Ler é agir: sobre ‘Íntimo desabrigo’, de Tarso de Melo
O projeto 'The Taksim Square Book Club' reuniu pessoas no centro de Istambul em 2013 para ler em silêncio como protesto contra violência na cidade (George Henton/Al Jazeera)
Em agosto, um evento em comemoração ao aniversário de Donizete Galvão (1955-2014) arrastou-me mais uma vez a São Paulo. Admiro São Paulo por sua força esmagadora, os exércitos de trabalhadores que saem dos metrôs e sufocam a cidade. Admiro São Paulo na condição de meteco. Lá sempre tive a acolhida de Donizete e Ana. Voltava para a cidade na certeza de que seria diferente. No evento, alguns velhos amigos de sempre: Ruy Proença, Paulo Ferraz, Leusa Araújo, Machadinho… Sou péssimo nesses encontros. Donizete tinha paciência para comigo e eu sei o quanto sou irritante na minha insegurança… Estava na Paulista, e ainda sentia o cheiro pútrido da Baía da Guanabara. Acabei lendo dois poemas de Doni e um meu dedicado a ele; terminei a noite jantando com amigos, recebi de Tarso de Melo a bela edição de seu Íntimo desabrigo (2017, Dobradura Editorial e Alpharrabio Edições). Gosto de ouvir os escritores defendendo suas ideias… gosto de ouvir suas lamúrias, não muito diferentes das minhas. Tarso defendia que é imperativo para o escritor o exercício da virtude. Esse encontro já faz um mês, não me lembro de todas as suas palavras, mas não deixa de ser objeto a questão: há um ethos em jogo na atividade literária e artística? Que consequências esperar? Íntimo desabrigo é exercício dessa tese. Tarso está todo lá, ou, como ele escreve: os poemas ali “reunidos foram publicados anteriormente” não só em revistas, mas “no celular, ou no computador, diretamente na caixinha de status do facebook, na rua, na estrada, no meio do redemoinho, no lugar e na hora em que foi possível nascer”. Esse encontro a cotoveladas com a cidade ocupa a tradição poética desde Baudelaire, e isso sem passar pelo século 20. Existe uma linha direta da poética de Tarso de Melo com certas questões do modernismo. Gesta ansiedades antigas. Um Drummond que em “Elegia 1938” convida a dinamitar a Ilha de Manhatan; porém mais ainda o Bandeira de “Elegia de Agosto” em Estrela da tarde, em que o poeta denuncia a covardia de uma renúncia que resultaria em menos de quatro anos numa ditadura. A conclusão de “Elegia de Agosto” (“e que se danem os pobres e humildes que é tão difícil ajudar”) ecoa em versos escritos no século seguinte sobre o mesmo país famigerado. Cotejando o livro de Tarso e o de Bandeira com os livros de poesia escritos durante a ditadura civil-militar brasileira, há uma diferença: os livros de Bandeira e de Tarso são mais explícitos em suas críticas que os escritos após 1968, de sabor mais voltado às entrelinhas, ao subliminar. Os primeiros não temem citar nomes (Bandeira está falando de Jânio Quadros, Tarso, de Michel Temer, das empresas Bayer e Monsanto como em “Um país a temer” e “História da humanidade (com spoiler)”); nos dois ainda existe a crença de que desavenças são solucionáveis amigável ou juridicamente e não em porões.
Outrossim, quem só denuncia uma situação e não se atem aos detalhes não faz algo menor comparado a quem acusa nominalmente: nas autocracias mesmo a reclamação mais geral se paga com a vida; qualquer ação é prova de coragem inaudita. Mas talvez eu só esteja me iludindo, vivendo como Bandeira os últimos estertores de um mundo prestes a ruir: Estrela da tarde fora publicado em 1960, quatro anos antes do golpe em abril de 1964; Íntimo desabrigo talvez preveja como no poema de Bandeira o mesmo destino ruim. Nesse mérito, Tarso de Melo não teme ser datado, inscreve-se como ruga de uma época. Quando o real supera a fantasia dos piores pesadelos, a primeira reação será gritar, a segunda grunhir… Eis o caminho natural do espírito, que se move coletivamente em nós, e se o Bandeira de 1960 ecoa no Tarso de 2017, não custa perguntar sobre aqueles que lamentarão em poesia na ditadura que está por vir, como esse poema, escrito nos idos de 1970, por Chacal:
tem gente morrendo de medo
tem gente morrendo de esquistossomose
tem gente morrendo de hepatite meningite sifilite
tem gente morrendo de fome
tem gente morrendo de muitas causas
nós, que não somos médicos, psiquiatrias
nem ao menos bons cidadãos
nos dedicamos a salvar pessoas
que, como nós,
sofrem de um mal misterioso:
o sufoco.
