mas também coisa já descrita antes historicamente, desde 1967 no mínimo, o que dá o tom especial de dejá vu atualizado. A peça pensa capitalismo contemporâneo, nação e subjetividades em impasse, tudo outra vez. Porque tudo está de fato em jogo, na vida mesma de um espaço nacional que se arruinou de muitos modos, em um tempo e um mundo que se arruína de modo próprio. Olhando o processo sob o código social esquecido pelas teorias contemporâneas – teorias da vida e da experiência – das classes, muita coisa mal-entendida ganha nome, enquanto o mal-entendido passa a ser ele mesmo, além da democracia, a própria forma da história por aqui.
De fato, passados cinquenta anos de escrita da chanchada negativa para o palco A lata de lixo da história – que alinhava com a vanguarda de 1968 do descompasso local do momento da consciência mundial, da técnica estética que problematizava à ideia de nação atualizada e livre encenada contra a regressão espetacular da subjetivação e do gosto, que buscava sustentar subdesenvolvimento como destino moderno e eterno – Roberto Schwarz repõe agora a pesquisa de todos os novos descompassos, de uma sociologia complexa atualizada das diferenças sociais e das vozes. Ele acompanha a micro escala contínua da vida da fragmentação das classes, experiências de si e de país, no Brasil, em termos que impressionam por ainda estarem lá mas que, passado o tempo, já não estão mais comprometidos em alguma imagem pressuposta de futuro. É nítido como as indicações de abertura de cena da chanchada do final dos anos 60, publicada em 1977 e rotulada então como farça, republicada em 2014 já como chanchada, pois “de lá para cá muita coisa mudou, mas nem tudo”, continuam dando noção do quadro geral de ainda agora:
No palco há bonecos de negros e animais, que serão maltratados de várias maneiras, conforme a circunstância. Há também um espelho. As cenas são separadas por segundos de escuridão.
Nesta peça, tudo é questão de ritmo e corte, pois ela é construída sobre transições canceladas. A passagem da chanchada à atrocidade, as transições rapidíssimas em matéria de convicção, a brevidade com que se despacham as discurseiras, bem como a alternância de asneira e cinismo, fazem figura de história contemporânea.
Na nova peça, A rainha Lira, há um esforço de unidade histórica como concepção de forma, por assim dizer. Pois é da imaginarização da história que se organiza a ampla leitura do processo de degradação política, cultural, institucional e do velho caráter de sempre das elites, incluindo aí a esplendorosa fragmentação da esquerda, no Brasil dos últimos tempos. O fio que faz avançar os problemas e a cena de múltiplos e múltiplos atores é uma leitura intensiva do que ocorreu no Brasil desde os acontecimentos de 2013. Este diagnóstico, de um processo temporal político social que tem marcas em todos nós, nos convoca e nos encontrará mesmo em algum ponto da fabulação, é o plano comum do qual parte a peça, farsa ou chanchada, de onde emergem e se posicionam as múltiplas vozes, as múltiplas posições e sujeitos que realizaram aquela esculhambação histórica que, de fato, ainda estamos plenamente mergulhados.
Levantando as ideias que moveram o processo, em todos os seus atores contraditórios, a peça deságua inteiramente no presente. Cinema novo, Brecht, teatro social dos CPCs, Arena e Opinião, são modelos históricos, que estão na origem do próprio percurso do crítico, desta representação que quer engajar no agora histórico.[1] “As enfibraturas do Ipiranga”, O rei da vela, Terra em transe aparecem também como fantasmas de uma tradição de inquietação política e formal moderna, que se confirma mas se desfaz em impasse em conjunto com o seu objeto. Atualizando as referências, a peça de fato convoca as posições diante de um drama histórico que ainda está vivo, ao menos dos “inteligentes” do país, convocação que, na cultura hoje, apenas a ação de vanguarda técnica da retaguarda radical da direita em busca do poder e em redes sociais parece saber realizar. Todos, no drama político patético, do último popular que assiste a tudo e contínua em sua guerra particular sem lugar no país, ao mais alto capitalista, oportunista e rapas, passando por políticos que jogam com o país em cálculos furados, que tanto faz se dão certo ou errado pois ganham de todo modo, pela esquerda organizada junto ao poder que não sabe avaliar o que está acontecendo em seu próprio tempo e pela nova esquerda autonomista estudantil, que demanda não se sabe bem o que, de não se sabe bem quem, têm voz significativa na nova ordem que se desenha. Todos contam, mas, fica muito claro, algo na história pode dispensar liminarmente todo mundo. E todos sentem o ultrapassamento, mesmo que o pensem com dificuldade ou com facilidade…, que já se sabe sob os pés das próprias posições. Aliás, como o pequeno investidor cínico de “Contra o retrocesso” já havia anunciado vinte anos antes com simultânea confusão e consciência da coisa, na raiz do processo da democracia à brasileira.
