Comédia de horror e de costumes

Comédia de horror e de costumes
Cena de Kiev, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)

 

“A origem social do indivíduo (a família) revela-se no final [de A metamorfose, de Kafka] como a força que o aniquila”
Theodor Adorno

Kiev, texto do dramaturgo uruguaio Sergio Blanco, escrito em 2003, exatamente um século depois de Anton Tchekhov ter dado à luz seu O jardim das cerejeiras, com o qual mantém estreita relação temática e formal, é uma coisa. Kiev, espetáculo adaptado da peça original uruguaia por Roberto Alvim, e dirigido também por ele, cuja estreia recente nos palcos paulistanos marca os cem anos da Revolução Russa, é completamente outra. Ambas as experiências, entretanto, embora trilhem caminhos estéticos e políticos paralelos, acabam por se encontrar em uma espécie de angulação proporcionada por um golpe de geometria não-euclidiana, cuja primeira descrição, aliás, foi empreendida por um russo, o matemático Nikolai Ivanovitch Lobachevsky, em 1829.

O texto de Sergio Blanco constitui uma espécie de paródia da última peça de Tchekhov, sobre a qual o médico e dramaturgo afirmou em carta endereçada à atriz Maria Petrovna Alekseieva, datada de 15/9/1903: “Acabou não sendo um drama, mas uma comédia, em alguns momentos até farsa…”. Kiev trata do retorno de uma família burguesa pós-colapso do comunismo à sua casa de campo na Ucrânia, depois de dez anos, para se despedir da propriedade, uma vez que ela foi vendida e está prestes a se tornar um shopping center. Nos três dias em que passam ali, a viúva Eiren, seus dois filhos – Alden e Dafne – e seu irmão, Esvald, procuram reatar os laços com um passado idílico, que esconde a rigor alguns terríveis segredos pessoais projetados em escala nacional, precipitados pela entrada em cena de Tavio, o antigo preceptor do filho caçula de Eiren, Mika, morto precocemente na piscina da propriedade. (Seria preciso investigar com a devida calma a razão dos nomes desses personagens, muito pouco afeitos à língua russa). No plano temático, essa piscina – com sua coloração escura e odor fétido – é a imagem máxima para onde os planos pessoal e nacional convergem. Já em relação à esfera da forma, a peça se apresenta como um ritual de martírio de Alden, o jovem rapaz que, a despeito de, ironicamente, ser o único membro lúcido da família, sofre de uma doença degenerativa e, tal como um santo medieval, é exposto a uma série de pequenas crueldades que tendem a paulatinamente se intensificar e se transformar em sua definitiva imolação pelo silêncio. A intenção paródica com o símbolo do jardim das cerejeiras é por demais evidente: em Tchekhov, ele será destruído para a construção de um condomínio de casas de veraneio; em Sergio Blanco, anuncia-se também sua destruição, para sua posterior substituição por um jardim sintético, que servirá de espaço decorativo ao estacionamento do shopping. As cerejas deveriam se repetir, então, primeiramente como tragédia; depois, como farsa. Entretanto, se elas ao natural já são, por insinuação indireta de Tchekhov, farsa, que registro devem aqui assumir sob a forma sintética? Muito provavelmente o da tragédia (repercutindo a inversão da proposição de Marx no 18 de brumário de Luis Bonaparte, que nosso espírito pós-moderno tende a achar engenhosa), não estivesse o registro trágico, aqui, diluído nos contornos de uma comédia de horror. Que não choca mais ninguém. Por isso, também, uma comédia de costumes que tem por núcleo ficcional a instituição familiar.

Espetáculo Kiev, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)
Cena de ‘Kiev’, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)

Em Diante do extremo, o filósofo, historiador e crítico literário búlgaro Tzvetan Todorov, morto no início deste ano, afirma que os regimes totalitários comunista e nacional-socialista são o acontecimento político europeu maior do século 20: “De durações desiguais (1917-1989 – sejamos otimistas – e 1933-1945), mas de intensidade comparável, esses dois regimes não somente são responsáveis por mais vítimas que qualquer outro na mesma época, mas, além disso, são portadores de um novo conceito de Estado, de suas instituições e mesmo do político enquanto tal. (…) Compreendo aqui por terror a violência sofrida pelo indivíduo por parte do Estado, com vista a eliminar sua vontade como móbil de suas ações. O Estado totalitário persegue finalidades diversas e, além disso cambiantes, mas sempre tem necessidade de colaboração de seus assujeitados. Começa então por forçá-los a agir no sentido que ele deseja, exercendo tanto pressões sociais quanto violências físicas. Acaba por fazer dessa alienação das vontades individuais, buscada por todos os meios possíveis, uma finalidade em si. No totalitarismo, o terror age como princípio do governo, no sentido de Montesquieu: ele é o motor psicológico que se encontra por trás das ações variadas dos sujeitos do regime”. Ora, Kiev investiga a atuação dos membros de uma família como um modelo em miniatura do Estado, o que acaba fazendo com que as ações políticas executadas em âmbito social mais amplo sejam vistas como menos extravagantes e anômalas.

