Leonardo Tonus: poesia e(m) trânsito
O professor da Universidade de Sorbonne e idealizador da Primavera Literária em Paris Leonardo Tonus (Foto: Divulgação)
As credenciais de Leonardo Tonus impressionam: Maître de Conférences na Sorbonne Université (França), condecorado naquele país como “Chevalier des Palmes Académiques” pelo Ministério de Educação (2014) e “Chevalier des Arts et des Lettres” pelo Ministério da Cultura (2015), é também membro do conselho editorial e do comitê de redação de algumas das principais revistas de pesquisa internacionais.
Uma carreira acadêmica brilhante, que, no entanto, está longe de acomodar esse professor nascido em São Paulo e criado em São Bernardo do Campo, que mudou para a Europa há três décadas para trabalhar e estudar. Não demorou para que Tonus deixasse suas marcas dentro das salas de aula e, para além delas, se tornasse uma espécie de embaixador da literatura brasileira na ponte que ele mesmo construiu e tem aperfeiçoado entre o Brasil e a França, com ramificações para outros países.
Sua trajetória pessoal, como se pode ler na entrevista a seguir, concedida por email para a Cult, é repleta de trânsitos, não apenas geográficos, que marcam sua reflexão sobre a literatura, a sociedade, a história. Nos seus poemas, face recentemente revelada por Tonus, não é menos impactante a presença – ou seria melhor dizer “a errância”? – dos países, das línguas, das culturas em que mergulha. E flui.
Entre suas diversas publicações, que abrangem pesquisas sobre imigração, teoria literária, literatura comparada e literatura brasileira contemporânea, destacam-se a organização dos Ensaios reunidos de Samuel Rawet (Civilização Brasileira, 2008) e os livros Olhar Paris (2016) e Escrever Berlim (2017), ambos pela Editora Nós, de São Paulo. Pela mesma editora, Tonus lançou nos últimos anos dois livros de poesia: Agora vai ser assim, em 2018, e o recente Inquietações em tempos de insônia.
Cult – Leonardo, gostaria de começar falando sobre a sua trajetória: entre o Brasil e a França, entre a música e a literatura e, nela, entre a literatura francesa e a brasileira. Como você entende a contribuição desses deslocamentos na sua visão tanto da literatura quanto do nosso país?
Leonardo Tonus – É curioso notar como o mundo ocidental se pensa frequentemente a partir de deslocamentos elaborados por rotas, trajetórias e itinerários balizados. Parafraseando Celina, protagonista do romance Rakushisha de Adriana Lisboa (2007), pergunto-me se, pelo contrário, a vida não se faria de acasos, de movimentos tangenciais e de deslocamentos periféricos que, nos conduzindo a lugar algum, viriam sobretudo afirmar o gesto do caminhar. Como evoca a personagem deste romance: “a vida é o caminho e nunca o ponto fixo”. É pelo mesmo viés desta impermanência que penso a aleatoriedade de meu percurso pessoal e profissional: de São Bernardo do Campo a Paris; de Leipzig (onde residi nos anos 1990) à Sorbonne; da música à literatura francesa; das sagas nórdicas (que devoro todas as noites) à minha pesquisa sobre refugiados, à minha escrita poética e acadêmica, ambas também migrantes. Já há algum tempo deixei de buscar um sentido em meu percurso pessoal e profissional, que, como tantos outros, nada tem de excepcional. Sem aderir às eufóricas teorias das “desterritorializações cosmopolitas”, gosto de imaginar-me randomizando os espaços geográficos, sociais, acadêmicos e artísticos que caracterizam minha situacionalidade precária no mundo: a “(des)presença” que me define como resultado do acúmulo de uma existência “(des)finitiva”. Como sugiro em um dos poemas de minhas Inquietações em tempos de insônia, conservo unicamente os resíduos dos espaços percorridos: imperceptíveis vestígios de trajetos que redefinem meu caminhar claudicante e incerto. Em suma, se minha formação em patologia clínica me proporcionou um rigor científico, a música e a literatura asseguram o meu respirar no mundo.
Quanto à experiência da expatriação, ela foi (e continua a ser) o ponto nodal de meu percurso. Trouxe-me o distanciamento crítico e necessário que me permite atuar como pesquisador, professor, escritor e cidadão. Sem distanciamento crítico não há reflexão, como também não há humanidade possível. Sem ele somos guiados pela irracionalidade das convulsões, tornando-nos uma massa disforme fadada à autodestruição.