O diagnóstico da crise geral é um dos elementos fortes da peça, a própria leitura do crítico do momento contemporâneo do país no mundo, e do mundo no país, nomeado na farsa como Brazul. O que ele nos diz é, do ponto de vista político, com alguma variação, mais ou menos o seguinte: 1) a crise antigoverno de 2013, movida por milhões que tomaram as ruas no Brasil, foi uma espécie de revolução enigmática, sem conteúdo político, mas plena de mal estar social, que ninguém assumia as consequências, 2) a esquerda estudantil que deu origem à ela pouco sabia sobre o que fazia e desejava de fato, daí nada fazer ou realizar após a entrada em cena da própria insurreição, 3) a esquerda institucional, que sofreou o golpe, por seu lado, sabia ainda menos do sentido histórico do processo, nem o que fazer, nem como sobreviver ao levante, 4) este governo de esquerda, o da rainha Lira na peça, era instável e fraturado, dividido entre os interesses desde o alto da rainha (o PT) de civilização retórica, o lastro do grande dinheiro nacional que o sustentava e limitava então em definitivo, o pacto político corrupto com os conservadores, que faziam parte do mesmo governo e a presença contida e ressentida de alguma esquerda, que queria virar a própria mesa (representados na peça como as três filhas da rainha), 5) observando a justa insatisfação popular que rompeu com o governo na rua, e ganhou a cena nacional, setores vorazes do dinheiro e amigos oportunistas da política trataram de aprofundar a crise ao máximo, 6) o golpe de mestre, mesmo que catastrófico ao final, foi colocar a população em estado de revolta contra a esquerda no governo, isolando a esquerda do país, e apresentando a burguesia como sua principal vítima…, 7) para isso foram utilizadas estratégias de controle e comunicação de massa, com o alinhamento, consciente, dos grandes interesses burgueses com seus meios de comunicação, grande máquina de propaganda, que agora tinha base popular e falava do roubo petista toda noite no jornal nacional da sala de jantar, sem resposta 8) a revolta popular deixa de ser por demandas de justiça para o pobres e trabalhadores, e passa a ser uma revolta perversa, que se aprecia como justa, contra o trabalho no Brasil, 9) a rainha Lira, sem entender o que acontecia, dividida entre o povo que não correspondia à sua política e as três “filhas” que compunham o governo – burguesia controladora da economia, conservadores corruptos controladores da política e a esquerda institucional, em conflito mas sem povo – perdeu a legitimidade, o governo e o poder, 9) no mesmo processo em que os espertos abrem um abismo no plano do poder, levando a opinião pública a desejar o massacre da esquerda, surge, do fundo do poço, que já virava abismo civilizacional, a direita com base popular real: mafiosa, policial, ciente de como dominar, hábil para o caos que ela mesmo cria e gerencia, 10) o pais se torna um grande objeto ridículo de assalto, fora do tempo, fora das ideias, incompetente e degradado, mas sem medida para a própria incompetência e desorientação, fora da ciência, política ou material, 11) o fantasma que acompanha tudo ausente da cena, pois está preso, O Rei (Lula), faz um discurso final, crivado de ironia e amargura, com pedido de mão na consciência de quem foi sujeito de tudo aquilo – na peça, como no país, simplesmente todos… – lembrando que, para o desconsolo de tantos, e para a fantasia de outros tantos, só ele pode por alguma ordem, ainda, do que se convencionou chamar civilização, naquela casa. A voz do Rei é a um tempo realista e farsesca porque, dado o andamento geral e incontornável da dissolução de tudo e de todos, algo parece indicar que mais uma ilusão, mesmo que a Dele, pouco pode diante daquele real, vida social e nacional de olho no mundo do dinheiro mundial, que se dissolve a si mesma por lei interna de capitalismo e barbárie, daqui e de lá.
