Kafka, em torno e além

Kafka, em torno e além

 

“Cada oração (de Kafka) diz: interprete-me, e nenhuma quer admiti-lo”.
Theodor W. Adorno

Como quase tudo o que Franz Kafka escreveu, o conto Josefina, a cantora ou O povo dos camundongos (que integra o quarto volume – Um artista da fome e A construção – das obras do escritor tcheco traduzidas para o português por Modesto Carone para a Companhia das Letras) é uma pequena obra-prima de alta carga simbólica vazada na precisão vocabular e na sintaxe sui generis que acabaram se convertendo no fascinante estilo forma-conteúdo exercitado pelo autor, marco de um realismo inquietante que insiste em ser nosso contemporâneo.

Conforme Carone relata no posfácio da obra, Josefina, escrito em 1924, encerrava a coletânea dos quatro contos que o criador de A metamorfose publicou no mesmo ano em que morreu, vitimado pela tuberculose, representando assim uma espécie de seu canto de cisne. Concebido durante a curta permanência de Kafka em Berlim, onde viveu na companhia de sua mulher Dora Diamant entre 1923 e 1924, o conto se abre a inúmeras possibilidades de sentido, mas não negligencia o fato de espelhar “as angústias do escritor nos tempos sombrios da ascensão do nazismo”, de acordo com as palavras do próprio tradutor.

Na narrativa de Josefina, a cantora, Kafka trata dos acordos tácitos que as massas procuram empreender com alguns indivíduos comuns, até mesmo medíocres, dispostos a assumir um vácuo de poder e se transformar em líderes políticos da coletividade por meio de um mecanismo de alienação inerente à modernidade: quão mais opacos são os sujeitos a quem conferimos o poder de nos liderar mais devotamos a eles uma adoração exaltada, mas vazia de sentido, que não tem outra finalidade senão dissimular a aguda falta de substância deles mesmos e de nossas próprias escolhas.

Transitando da esfera política para o domínio estético, podemos ainda compreender o conto sob a ótica dos impasses sofridos pela arte diante das ações imperiosas que a existência cotidiana nos demanda, conforme aponta Maurice Blanchot em “Kafka e a literatura”: “Na história de Josephine, Kafka mostra que, mesmo que o artista se julgue a alma da coletividade, o principal recurso do povo para enfrentar as desgraças que o atingem, ele não será dispensado de sua cota de trabalho e de responsabilidade comum, sua arte sofrerá com isso, ficará até em perigo, mas não importa: sua decadência ‘é apenas um pequeno episódio na consciência eterna do nosso povo, e nosso povo superará em breve esta perda’. O apólogo significa claramente que, mesmo absoluta, a arte não tem nenhum direito diante da ação. Ela não tem direito, mas a consciência dessa ilegitimidade não resolve o conflito. Prova disso é que, para anunciá-la a nós, Kafka precisa ainda escrever uma obra de literatura, e ele próprio morrerá corrigindo as cópias de um último livro”.

Tal base alegórica é que orienta a montagem de Josefina canta, espetáculo livremente inspirado na narrativa de Kafka, com texto e direção de Elzemann Neves, ora em cartaz na sala experimental do Teatro Augusta. Veículo para três atores muito talentosos – Inês Aranha (Josefina), Bia Toledo (Teresa, a criada) e Germano Melo (Gutemberg, assessor de imprensa) – exibirem verve dramática e domínio técnico em doses muito bem calibradas, e essenciais à empreitada, a encenação, entretanto, não se satisfaz em seguir exclusivamente o vetor apontado por Kafka, optando antes por alçar um voo próprio ao atualizar o fio condutor original e lhe conferir cor local, quando então se propõe a discutir, a partir da alegoria central, as relações promíscuas estabelecidas no Brasil das últimas décadas entre o poder, a mídia e o povo.

