Kant moribundo

Kant moribundo

Caio Liudvik

“Imaginar um leitor totalmente indiferente a Kant é imaginar um leitor muito pouco intelectualizado; e portanto, na realidade, embora possa ocorrer que ele não o veja com interesse, faz parte da farsa da cortesia fingir que sim.” A malícia provocativa dessas palavras iniciais já é um alerta: não estamos diante de uma biografia nem de um biógrafo convencionais, ao abrirmos as páginas de Os Últimos Dias de Immanuel Kant, ensaio do inglês Thomas de Quincey (1785-1859). Amigo dos poetas românticos Wordsworth e Coleridge e aclamado por nomes como Charles Baudelaire e Jorge Luis Borges, ele oferece a chance de fruir do “encontro” de horizontes de duas figuras das mais díspares.

De um lado, ele mesmo, um escritor de existência desregrada e atormentada e mais conhecido por suas Confissões de um Comedor de Ópio, relato sobre seu vício de mais de 50 anos. E, de outro, o alemão Immanuel Kant (1724-1804), um dos maiores filósofos de todos os tempos, mestre do racionalismo iluminista e de rígida formação moral pietista.

Neste livro de 1827, De Quincey consegue destoar da também monótona rotulação de monotonia normalmente atribuída a Kant. Com base em relatos de discípulos próximos, De Quincey inverte a hierarquia habitual e traz para o centro da cena não as ideias, mas o cotidiano do filósofo e seus dias finais.

E o resultado não só comove como oferece uma perspectiva original para ?compreender as palavras do próprio Kant sobre o compromisso ético que os antigos exigiam do aspirante a filósofo: “Não se deve apenas especular, mas é necessário pensar em praticar. Mas hoje se toma por sonhador aquele que vive de acordo com o que ensina”.

Numa releitura laica dos preceitos éticos cristãos, Kant punha em primeiro plano o dever de respeitar a liberdade e a dignidade do outro e da humanidade em geral (sabe-se quanto Kant e sua ideia de “paz perpétua” e governo supranacional prefiguraram instituições como a ONU).

Reencontramos essa tensão entre estado de natureza e vida moral, entre as afecções do corpo e o gênio da razão, em Os Últimos Dias de Immanuel Kant, mas como objeto do massacre silencioso da velhice: perda de memória, audição e visão. Ele também se viu cada vez mais privado da alegria dos “banquetes platônicos” que gostava de oferecer. Essas tertúlias eram também uma síntese viva da capacidade de empatia de Kant pelos outros.

Outro grande prazer eram as caminhadas vespertinas. Solitárias, pois Kant “desejava respirar exclusivamente pelas narinas, o que não poderia fazer se fosse obrigado a continuamente abrir sua boca para conversar. Sua razão para tal desejo era que o ar atmosférico – por ser obrigado a percorrer um circuito mais longo, chegando, portanto, aos pulmões num estado menos bruto e a uma temperatura um pouco mais alta – seria menos capaz de irritá-los”.

Também impressiona o relato sobre os pesadelos noturnos que levavam o mestre da “razão pura” a quase enlouquecer de pavor pelas “tenebrosas ilusões” que o assaltavam – por exemplo, as visões fantasmagóricas de assassinos à sua cabeceira.

Transformado numa “massa informe sobre a cadeira, mudo, cego, entorpecido, imóvel”, Kant ainda assim não perdeu as “inextirpáveis delicadeza e bondade” de sua natureza, contraste que reforça no leitor a impressão de estar diante de uma verdadeira paixão de Cristo laica. É preciso lembrar que a principal fonte do relato é Ehrgott Wasianski, amanuense de Kant e que tinha ordenação sacerdotal. É ele quem protagoniza o beijo de despedida pedido pelo mestre no leito de morte e é também quem registrou as últimas palavras de Kant, de um valor quase mítico: “É o bastante”.

Didatismo

O leitor interessado em se iniciar ou se aprofundar de fato na obra do pensador encontrará estímulo no livrinho didático de Roger Scruton, Kant. Ex-professor de estética na Universidade de Londres, ele consegue a proeza de reler a obra de Kant de modo que a torna menos assustadora em seu gigantismo e em sua linguagem hermética.

Descritivo e sem arriscar voos próprios, o livro enfatiza a posição original do filósofo ante os debates da época – sobretudo entre o racionalismo de Leibniz e o empirismo de Hume, autor que despertou Kant de seu “sono dogmático”. Traz um glossário informal do rico e difícil vocabulário kantiano e resume a argumentação dos três principais tratados kantianos.

Um é a Crítica da Razão Pura (sobre a teoria do conhecimento, de 1781), que Scruton define como “a obra de filosofia mais importante escrita nos tempos modernos”; os outros são a Crítica da Razão Prática (sobre a moral, de 1788) e a Crítica da Faculdade do Juízo (voltada para a estética, de 1790), além de uma espécie de “quarta crítica, não escrita”, os escritos políticos tardios.

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Professor da Universidade de Lille 3 e diretor do Centro Internacional de Estudo da Filosofia Francesa Contemporânea, em Paris, Frédéric Worms aborda os quatro principais livros do filósofo francês Bergson (1859-1941) em um único estudo. O objetivo é compreender a diferença entre duração e espaço, expandindo os argumentos para além desses conceitos e atribuindo-lhes duas condutas: teórica e prática.

Bergson ou Os Dois Sentidos da Vida
Fréderic Worms
Editora Unesp
384 págs.
R$ 68

(1) Comentário

  1. Uau, gostaria de ler esse livro sobre a vida do Kant. Immanuel Kant é sem dúvida o maior filósofo de todos os tempos, comparável apenas a Aristóteles, e o seu sistema de ética do imperativo categórico é uma das minhas filosofias de vida junto com a escola do estoicismo do Zenão de Cítio e o meio-termo do Aristóteles.

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Novembro

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