A dissolução das ilusões que sustentam as posições, que no processo histórico e do próprio desejo se descobrem sempre falidas e passadas para trás, enquanto algo mais forte que todos querem estar à altura e controlar – e política aqui é isso, o último senhor da última pinguela, ou da lata de lixo da história, com suas linguagens altas e baixas para encenar estar no controle – ultrapassa a todos.
Se há uma leitura conturbada da história que ganha unidade na peça, que a organiza com a paródia muito simples de Shakespeare, pois a realidade, mesmo que complexa, é grosseira, ela se refrata e se multiplica em infinitas posições, entre os indivíduos tentando salvar a pele e a barriga, e tentando salvar a própria pele psíquica na guerra aberta, mas sem meta, que se tornou o país. Ao mesmo tempo, se revela o processo de reafirmação banal e boçal do poder à brasileira – quem haverá de negar? – como última cartada de quem ainda sabe o que quer pois, afinal, conta com a polícia para de fato sabê-lo. Se há um esforço de crítico e sociólogo de pôr as forças reais em cena, o todo se fragmenta na polifonia das partes, o que é coisa de escritor. Polifonia das fragmentações de classe, da perda de lastro da unidade da política dos pobres à esquerda – a peça recusa abertamente a posição imaginária “como se a derrota não fosse um defeito”, que Schwarz criticou na “revolução no teatro” do Teatro de Arena e da esquerda nos anos de 1960 -, e da ambivalência dos poderes, que também, desprezando a vida popular, querem o cenário da civilização como o direito de “manter a porcaria por não sei quanto tempo, o qual tratarei de prolongar ao máximo, à bala ou como for possível.”
Entre a figura indefinida do todo, a intuição do instante de crise do capital como explosão de todas as suas possibilidades, moduladas pelas classes e pelas tradições de múltiplas taras nacionais, e a polifonia infernal de vozes que reduzem toda história a cada ponto de vista, o espetáculo gira ao redor das mesmas figuras em agitação permanente, em um conjunto estável de modo destrutivo. Tudo muda o tempo todo, e tudo parece igualmente fixado. Com um toque de despacho e arrogância bem local de cada personagem, desta tensão constante assumida, surge o humor do escracho de dizer como as coisas são, que atravessa toda a peça. Dizer como as coisas são, que cai no vazio do outro, que dirá ainda uma outra coisa, e a nave vai, sem consciência acordada de para onde. Dialética negativa ao modo histórico periférico brasileiro, bem encarnada em pessoas e fatos do dia? Sim, mas sempre se perguntando cadê a saída, de alto a baixo, pois, parecido com que disse Althusser uma vez “mesmo no campo das manobras, boa política necessita de boa teoria”.
O melhor modo de dar ideia desta peça infernal da barbárie organizada de hoje, e seu pensamento encontrado no próprio mundo, coisa de chumbo, novas pedradas conceituais concretas, da nova ordem que parece ser a aceleração reprodutiva de velhas estruturas do Brasil e suas taras, mas com novo status de terror e comédia, é deixar que ela fale um pouco por si mesma – como também fez Mário Sérgio Conti em seu escrito sobre ela, Pés-rapados e super-homens, Roberto Schwarz põe em cena a miséria que dá dinheiro. Por agora, deixo o coração do múltiplo e do uno da história social da peça e da farsa do Brasil, a chanchada de 2016, 2018 e 2021, uma tensão que a atravessa por inteiro reaparecendo inúmeras vezes, como no caleidoscópio. A fragmentação das vozes, moduladas pelo fantasma, esmaecido ou real, de uma virtual, possível ou perdida consciência de classes no Brasil:
No vale entupidíssimo, a multidão marca passo levantando faixas: – A VACA FOI PRO BREJO – O QUE ESTAMOS ESPERANDO? – ESTA SOCIEDADE NÃO FUNCIONA – ANTES QUE SEJA TARDE – POR UM MUNDO FRATERNO – ABAIXO A DESIGULADADE.