A Josefina do texto de Elzemann é uma cantora decadente que outrora serviu aos interesses do poder em troca de uma grande popularidade, hoje, perdida. Muito provavelmente ela apoiou a ditadura militar instaurada no país na década de 1960, usufruindo das benesses da alienação das massas. Entretanto, tal fase cortesã de sua carreira foi deixada para trás, e nos dias atuais a artista precisa se reinventar, adaptando-se aos novos tempos e ajustando seu discurso a uma realidade complexa que ela em princípio não parece compreender muito bem – daí a necessidade de ser auxiliada por sua criada, que entende do povo, e por um expert em marketing pessoal, que entende da mídia.

Ainda que muito da atmosfera de absurdo inefavelmente construída por Kafka tenha se perdido no processo de adaptação da obra – o que é natural pelo fato de a literatura e o teatro constituírem linguagens tão diferentes –, o texto de Elzemann Neves possui uma força incontestável, calcada na conversão da angústia kafkiana frente a um mundo sem sentido em perplexidade diante de um país em que a insensatez e o irracionalismo grassam diariamente como ocorrências sistêmicas, conjunturais, epidêmicas…

Tal força, então, contamina de forma muito positiva todo o projeto da encenação, assinada também por Elzemann. Direção, interpretação, cenários, figurinos e iluminação, assim, concorrem para materializar a teatralidade que é tão latente na obra de Kafka, traduzida ora por um expressionismo lúgubre e algo mortificador, ora pela importância que o corpo humano assume nas narrativas (transformando-se, muitas vezes, no tema principal das próprias ações vividas pelos personagens), ora ainda pelas tintas da viva dramaticidade com que o escritor construía suas histórias, mesmo que delas, paradoxalmente, emanem certos efeitos muito modernos de distanciamento crítico.

O trio de intérpretes conduz os setenta minutos desse vibrante e audacioso exercício de intertextualidade, procurando explorar os níveis de performance e de atuação (traduzidos na dinâmica kafkiana pela ideia de “responsabilidade”) de cada um dos personagens na complexa relação de interdependência de que trata o texto adaptado. Há um eriçamento na voz e no corpo dos atores que funciona muito bem, evidenciado pela natural proximidade entre público e intérpretes. Germano Melo e Bia Toledo jogam com muita competência o sinuoso jogo de adjuvantes de Josefina, a diva depauperada. O primeiro destila cinismo e desfaçatez na medida certa; a segunda encena pequenas situações de autocomiseração, ligeiramente comoventes, se não fossem por demais patéticas.

O assustador bestiário concebido por Kafka – do qual fazem parte também o inseto de A metamorfose, a provável toupeira de A construção e a bizarra criatura de A preocupação do pai de família – oferece, aqui, à intérprete da cantora-ratazana Josefina possibilidades muito expressivas de exploração do uso da voz e do corpo, com especial destaque para a máscara facial – possibilidades estas às quais Inês Aranha se lança com energia incomum. Trata-se de uma atriz muito segura que constrói uma personagem difícil com todo o atrevimento necessário à experiência.

Josefina canta mantém com o conto de Kafka uma constante relação de fricção, instituindo um curioso movimento de vai e vem em relação à potência expressiva da obra original. A proposta não prevê mesmo adesão irrestrita à simbologia manipulada com tamanha habilidade estilística pelo escritor tcheco, mas eventuais fissuras desta adaptação, a bem da verdade, são equilibradas por muitos dos acertos presentes – o que leva a empreitada a constituir uma experiência cênica bastante particular cuja marca é a oscilação entre um “em torno” e “além” de Kafka – este cronista desolado do mundo moderno de cuja companhia os artistas criadores de Josefina canta fazem muito bem em usufruir.

Josefina canta
Onde: Teatro Augusta – Sala Experimental (Rua Augusta, 943, Consolação, São Paulo)
Quando: até 29 de março (sexta: 21h30; sábado: 21h; domingo: 19h)
Quanto: R$ 30,00
Info: (11) 3151-4141

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