Privado: A linguagem como enterro
De fato, talvez tudo tenha começado diante de um corpo morto. Há de se imaginar este momento: pela primeira vez, alguém não era indiferente diante de um corpo morto. Uma indiferença que, no entanto, era de outra ordem do que a simples tristeza. Diante do corpo inerte de quem até então era objeto de afeto, alguém quis, pela primeira vez, lutar contra o tempo e seu cortejo de perdas. Aparecia assim uma tristeza que, pela primeira vez, portava algo mais do que tristeza. Ela portava a afirmação soberana da memória.
Negar a perda através da memória: não bastava que isto fosse uma operação defensiva. Ela deveria ser a realização de um destino. Pois defender-se da perda através da memória é como permanecer sempre no mesmo lugar, permanecer lá, no descampado diante do corpo morto. Mas afirmar que a memória realiza um destino é algo totalmente diferente. É como afirmar que as pessoas existem para habitar a memória de outros, para fazer dos outros o palco de uma existência que não é apenas a presença de um indivíduo, mas o emaranhado bizarro de vários outros. Um pouco como o conselho que a jovem Eugénie recebe em A filosofia na alcova, de Sade: “Se você quiser ser imortal, transe com o maior número possível de pessoas, pois estes nunca te esquecerão”. Há de se admirar da ironia de um libertino que, no fundo, quer realizar o desejo religioso de redenção da carne, mas através da carne. Ironia de um libertino que, no fundo, quer transfigurar o ato de fazer sexo em maneira de se entregar à memória do outro. Há de se agradecer a Sade por
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