Privado: A leitora e o diabo – crônica
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Saiu esta semana no www.vidabreve.com
Ilustração: Rafa Camargo
No avião, a moça lia um livro comprado mais de vinte anos atrás. As páginas coladas com fita adesiva, algumas soltas de vez, outras definitivamente manchadas com tantas marcas de canetas. O homem de paletó e gravata, óculos, barba feitíssima, dois celulares, maletinha na mão, olhou-a com desdém, quem sabe querendo ajudar.
— Você não tem futuro como leitora.
A moça, demorando para desprender a concentração do livro, notou que alguém falava com ela.
— Como é?
— Você tem que comprar um leitor digital.
— Tenho, é? — disse enquanto tentava acordar para o que estava acontecendo.
— Daqui a dez anos você não vai mais poder ler sem eles.
— Mesmo? Vai ser proibido? — ela se esforçava por entender.
— Nada mais será publicado em papel. Você não vai ter livros para comprar.
— Tenho livros em casa suficientes para uma vida inteira. Ou duas. — disse, ainda um tanto desligada, evitando demonstrar que resistia à insistência alheia.
— Eu sou editor de uma grande editora, vai por mim.
— Mas eu gosto de riscar os livros. Assim com caneta. — falava pensando se devia sentir vergonha do seu livro todo desmantelado.
— Olha esse tablet aqui, tem um programa maravilhoso que permite anotar em cores.
— Mas não é fácil voltar páginas atrás, ou ir adiante, falta materialidade. — ela despistava sem sucesso.
— É fácil sim, o nome do programa é a própria coisa: Easyreader.
— E você já leu algum livro nele? — perguntou, supondo que houvesse alguma vantagem real que ela desconhecia.
— Eu leio revistas, jornais. Leio também muitos manuais.
— Mas jornais e revistas não são feitos para você se concentrar. São para distrair. Deve ser mais fácil de ler do que o meu livro que, para mim, já é uma existência inteira de anotações.
— Ora, mas e você aí? O que está lendo? Não vai me dizer que não está lendo para se distrair?
— Eu sou escritora. Vivo de ler e escrever. Cada livro é um mundo novo e se demora para entrar e sair dele.
— Não vem com essa, o mercado está todo voltado para a distração. O que você escreve?
— Literatura.
— Pelo que vejo você também não tem futuro como escritora. Você não deve vender nada.
— É que eu não escrevo para vender. E não gosto muito de distração, sabe? — falou sentindo aquela obrigação de sinceridade que, até então, ela acreditava que mudaria o mundo. De quebra, podia ser que o sujeito parasse de falar.
— Compre um leitor digital e feche essa papelada. Sua vida vai ficar muito melhor, mais leve, mais simples. Garanto que muito melhor!
— Eu gosto do meu peso, sabe? Peso e escuro. Prefiro mesmo, sabe? — falou, assim como quem cai para debaixo do banco rezando para acabar a viagem.
— Vai por mim. Eu conheço o mercado assim como Deus conhece o caminho, a verdade e a vida.
Naquele momento, uma turbulência inacreditável sacudiu o avião. Quando tudo se acalmou, restava um cheiro de enxofre no ar. O homem tinha desaparecido.