Existem a meu ver dois movimentos: 1º, a sensação de que se está historicamente dando outra volta no parafuso, como que a repetir os mesmos erros. O poema “Panta rei”, destacado na contracapa de Íntimo desabrigo, sugere: o tempo, mais que linear, é espiral em nossas revoltas, que, mais do que revoltas, são reviravoltas “dentro do mais dentro de si”; por outro lado, 2º, entende-se que, aquém da metafísica do eterno retorno, é o presente que conta, os nomes dos inimigos. A efemeridade é a sua tônica. Tome o poema “As mortes de Óscar”. Em “As mortes de Óscar”, e que dialoga, pelo menos no título, com o livro A carne e o tempo (1999) de Donizete Galvão, e mesmo com Matéria e memória, de Henri Bergson (1859-1941), está em jogo um corpo que resiste à morte na medida em que conserva como memória a morte do alheio:
104, quase 105 anos levando consigo seus mortos
104, quase 105 anos guardando a morte para depois
104, quase 105 anos cedendo a vez à morte alheia
Ruminar as dores é o começo de um compromisso. Uma novidade do livro está no tratamento dispensado pelo autor para com o público. Explico: além do poema “Toda sentença é um antipoema”, nas palavras de Carolina Serra Azul e Renan Neuerberger, “cuja dimensão de ready made – trata-se da transcrição literal da sentença condenatória de Rafael Braga – é tensionada pela exposição sombria do funcionamento da justiça”, o autor acrescenta a cada exemplar um panfleto informando a conta corrente em que o leitor pode – e eu diria, sem constrangimento, deve – depositar ajudando na sua defesa. Um passo maior que o de Renato Russo (1960-1996) em The Stonewall Celebration Concert onde adiciona no encarte o telefone e o endereço de vinte e nove entidades sociais tais como o Grupo Gay da Bahia, o Greenpeace e a Sociedade Viva Cazuza. Outrossim, Tarso de Melo organizou em 2016 o romance The 42nd St. Band de Renato Russo pela Companhia das Letras e que eu vejo na decisão em reproduzir a sentença uma bela influência do compositor sobre o papel político da arte. Mas, ainda que a influência de Renato Russo sobre Tarso seja decisiva, o poeta, comparado ao músico carioca, é mais radical: não cede o espaço literário para a divulgação de organizações, não faz um convite, mas um apelo. O poeta acrescenta no panfleto que “qualquer ajuda para ela (em questão, a mãe de Rafael, Adriana de Oliveira Braga) não é um ato como tantos outros”; o apelo não é sutil, como são as mensagens do Vaticano e das candidatas a miss universo por justiça e paz; mas objetivo, confere rosto ao acusado, mostra que ela possui nome e sobrenome. O que Tarso oferece com isso é inusitado: não apenas denuncia a situação como injusta, não apenas personifica, deixando claro se tratar de Rafael Braga, mas, divulgando os dados bancários que ajudarão a sua família, Tarso convoca o leitor para além da leitura; faz da leitura uma ação.
