Kafka, a ruína do símbolo

Kafka, a ruína do símbolo

 

 

Em Kafka lemos a ruína do símbolo. Sua escritura – elaborada no que Modesto Carone chamou de uma “linguagem tipicamente cartorial, de protocolo”, marcada pela tensão entre as culturas alemã, tcheca e judaica – coincide com a minuciosa construção desse arruinamento. Mas o que isso quer dizer? Inicialmente, o seguinte: o que está em jogo aqui é uma forma de conhecimento; todavia, é uma forma de conhecimento certamente peculiar, já que o sentido que podemos, sim, apreender nos textos de Kafka não se dissocia da incerteza, do desconhecimento, da perplexidade, em suma, de uma espécie de nonsense, por assim dizer, que singularmente faz sentido.

Se, portanto, Kafka nos esclarece a respeito de algo – do mundo, de nós, da modernidade ocidental – é por meio dessa luz opaca que sua literatura irradia: uma luz indecidível entre a aurora e o ocaso, ou seja, entre o que vem a ser e o que se extingue. São histórias em que nada parece faltar. Odradek, Gregor Samsa, Josef K. É como se nada nos fosse omitido nesses textos que parecem colidir com o duro chão do mundo secular – e, no entanto, não se vislumbra nenhuma verdade ou completude que pudesse servir aos propósitos mais firmes e bem intencionados da cultura do humanismo ilustrado; nenhuma garantia, enfim, que pudesse ser reconhecida e passada adiante como um anel, geração após geração, como fiadora da cadeia da tradição do Ocidente.

Podemos dizer que o que manteria esse encadeamento contínuo e progressivo – como uma sucessão de anéis, ou ainda como fragmentos que se ajustam e se completam em conjunto, formando um todo – é o símbolo. Seu reconhecimento e sua passagem sustentariam o mundo simbólico, as práticas, as formas da relação entre saber e o poder, os modos de produção da verdade. Numa conferência a respeito de Édipo Rei, de Sófocles, realizada em 1973 na PUC do Rio de Janeiro, Michel Foucault se referiu a essa “forma religiosa, política, quase mágica do exercício do poder”. Trata-se de uma técnica de unificar o saber e o poder que, operante na Grécia arcaica, eclipsar-se-ia com o advento das formas jurídicas clássicas. Diz Foucault:

Um instrumento de poder, de exercício de poder que permite a alguém que detém um segredo ou um poder quebrar em duas partes um objeto qualquer, de cerâmica etc., guardar uma das partes e confiar a outra parte a alguém que deve levar a mensagem ou atestar sua autenticidade. É pelo ajustamento destas duas metades que se poderá reconhecer a autenticidade da mensagem, isto é, a continuidade do poder que se exerce. O poder se manifesta, completa seu ciclo, mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos, separados uns dos outros, de um mesmo conjunto, de um único objeto, cuja configuração geral é a forma manifesta do poder. A história de Édipo é a fragmentação desta peça de que a posse integral, reunificada, autentifica a detenção do poder e as ordens dadas por ele. As mensagens, os mensageiros que ele envia e que devem retornar autentificarão sua ligação ao poder pelo fato de cada um deles deter um fragmento da peça e poder ajustá-lo aos outros fragmentos. Esta é a técnica jurídica, política e religiosa do que os gregos chamam sýmbolon – o símbolo.

Ora, precisamente esse ajustamento e essa unidade parecem estar ausentes também na emergência da condição moderna, de acordo com alguns dos seus relatos mais significativos. Baudelaire afirma que o poeta perde sua auréola e que o dândi é um “sol poente”. Marx e Engels postulam que tudo o que é sólido desmancha no ar. Nietzsche acusa o crepúsculo dos ídolos e a morte de Deus. Simmel aponta a perda da sensibilidade na vida das grandes cidades. A busca de Proust é pelo tempo perdido. Freud concebe uma pulsão de morte que trabalha em nós silenciosamente. Benjamin refere-se não apenas à perda da aura, mas também à privação da experiência coletiva e à extinção da narrativa que era capaz de transmitir uma sabedoria e um conselho. Hannah Arendt reflete sobre isso nos termos da perda da autoridade. Nas artes plásticas, a figura do homem e a representação da natureza são abandonadas por vários artistas. Etc.

Nesse sentido, Kafka produz um dos mais radicais relatos dessa falta constituinte. Benjamin escreveu que igualmente o mundo de Kafka é “um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o início no palco”. E se esse teatro tem “o céu como perspectiva”, “este céu é apenas pano de fundo; investigá-lo segundo sua própria lei significaria emoldurar um pano de fundo teatral e pendurá-lo numa galeria de quadros. Como El Greco, Kafka despedaça o céu”. Tudo está ali, portanto, mas como um astro que colapsa: são narrativas do desastre, diria Blanchot.