(…)
UMA FIGURA RECÉM-CHEGADA
Calma o cu da mãe. Não sou seu companheiro, nem o Brazul é seu. Lugar de comunista é na cadeia.
A VOZ
Seu ignorante, a vitória será dos trabalhadores. Basta fazer as contas. Somos incontáveis e nossos adversários e nossos adversários, um mero punhado. Como poucas vezes, a razão e a força física estão de mãos dadas nesse vale e vão prevalecer. Nossa causa é justa e brilha à luz do dia, enquanto a de vocês é esfarrapada e só avança na calada da noite. Não é para menos, pois precisaria muita cara de pau para defender em público a exploração do homem pelo homem. Como diz o ditado: para o capitalismo, o segredo é a alma do negócio. São todos velhacos. Não acredite neles, porque vão te enrolar. Aliás, estou me controlando para não quebrar a cara deste dinheirista que me ofendeu a mãe. Proprietário quando é grosso não tem nada igual. No futuro eles serão estudados como a escumalha do gênero humano.
O RECÉM-CHEGADO
Tudo isto que os explorados alegam parece cristão e justo, mas foi desmentido pelos fatos. Dá pena discutir com gente tão desatualizada. Vocês não estão sabendo da vitória sem volta do capitalismo sobre o socialismo? Está nos livros de história e nos jornais. Leiam a respeito antes de reivindicarem disparates. Por que esta insistência no impossível?
OUTRO RECÉM-CHEGADO
Quer levar mais trancos? O nosso argumento não te convenceu? Hein? Hein? (Mostra um porrete e dá mais um encontrão). Somos a minoria, mas vocês não nos enxotam porque precisam de emprego, sem o qual são zero. E quem emprega somos nós. Ou será que vocês tem dinheiro para empregar alguém? Eles sabem que nasceram inferiores. Mal comparando, uma espécie de aleijão descerebrado: troncos e membros para trabalhar, faltando a massa cinzenta, que é nossa. Uma raça de complexados.
UM TRABALHADOR
De fato, o medo que nos meteram do socialismo calou fundo. Ficamos marcados a ferro. Não sei nem explicar o que se passa na nossa pobre cabeça. Se nós mesmos nos empregássemos, não vão me dizer que não seria melhor. Quando repetimos como papagaios que a justiça social é um perigo, que traz desemprego, desolação. Estado policial e outrso desastres, me pergunto quem é o imbecil que está com a palavra. Cala a boca, sô! Não seja covarde! Não seja puxa-saco! A voz é nossa, mas a ideia é toda deles. Tanto que, apesar do miserê em que vivemos, não esmurramos a parede nem exigimos decência aos berros. Que falta de reação! Nessa toada, nunca que provaremos do bom e do melhor.
O RECÉM-CHEGADO
Não fuja do assunto. Os trabalhadores sabem perfeitamente que o ser humano não presta, eles inclusive, e que o socialismo é bom demais para o nosso bico. Quando arriscaram o bote na Rússia, foi um descalabro e a humanidade ficou vacinada para sempre. Digam o que disserem, o capitalismo é o sistema certo para uma espécie amaldiçoada pelo pecado original, incapaz de melhorar.
O TRABALHADOR
Blá-blá-blá. Não culpe a espécie pela injustiça que vocês praticam. Mas é verdade que por momentos nos apavoramos, eu sinto os meus ossos chacoalharem, diante do futuro radioso que nos desafia.