A adaptação do texto original por parte de Roberto Alvim converte o papel do tempo como mecanismo de construção dramatúrgica em pura manifestação de espacialidade. Nas duas horas, em média, que dura a peça de Sergio Blanco, um fundo dramático é habilmente construído para dar sustentação à atmosfera de mistério e de sentidos interditos que vai sendo tecida, embora Kiev visivelmente não se satisfaça em se assemelhar a um drama clássico. Alvim procurar apagar tais contornos, eliminando as falas que tratam de tramas paralelas, a longa discussão em torno da piscina, as menções veladas tanto à colmeia de onde sairá a abelha que irá torturar Alden como à internação de Eiren, as evidências do ódio da mãe por seu filho, os matizes da relação entre Dafne e Tavio e a cena final do preceptor à borda da piscina. Reduzida a sessenta minutos, a fatura dramatúrgica concebida pelo diretor explora uma maquinaria que opera por condensação e deslocamento. Tal como em um sonho, condensam-se muitos dos conteúdos manifestos do texto em símbolos latentes da encenação, de estranha riqueza e intensidade, e deslocam-se alguns elementos importantes, de modo a evidenciar o processo de deformação constitutivo do trabalho da adaptação. Do mesmo modo que transforma a piscina no “Quadrado negro sobre fundo branco” (1915), de Kazimir Malevich, localizado ao fundo da cena, Alvim converte os personagens crepusculares de Sergio Blanco em espectros presos a uma iluminação e cenografia também fantasmáticas – essa última, delimitada à esquerda pelo “Monumento à Terceira Internacional” (1920), de Vladimir Tatlin, e, à direita, pelo busto da estátua de Vladimir Lenin, instalado de cabeça para baixo. Assim, o labirinto de palavras e imagens que aos poucos enreda o espectador no texto original cede lugar, na obra adaptada (talvez soe melhor, recriada) à bricolagem soturna que o toma de assalto desde a primeira cena. O que para Blanco é contiguidade; para Alvim é analogia.

É no ângulo da violência que as paralelas de dramaturgo e encenador se encontram e se friccionam vivamente. Não talvez a violência implícita nas referências cenográficas descritas nas rubricas iniciais do texto (que sugerem, por exemplo, projeções de imagens do suplício de São Sebastião, das ditaduras latino-americanas do século 20 e da publicidade de diversos produtos de consumo doméstico contemporâneos do momento em que se está representando a peça) e relacionada, na encenação, às atrocidades cometidas pelo regime totalitário da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), atrocidades que o diretor vincula também, no texto do programa, a sua contrapartida presente nos efeitos igualmente devastadores do regime capitalista, mais normalmente invisíveis aos olhos da maioria. Tais denúncias de violência são por demais nítidas como temas para que as formas teatrais exploradas por Blanco e Alvim percam tempo em evidenciá-las, sem escapar aos ditames ora da tautologia, ora do proselitismo. É no aspecto formal, então, que a violência de Kiev para ambos os criadores é problematizada.

Espetáculo Kiev, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)Espetáculo Kiev, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)
Cena de ‘Kiev’, de Roberto Alvim (Foto Bob Sousa)

A alusão explícita a O jardim das cerejeiras (o que já chamamos até aqui por duas vezes de paródia poderia também ser definido pelas dinâmicas da intertextualidade ou da hipertextualidade?) apresenta-se entrelaçada à outra correspondência tchekhoviana, As três irmãs, já que a cidade de Kiev na peça de Sergio Blanco guarda boa semelhança com a imagem de Moscou à qual Olga, Mascha e Irina se apegam, símbolo que segundo Peter Szondi representa uma boia de sentido contra o tédio da vida diária e se configura, a rigor, como um grito de desespero. “A renúncia ao presente é a vida na lembrança e na utopia, a renúncia ao encontro é a solidão” afirma o autor de Teoria do drama moderno [1880-1950] a respeito de Tchekhov. Ocorre que em Kiev o movimento dramatúrgico aponta para uma outra tensão que não o da renúncia ao presente e à comunicação que marca a obra do contista e dramaturgo russo. Kiev, é uma cidade morta, talvez pela ocorrência de alguma hecatombe nuclear ou ataque terrorista – o que a faz ser visitada somente por lobos. E por aquela estranha família para quem, afinal, o homem é o lobo do homem. (“O homem é um lobo para um homem, não um homem, quando não se sabe quem ele é”, afirma Plauto em A comédia dos burros, sendo evocado muito mais tardiamente por Thomas Hobbes). Assim, Sergio Blanco leva o material tchekhoviano pré-épico recuar para o século 18, quando o romance gótico inglês faz da exploração de temas macabros seu modo de atuação. Os elementos cruéis e apavorantes em Kiev assumem o protagonismo mesmo da narrativa, surgindo ora na esfera da interioridade dos personagens, ora na simbologia que eles encarnam coletivamente. Em ambos os casos, explorando em chave de palimpsesto – cujas camadas justapostas são os mistérios medievais que tratam do martírio dos santos; o romance gótico; o conto fantástico, decorrente deste último; a obra sui generis de Tchekhov; a pulp fiction contemporânea – a impossibilidade da repressão à memória da violência, engendrada no âmbito da família e do Estado. Eis então que as terríveis perversões em Kiev marcam o movimento maior da peça: a necessidade de comunicar o que de reprimido passou simplesmente a olvidado.