Você é não apenas um estudioso da relação entre literatura e imigração, mas também um escritor e um imigrante. O que mudou nessa relação e na sua própria condição de expatriado desde os anos 1990, quando você passou a viver na França?
Mais uma vez sublinho a porosidade de minha experiência pessoal e profissional. Sou descendente de imigrantes italianos e portugueses instalados no Brasil no início do século 20. Anos depois decidi fazer o caminho inverso de meus avós vindo a me instalar na Europa onde resido há 30 anos. Há quase 20 anos pesquiso a presença e a representação do (i)migrante na produção literária brasileira. Ora, se o imigrante é uma das figuras centrais de nossa literatura e de nossa produção artística, sua capacidade em se moldar às transformações socioeconômicas e culturais do país é problemática. Esta grande plasticidade aponta para uma abstração que tende a transformar a figura do imigrante em simples categoria de pensamento, expressando algo fora de sua existência. Já nos finais do século 19 e início do século 20, diante do fracasso da política colonial e escravocrata, o imigrante fora utilizado como clave interpretativa de um Brasil que se pensava racialmente homogêneo. A leitura evolucionista do quadro “A redenção de Cam” de Modesto Brocos realizada pelo cientista João Baptista de Lacerda, durante o Congresso Universal das Raças sediado em Londres em 1911, é neste sentido emblemática. Ela congratula a participação ativa do imigrante no processo de embranquecimento da “raça brasileira”. Mas não precisamos ir assim tão longe na linha do tempo para evocarmos a cooptação desta figura literária. Ainda hoje o elemento exógeno migrante é pensado de maneira pragmática em função do seu aporte civilizacional ou não. Tais posturas explicam, em parte, a (in)visibilidade das novas configurações da migrância em nossa produção literária nacional. Elas evidenciam, igualmente, a violência dos discursos oficiais relativos à questão do refúgio.
Há mais de duas décadas vivemos uma das maiores catástrofes humanitárias de todos os tempos. Os dados fornecidos pela ACNUR são assustadores. Mais de 60 millhões de pessoas são hoje forçadas ao desterro O mundo conta hoje com mais de 23 milhões de refugiados, metade dos quais com menos de 18 anos. A cada minuto 20 pessoas tentam fugir da miséria, de guerras ou de catástrofes humanas. Não se passa um dia sem que a imprensa nacional ou internacional anuncie, relate ou comente o desaparecimento de grupos de migrantes pelos mares e oceanos do planeta, o desmantelamento de campos “selvagens” de estrangeiros ou a implementação de novos dispositivos jurídicos de gestão, de controle e de expulsão dessas populações. O Brasil não se isenta desta situação se lembrarmos a trágica situação em que vivem os refugiados econômicos, climáticos ou políticos no país. Retomo então a questão: como a recente produção literária e artística nacional tem pensado o refúgio? Minha atual pesquisa e parte de minha produção literária buscam responder a esta pergunta interrogando-se, nomeadamente sobre a nossa (in)capacidade de considerar o outro.
Além da atividade como professor, pesquisador e tradutor, você tem atuado bastante também na organização de eventos literários internacionais, construindo pontes entre os autores brasileiros e o público francês. O que essa experiência ensinou a você sobre a literatura brasileira?
Em 2015 fui nomeado pelo Centre National du Livre curador do Salon du Livre de Paris que, pela segunda vez, homenageava o Brasil. Para além dos encontros que realizo desde 2003 no âmbito de minhas aulas na Sorbonne, criei em 2014 o festival Printemps Littéraire Brésilien. O projeto se inscreve numa perspectiva pedagógica de promoção e divulgação das culturas e das literaturas lusófonas. Trata-se de um encontro anual idealizado para ampliar a formação de estudantes inscritos nos cursos de português em instituições de ensino no exterior. Fico feliz ao observar que o evento já se consolidou como um importante espaço de discussão literária no exterior, potencializando experiências culturais em torno da língua portuguesa e de nossa cultura.