OUTRO TRABALHADOR
Com a morte na alma, como quem renuncia a sua razões de viver, outro dia me ouvi dizendo a nossos adversários que tudo bem, que aprendemos com a história e que já não queremos a expropriação dos expropriadores – a beleza dessa fórmula me leva às lágrimas –, nem a socialização dos meios de produção. Tudo para não parecer anacrônico, não cair de fome no meio da calçada, não levar choque elétrico… Fiquem – dizia eu, num discurso que fez história – fiquem com as suas casas de muitos cômodos, contas secretas na Suíça, industrias e latifúndios, seus apartamentos em Miami, investimentos off shore e jatinhos, além dos vereadores, deputados, senadores e governadores comprados com dinheiro vivo. Entre parênteses, vocês nem sequer tem peito de assinar embaixo as leis indecentes que essa cambada aprova em seu favor. Fiquem pois, por obséquio, com a direção e os proveitos da sociedade na qual quem rala somos nós. Desde que o desemprego não passe da conta e o salário dê para não morrer, consentimos que sigam sendo os nossos patrões, melhor dizendo, a nossa consciência. Mas vejam lá, que a confiança é um barbante que se gasta. E tenham ao menos a bondade de reconhecer o nosso comedimento. Assim, o que trouxe aqui centenas de milhares de inconsequentes, pendente da palavra dos bananas lá do alto do viaduto, não foi a liquidação do capitalismo. Longe disso. Este edifício bichado, em cujos cubículos fedorentos vamos levando a vida, ficará de pé. Neste dia D, em que a terra pode tremer, o maior palanque de nossa história proclama que a quantidade de otários é colossal. Enfim, já esperamos muito. Na verdade, o que nos tirou do sério e causou esta enchente foi uma coisinha de nada, que dá até vergonha confessar, um acinte que não aceitaremos em caso algum e de cujo nome, aliás, já não lembramos. Tudo tem limites. Pena que o paiol esteja molhado. Uma coisa é o estopim, outra a explosão. E depois dizem que a luta de classe não existe.
OUTRA RECÉM-CHEGADA
A indefinição dos deserdados me provoca náusea. Uma hora são trabalhadores em pé de guerra, outra, coitadinhos espezinhados. Haja estômago para o sobe e desce. Por que não jogam dentro da regra? Precisa carimbar, dar golpe baixo, cavar falta, comprar o juiz? Quem avisa amiga é. Se o zé-povinho acaso pensa em recauchutar essa joça, que dá mais dissabores do que lucro, e nos desonra aos olhos do mundo, saibam todos que a maionese vai desandar. O barco afundará com todo mundo dentro (menos nós). Como diz o meu marido, que é um megacafajeste, além de primeiro-ministro, nós vamos sacanear ao máximo o projeto dos ressentidos, sabotar quanto pudermos, jogar pregos na engrenagem, só para encher o saco, na verdade para explodir o avião (e dessa vez nós vamos juntos). Para quem não entendeu, somos proprietários antes que brazuleiros. Ponto. Antes o suicídio que uma sociedade decente.
UM ESTUDANTE
É isso aí. O capital não tem juízo nem pátria.
OUTRA VOZ
Francamente, não sei o que concluir. Aqui não tem culpado? O estrago foi grande demais para acabar tudo em pizza. O capitalismo, como é do conhecimento geral, é um inferno cujas contas não fecham. Os explorados, por sua vez, não souberam derrubar a mesa. Vão me dizer que a culpa não é de ninguém? Os opressores até que estão no papel deles. Nós é que falhamos.
A RECÉM-CHEGADA
Autocrítica fora de hora não limpa a barra de ninguém. Se você quer um mundo menos ruim é que é comunista e não pode andar solto por aí. Bota a muié no camburão! O Brazul não será vermelho! As ruas voltarão a ser verde-amarelas!