Da tragédia que constituiu tal esquecimento na esfera do texto chegamos ao registro da comédia proposto pela encenação. Comédia de horror. E de costumes. Não basta remexer na fossa da nossa animalidade individual e coletiva; é preciso rir com virulência dela. Visualmente, os elementos cenográficos encarnam uma espécie de divina comédia da experiência soviética, arremedando duas obras artísticas e chegando mesmo a inverter – base de toda experiência cômica – a imagem de Lenin. Partindo ainda do campo visual, mas procurando atingir a percepção mais ampla do espectador, o registro de interpretação dos atores investe em um tipo de comicidade muito particular, quase invisível, encarnada sobejamente por Juliana Galdino, cujo rosto assume a forma de uma máscara da comédia nova grega do século 4 a.C., com seu misto de dionisismo e derrisão. É a ela quem cabe cavoucar com sua voz ctônia o que há de derrisório também por debaixo das falas de Eiren, levando os espectadores a se surpreenderem com o fato de que seja possível rir do que está sendo apresentado no palco. Otávio Martins também envereda por uma comicidade muito sutil, não óbvia, por meio de gestos e voz calculadamente trabalhados para comunicar a violenta desfaçatez de um tipo misantrópico – muito à vontade em um espetáculo de grand guignol. Em registro diferente, atuam outros dois intérpretes. Tavio é habilmente construído por Marat Descartes como um sujeito patético – a rigor, um professor por demais apegado à ideia esquiliana do pátei mátos, o aprendizado pelo sofrimento; já Taynã Marquezone confere um tom delirante muito expressivo a sua Dafne, que a faz transitar entre o comedimento e a implosão. Tarefas mais difíceis cabem a Filipe Ribeiro, um Alden bastante seguro preso à cadeira de rodas, e a Caio D’Aguilar, escondido por detrás de uma máscara de gás.

Roberto Alvim, uma vez mais, leva seus personagens a serem enunciados cenicamente como figuras hieráticas – aqui, mais especificamente, como autômatos desligados de suas imediatas motivações naturalistas. E é desse descompasso entre cultura e natureza que a encenação de Kiev extrai sua principal linha de força. Apocalipse, catástrofe, hecatombe, holocausto, ataques nucleares, ataques terroristas, shopping centers, Frank Sinatra, Henry Purcell, os rostos de tantos artistas e pensadores defenestrados pelo regime stalinista… – Kiev nos coloca diante dos extremos de uma memória de natureza histórica, cultivada pela violência. E o faz por meio da evocação das lembranças individuais e familiares. Só que do modo mais anti-dramático possível. Na anti-dramaticidade do teatro de Roberto Alvim reside a desindividualização que convida o espectador a se relacionar com os muitos símbolos explorados pelo diretor em chave de inconsciente coletivo. O que nos permite em Kiev até mesmo rir dessa comédia de horror a qual já nos acostumamos, daí também sua caracterização como comédia de costumes. Sermos capazes de habitar confortavelmente um mundo sem piedade, eis o verdadeiro veneno transformado em antídoto nos tempos que correm. Veneno/antídoto – fármaco, pois, sem o qual é impossível enfrentar a Lei da Selva, cujo grande mandamento, como Dafne apregoa diante de um Alden alquebrado pela dor, resume-se a tal asseveração: “Sem veneno [a abelha] não pode viver”.

Kiev
Onde: Teatro SESC Ipiranga, rua Bom Pastor, 822 – Ipiranga, São Paulo
Quando: Até 10/09, às 18h (qui. e dom.) e às 21h (sex. e sab.)
Quanto: R$9, R$15 e R$30

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