Ler é agir, tem um sentido político, ingressa o leitor aos móbeis e motivos subjacentes à própria escritura. Esse é um dos méritos do livro, o que já foi realizado em outras artes, mas raramente na poesia, marcada pelo medo de os textos de conotação social caírem no panfletário. Os poemas que se espalham no livro (como “Dizem”, “Banco” e “Beliche”) são a meu ver preparativo para “Toda sentença é um antipoema”, que insurge como um mandamento, junto ao prospecto acompanhado a cada exemplar. Tarso quer do leitor a ação; seria cômodo se creditasse a cada número uma percentagem para a campanha pela libertação de Rafael, o que o poeta não faz. Não quer que o leitor se sinta participando indiretamente de uma campanha; mas que faça por si. Poesia engajada, ainda que o termo ‘engajamento’ soe menor comparado à proposta do livro. Isto porque Íntimo desabrigo é um diálogo diferenciado com o leitor. No que tange ao engajamento, Jean-Paul Sartre afirmava que, engajando a si mesmo, engaja-se a humanidade inteira. A poesia de Tarso é, na linha de tantos outros, Brecht por exemplo, engajada; mas cabe acrescentar: exigir do leitor uma postura sobre o que se lê é uma intervenção parecida com a de Nelson Leirner que, após ter sua obra aprovada para a exposição, literalmente um porco empalhado, encaminha, para a banca que a aprovara, uma carta pedindo esclarecimentos sobre os motivos da aprovação; mutatis mutandis, ao leitor politizado de Tarso de Melo, o poeta questiona a sua posição. O quanto a ars poética afeta e modifica? O sentido do apelo talvez seja esse… já se falou que o apelo se dirige ao ser, que é a voz da consciência que nos fustiga, já o compararam a um imperativo que age em nós como uma bússola, mas talvez só seja um instinto que se soma aos nossos outros instintos, estranhamente. Há de se tomar cuidado com suas marcações vorazes, porque por trás das ações humanas sempre existe um escorpião à solta. Tarso não convida o leitor, não sugere nada; exige. A alteridade que o leitor representa será agora contrabalançada pela presença de um terceiro, personificado na figura de Rafael Braga. Dessa triangulação nasce a justiça. Emmanuel Lévinas (1906-1995) chama a atenção em sua obra para a noção de justiça como resultado dessa estrutura; o sujeito superaria o egocentrismo natural na presença de outrem; este será descrito pelo filósofo como um rosto (visage) que nos obsedia e que só se rompe com a entrada do terceiro.
O terceiro colocaria então o segundo prato na balança, o sujeito agora mede as situações; do contrário, as ações do eu recairiam eternamente a favor da alteridade de outrem; novamente, mutatis mutandis, ao autor, considera-se o papel do sujeito, ao leitor, a alteridade que espreita, ao injustiçado, o outro do outro que já constitui o leitor. Um homem privado até do direito de ler e que convoca uma sociabilidade mais ampla. A chave está em politizar a arte, moralizá-la (no sentido de nela se valer um imperativo); o que não significa que se esteja diminuindo o campo estético; mas justo o contrário: reproduzindo na íntegra a sentença condenatória de Rafael, julga-se a tribuna, a justiça brasileira agora é a ré. O poeta será o promotor, o antigo acusado, sua testemunha, e o leitor, júri. Este julgará se a justiça é culpada ou inocente, se ela, enfim, para começar, tem agido com imparcialidade e isenção. Essa apropriação não poderia ser mais artística e teatral. Como na catarse, encenam no poema aqueles que gostaríamos de ver condenados: homens que deveriam ser imparciais, mas que não são; homens que se colocam acima da lei, ferindo assim o princípio da isonomia; homens que, por preconceito, por conivência, por preguiça, abriram mão da verdade. Outro poema escrito nos anos de chumbo e que possui parentesco com “Toda sentença é um antipoema” é o clássico “A flor da pele”, de Armando Freitas Filho, publicado inicialmente como um tabloide, com fotos de Roberto Maia, depois editado no livro À mão livre de 1979. Freitas Filho se apropria do verbete “Pele” de Aurélio Buarque de Hollanda (1910-1989) (re)construindo três visões testamentárias do verbete: nelas, o sofrimento alheio é arrancado como que a fórceps. Por sua vez, a reprodução sumária da sentença em Íntimo desabrigo expõe o terror, sem necessidade de intervenção sobre o texto original. É o que acontece no poema de Armando: enquanto no verbete original “Pele”, Hollanda escreve sobre o termo “Cair na pele de. Bras. Pop. Zombar ou escarnecer de; gozar”, Freitas Filho acrescenta, “Cair na pele de, com o cassetete em punho, e espancar até a morte. Bras. Pop. Zombar ou escarnecer de você algemado no pau-de-arara; gozar!”. O linguajar da sentença contra Rafael eterniza a condenação com o tom típico da psiquiatria forense (“a sua personalidade é voltada para a criminalidade”). São esses os pontos que gostaria de frisar do livro; pontos que às vezes o livro só suscita, como panaceia do livro para além do livro: percepção de uma época em que é necessário se posicionar; em que é possível comparar, como vimos no poema de Bandeira, o antes e o depois da democracia, e no de Tarso de Melo, o seu depois e o antes. O livro é prática de um horizonte impossível, apelo e “Oração”, título de um de seus poemas mais bonitos. São essas, enfim, as marcas da sua obra: um leitor finalmente deslocado da vida cômoda, o resgate da fúria e do anonimato, essa secreção misteriosa e pungente.
André Luiz Pinto da Rocha é poeta, filósofo e professor. Autor, dentre outros, de Flor à margem (1999), Ao léu (2007), Terno Novo (2012) e Nós, os dinossauros (2017).