A VOZ
O vermelho, que dá coceira ali na dondoca, é a cor da igualdade. Se depender de mim, nossa bandeira não será só verde, amarela e azul, conforme a tradição, mas também vermelha – sim senhora, ver-me-lha –, em quatro faixas horizontais. Ficaria bem bonita. Um pouco brega, mas representativa. Verde para a mata que eles estão derrubando, amarela para os garimpos ilegais, condenados universalmente, azul para o nosso céu esfumaçado, e vermelha para a igualdade que não temos. Que tal? Hasteando ao vento forte da pátria, contra a pasmaceira, um convite à polêmica. – Vamos guardar a civilidade, minha senhora. Não estamos aqui para matar ou morrer, e muito menos para barrar palavrões. É conversando que a gente se entende.
A RECÉM-CHEGADA
Sem frescuras democráticas na hora H. Você está vendo aquele caveirão? Tem trinta milicos dentro, cada um com seu cachorro rosnando. Suma daqui porque vai ser um filme de terror. De agora em diante a cor vermelha fica proibida. Quem tiver cara de pobre é melhor não andar em grupo. Mais que três é ajuntamento subversivo e será tratado de acordo.
OUTRA VOZ
Xii, isto vai mal. Querem nos tomar a praça e o direito à reclamação. Ninguém se iluda, eles trabalham pela castração política da classe trabalhadora. Hum hum. Senhoras e senhores da plutocracia, acionistas majoritários das grandes corporações do planeta, cujos arranha-céus pós-modernos, de gosto horroroso, agridem a tradição cívica deste vale, saibam que a cidade pertence a todos, a todos menos vocês, que moram aqui – quando moram –, mas é como se fossem marcianos. A céu aberto e cara a cra, a turba revolucionária lança a vossas fuças a sua amargura pela bosta de existência que os donos do mundo nos oferecem. Escorraçados do coração da cidade, por cangaceiros com mais ordenados que um professor universitário, o que nos restará fazer? Que adianta pregar a convertidos, repetir a nossa queixa nas periferias desoladas da metrópole, onde o público está careca de saber que fora Deus não tem saída? Vocês querem nos trancar no nós-com-nós, para que torturemos nossos tímpanos com a nossa própria choradeira, agravando a triste gastrite dos vencidos. Pois não vamos aceitar. Nos faremos ouvir aqui, alto e bom som, no centro nervoso das decisões, ainda que vocês estejam no Guarujá e nem tomem conhecimento (mas mandem os seu detetives filmar tudo, para depois nos perseguirem). Custe o que custar, nós vamos dialogar de igual para igual com o antagonista que a sina, ou melhor, o capital, nos impôs. “A praça é do povo, como o céu é do condor”, recitava Castro Alves cento e cinquenta anos atrás. A indignação romântica não perdeu a atualidade.
A RECÉM-CHEGADA
Esta luta, felizmente, é desigual. Como sempre, a justiça vai tardar e falhar. A plebe quer ser incluída na civilização e pede o nosso consentimento. Fazem cara feia, falam no direito deles, batem o pé, mas contam conosco. Só uns poucos pedem o nosso extermínio. No geral, esperam que nalguma altura, pressionados por um sentimento elementar da humanidade, ou pela necessidade de ampliar o mercado consumidor, nós destranquemos a porteira. Nós, pelo contrário, queremos que continuem excluídos, ganhando nada e vivendo à nossa disposição como animais. Uma parte deles se revolta e vira bandido, o que nos assusta, mas preocupa menos do que a promoção deles à cidadania – esta sim uma visão medonha, o declínio do Ocidente. Alguém já pensou no que seria tratar, ou melhor, ser obrigado a tratar com igualdade uma empregada doméstica? Ainda mais se for escura. Ou, pior ainda, viver sem empregada doméstica nenhuma? E como desgraça pouca é bobagem, vamos imaginar logo o apocalipse. E se a montanha-russa do mercado, com seu descaso pela cor e qualidade das pessoas, fizesse de nós, no curto espaço de menos de uma geração, os empregados de nossos empregados? E se estes nos dessem o troco pelas injustiças que praticamos com eles? Minhas queridas e meus queridos, revolução é isso, não tenham dúvida. No que depender de mim, esta porteira não será destrancada. Deus nos livre.