Estes mais de 15 anos de atividades em torno da promoção da nossa literatura me permitem hoje ter uma visão bastante crítica em relação à chamada política de internacionalização implementada pelo governo brasileiro. No que tange às relações franco-brasileiras, ela tem início nos anos 80 durante o período de transição democrática e de reconfiguração do nosso sistema literário. Ela se intensifica ao longo dos anos 90 graças à implementação de dispositivos de incentivo à tradução e atinge seu ápice durante a década de 2010 com a participação do Brasil em megaeventos culturais (Feira do Livro de Frankfurt, Paris, Götterborg, Europália etc.), mas sem que em nenhum momento tenha se pensado a formação do leitor fora do país.
Com o recuo necessário, podemos nos questionar hoje acerca da finalidade de tais projetos, cujo impacto no ensino de nossa língua e cultura no exterior foi quase nulo. Leitores de livros, tradutores e pesquisadores não se formam em feiras de negócios. Eles estão nas salas de aula, nomeadamente na universidade em que leciono há quase 20 anos e que este ano festeja o centenário do ensino do português. Ao longo dessas três décadas de “política de internacionalização da literatura” muito pouco se realizou neste sentido e, se o Brasil ainda é hoje um país com uma forte imagem no exterior, ele também o é no que diz respeito à sua incapacidade de se pensar a longo prazo e enquanto território cultural. Somente uma verdadeira política em matéria de diplomacia cultural poderá romper tal engrenagem.
Sua estreia em livro de poesia é, de certo modo, tardia. Agora vai ser assim saiu em 2018 e, neste ano, Inquietações em tempos de insônia. A que você atribui essa – digamos assim – revelação da poesia na fase madura? Como foi sua relação com a criação poética até aqui?
Mais do que uma revelação tardia, minha estreia na poesia decorre de minhas inquietações em torno do que eu chamo o desgaste da palavra na contemporaneidade. Há anos o exercício da escrita faz parte do meu cotidiano. Até então tratava-se de uma atividade discreta, que, realizada distante do olhar alheio, buscava, como para muitas outras pessoas, dar sentido a uma certa incompreensão diante do mundo. Nos últimos anos, esta atividade intensificou-se, bem como o meu espanto com a história, com as catástrofes humanitárias e da emergência de discursos totalitários.
Assim, pouco a pouco as palavras do pesquisador começaram a ser tornar obsoletas, quando não desprovidas de sentido. Lembro-me muito bem da sexta-feira de 13 de novembro de 2015 e do sentimento de paralisia que tomou conta da sociedade francesa após o ataque ao Bataclan. À morte das inúmeras vítimas, dentre as quais três estudantes da universidade em que leciono, seguiram-se diversos apelos à resistência. Um deles provinha do presidente da Sorbonne que pedia que todos professores retomassem as aulas no dia seguinte aos atentados. Pelo ato de resiliência buscava-se na altura não ceder ao pânico nem ao esvaziamento do pensamento crítico que atos violentos como estes provocam. Mas se o trauma é o agente da resiliência, como praticá-la através das palavras? Como praticá-la sem mascarar a dor ou dela retirar sua carga traumática? Do mesmo modo, de que maneira minhas parcas palavras poderiam contribuir para apaziguar uma dor coletiva e individual sem precedentes? Enfim, como posicionar-me perante meus estudantes? Deveria para isso servir-me da postura do pesquisador e do crítico apoiando-me em sólida argumentação teórica ou expressar-me simplesmente enquanto cidadão a partir de minha subjetividade em luto? Tais questões voltaram a tomar corpo no ano passado durante o processo eleitoral e os primeiros meses da atual governança presidencial. Não me lembro de ter vivido tamanha violência em minha vida. Nunca a palavra fora tão maltratada pelo ódio e pelos discursos xenófobos, misóginos, racistas e homofóbicos que visavam o sequestro de nossa subjetividade. Grande parte dos poemas da antologia Inquietações em tempos de insônia trata desta questão e da crise de nossa corporeidade. Trago nestes textos o meu estupor diante da catástrofe social, histórica, ecológica e afetiva que vive atualmente o país.
Por viver na Europa, podemos dizer que você escreve poesia entre duas culturas, entre duas línguas e, mais ainda, entre duas poesias contemporâneas. O quanto de poesia brasileira e de poesia francesa você vê nos seus livros? Qual delas tem, por assim dizer, contaminado mais a sua sensibilidade? A propósito, como tem acompanhado a produção atual dos poetas franceses? E você escreve poemas em francês também?