Suas parábolas são lapidares. Se ao narrador tradicional era confiada a passagem da experiência, um ancião no leito de morte seria a sua figura exemplar: um moribundo, detentor da autoridade da velhice, arranca a experiência do limiar do indizível, e assim pode passá-la adiante; como um anel, como um símbolo ou seu fragmento poderiam ser passados. Mas o que os anciãos de Kafka transmitem? Talvez não haja ruína mais eloquente do que a intitulada “Uma mensagem imperial”, de 1919:

O imperador – assim consta – enviou a você, o só, o súdito lastimável, a minúscula sombra refugiada na mais remota distância diante do sol imperial, exatamente a você o imperador enviou do leito de morte uma mensagem. Fez o mensageiro se ajoelhar ao pé da cama e segredou-lhe a mensagem no ouvido; estava tão empenhado nela que o mandou ainda repeti-la no seu próprio ouvido. Com um aceno de cabeça confirmou a exatidão do que tinha sido dito. E perante todos os que assistem à sua morte – todas as paredes que impedem a vista foram derrubadas e nas amplas escadarias que se lançam ao alto os grandes do reino formam um círculo – perante todos eles o imperador despachou o mensageiro. Este se pôs imediatamente em marcha; é homem robusto, infatigável; estendendo ora um, ora o outro braço, ele abre caminho na multidão; quando encontra resistência aponta para o peito onde está o símbolo do sol; avança fácil como nenhum outro. Mas a multidão é tão grande, suas moradas não têm fim. Fosse um campo livre que se abrisse, como ele voaria! – e certamente você logo ouviria a esplêndida batida dos seus punhos na porta. Ao invés disso porém – como são vãos os seus esforços; continua sempre forçando a passagem pelos aposentos do palácio mais interno; nunca irá ultrapassá-los; e se o conseguisse nada estaria ganho: teria de percorrer os pátios de ponta a ponta e depois dos pátios o segundo palácio que os circunda; e outra vez escadas e pátios; e novamente um palácio; e assim por diante, durante milênios; e se afinal ele se precipitasse do mais externo dos portões – mas isso não pode acontecer jamais, jamais – só então ele teria diante de si a cidade-sede, o centro do mundo, repleto da própria borra amontoada. Aqui ninguém penetra; muito menos com a mensagem de um morto. – Você no entanto está sentado junto à janela e sonha com ela quando a noite chega.

“Você”, isto é, nós estamos desamparados, afinal mostra-se improvável a chegada do mensageiro, portador do símbolo, responsável pela autentificação e a continuidade do sentido, do segredo, da verdade. Como um comentário sem fim, os textos de Kafka se estendem como um denso véu que trama e enfim expõe um sentido sempre em falta: diante da microfísica do poder, abrem dessa maneira um hiato, um vazio intenso, que ao mesmo tempo suplementa e arruína a suposta unidade do simbólico – e, por extensão, o entendimento da modernidade capitalista como ápice do progresso histórico, do desenvolvimento cultural etc.

De certa maneira, trata-se da passagem da transparente estabilidade do símbolo à mediação contingente da alegoria. “Realmente”, escreveu Jeanne-Marie Gagnebin a propósito desse duplo de Kafka que foi Walter Benjamin, “desde Goethe e do romantismo alemão, o símbolo é sinônimo de totalidade, de clareza e de harmonia, enquanto a alegoria é recusada por sua obscuridade, seu peso e sua ineficiência”. E ainda: “enquanto o símbolo clássico supõe uma totalidade harmoniosa e uma concepção do sujeito individual em sua integralidade, a visão alegórica não pretende qualquer totalidade, mas instaura-se a partir de fragmentos e ruínas. Ao mesmo tempo, a identidade do sujeito se esfacela, incapaz que é de recolher a significação desses fragmentos”.

Intérpretes de nossa singular situação já afirmaram que, no Brasil, estaríamos condenados ao moderno. O que poderia ser entendido como: neste espaço que foi invadido, explorado e segue sendo dilapidado por uma razão positiva, de fato a ruína parece mostrar-se como a cifra mais potente de uma modernidade que, colocando-se sob o signo da ilustração, nasceu, no entanto, obnubilada. Neste caso, lida sob o sol cegante dos trópicos, talvez a obscuridade de Kafka ajude a esclarecer alguns dos nossos impasses históricos e o trabalho que ainda nos cabe. Como anotou o escritor num conhecido aforismo: “Ainda nos impõem fazer o que é negativo; o positivo já nos foi dado”.

Artur de Vargas Giorgi é Professor de Teoria Literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).


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