UMA ESTUDANTE
Vocês viram a podridão que ela tem na cabeça? Por fora nem se nota, até parece uma mulher normal… Esta não é a passeata dos meus sonhos. Não foi para ouvir baixarias que saí de casa no dia mais esperançoso de nossas vidas. De punho erguido, lado a lado com milhares de pessoas de bem, marchando por um mundo melhor, contávamos pesar no prato justo da balança, para felicidade e progresso gerais. Com firmeza e alegria, dizíamos não ao reinado da cafajestagem, que não para de se agravar. Já sei que vão me chamar de ingênua, pois o que nos oprime não é um cafajeste, mas o capital. Para mim, se tirarmos o cafajeste está bom demais.
OUTRA
O vagalhão popular – assim pensávamos nós – cresceria magnificamente, levando de arrastão o entulho de séculos de obscurantismo, para depois se espalhar na praia pacífica e democrática da vida renovada. Tudo sem encontrar resistência digna de nota e até com o aplauso de nossos patrões, a quem no fundo admiramos e de cuja regeneração muito esperamos. Impressionados por nossa capacidade política, administrativa e estética, sem falar da visão esclarecida de país e do futuro, eles saberiam saudar em nós o sol nascente. Nossos anos de aprendizado não foram em vão.
OUTRA
Pois bem, não foi o que ocorreu. Faltando pouco para o momento decisivo, marcado talvez para o fim da tarde, topamos com uma horda de sinhazinhas e sinhozinhos babando rancor, dispostos a tudo e escorados por batalhões armados que seria loucura desconhecer. Uivando insultos e palavrões cabeludos, a nossa elite avançou para nós, não quiseram saber. Não fosse a tropa que nos apartou, a guerra civil começava ali mesmo. Relembrando melhor, tem um detalhe importante. As armas dos pacificadores apontavam para nós, e não para o céu, como deviam, nem muito mesmo para o lumpesinato que nos desafiava. Valentões com costas quentes, pfff.
UMA SINHAZINHA
OS trabalhadores borraram as calças, o resto é desconversa.
OUTRA SINHAZINHA
Transtornada de alegria, irmanada aos jagunços, num transporte patriótico inédito para mim, eu e os meus xingávamos os pobres do Brazul, que recuavam horrorizados diante do coral inesquecível. Chega de complexo de culpa! Chega de hipocrisia! Eles quiseram tomar conta da cidade, mas ela não é deles, É só olhar os títulos de propriedade. O povo brazuleiro somos nós! Eles estão aqui a serviço! Fora do horário de trabalho, não passam de invasores! Venceu a força do nosso grito, finalmente reencontrada.
UMA ESTUDANTE
De farto os proprietários tem uma determinação fanática na luta de classe que nos falta. Devia ser o contrário, mas não é. Vocês viram a facilidade com que nos dispersaram? É duro dizer – afinal de contas somos compatriotas –, mas precisando eles mandam matar, e nós não queremos morrer. Olhem só como esse mauricinho me enxota, como se eu fosse um inseto. Vai brigar com alguém do seu tamanho, cara! Um pouco de respeito! Enfim, eles defendem o osso que não vão dividir. Ao passo que a massa briga por um vaguíssimo Brazul menos desgraçado, com lugar para todos – uma coisa complicada, hipotética, difícil de conseguir, em que ninguém acredita muito. Já o osso é aqui e agora, um troço indiscutível.
OUTRA
Vá lá que seja. Mas só para sonhar um pouco, ou melhor, para efeitos de raciocínio, suponhamos que um de nós resistisse e não se deixasse empurrar. Ficaria falando sozinho? Acabávamos todos num campo de concentração? Somos muitos, mas eles são mais fortes.
OUTRA
Não são mais fortes. O Estado é que está do lado deles.
OUTRA
Mas o Estado é deles? Pensei que fosse de todos, ou, pelo menos, de ninguém.
(…)
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