Ao invés de pensar o quanto de poesia brasileira ou francesa se encontra em meus textos, questiono-me sobre o que de Brasil e de França comporta minha poesia. E não me refiro simplesmente à questão linguística. 90% de minhas jornadas realizam-se em uma língua adquirida dolorosamente nas perdas provocadas pelo processo migratório. Como evoco no poema “Menino-pássaro”: “viver no exílio é viver o exílio das palavras/ na possibilidade de todas, que é nenhuma”. Tenho plena consciência da contaminação do francês em meus textos e, sobretudo, em minha prosódia. Neste sentido, não sinto a necessidade de escrever poemas em francês, uma vez que já o faço mesmo quando me sirvo de minha língua materna. Isto é claramente perceptível em certas escolhas lexicais que realizo, na colocação por vezes arbitrária de minhas vírgulas ou ainda em minhas estruturas fraseológicas. Assim, meu grande desafio hoje repousa na vontade de fazer emergir a respiração de uma língua ocultada durante os quase 30 anos de expatriação. Talvez isto explique a proximidade de minha escrita com o universo musical, bem como o caráter híbrido que se destaca de meus textos. Tal procedimento pode ser, igualmente, observado no diálogo que estabeleço com outras e outros autores. Tenho o péssimo hábito de ler e escrever “com”, praticando um pouco o que o sociólogo francês Michel de Certeau chama de escrita da “braconagem”. Trata-se de uma estratégia de resistência (ou de sobrevivência) que implica atividades ilícitas como a invasão, o transbordamento ou a camuflagem no território do outro. Do ponto de vista estético, esta prática, muito menos harmoniosa e consensual do que a tradicional intertextualidade, apresenta uma dimensão política interessante que, em minha opinião, vem questionar o que está no âmago da prática literária: a hospitalidade.
Leio de maneira compulsiva e desorganizada, o que sempre me dificulta estabelecer listas de autoras e de autores que acompanho. Alguns, no entanto, marcaram-me profundamente nestes últimos meses, como os árabes francófonos Tahar Bekri, Mohammed Dib, Soumya Benkelma e Abdellatif Laâbi, ou ainda os escandinavos Auður Ava Ólafsdóttir, Herbjørg Wassmo e Steinn Steinarr.
Entre os poemas de Agora vai ser assim e de Inquietações em tempos de insônia, me chamou atenção um outro trânsito: no primeiro livro, os poemas se esforçam em levar a palavra para a rua, interferir na esfera pública, tocar o “tempo pobre” por dentro, como parte dele, mas no segundo os poemas parecem tentar voltar para dentro de casa, para o espaço da intimidade, para o convívio afetivo/amoroso, que se mostra invadido sempre pelo que vem da rua. No primeiro, poemas da rua e do dia: intervenção. No segundo, poemas da casa e da noite: reconstrução. Talvez por isso, o primeiro título seja tão assertivo, tão direto e direcionado ao outro, e o segundo remeta ao sofrimento solitário, subjetivo, ainda que não fale apenas em “noites”, mas em “tempos de insônia”. Para você, os livros se completam assim?
Muitas pessoas me questionam sobre as possíveis relações entre meus dois livros, nomeadamente no que diz respeito à presença de um eventual projeto de escrita. Ele existe se pensarmos todos os dois decorrentes de uma urgência que se vale do grito como forma de expressão. Isto explica o tom mais assertivo de Agora vai ser assim, que apela, de fato, para a intervenção na esfera pública. As circunstâncias de redação de Inquietações em tempos de insônia são completamente diferentes. Esta se realiza num contexto de desconfiança e de destruição da palavra que a indústria das fake news e o discurso do ódio implementam. Sem saber necessariamente como agir, recusei-me na altura a assistir impotente à morte da palavra. Inquietações em tempos de insônia surge como uma tentativa de insuflar certo alento a esta palavra já quase moribunda. Neste sentido, houve, de fato, a necessidade de “voltar para dentro de casa” e de redescobrir o espaço do íntimo, do “convívio afetivo/amoroso”. Parafraseando minha colega e poeta Ana Kiffer, busco em Inquietações em tempos de insônia reativar a dimensão política do lírico enquanto possibilidade de intervenção no mundo, no combate ao sequestro da subjetividade; ato que nos priva da liberdade de nos apropriarmos da realidade e de elaborarmos, organizarmos e sistematizarmos o nosso saber.
TARSO DE MELO é escritor e advogado, autor de Rastros (martelo, 2019), entre outros.