Juca Kfouri: ‘O futebol é a outra face da política’
O jornalista Juca Kfouri (Foto Francisco Ucha / Divulgação)
“Futebol e política, política e futebol se misturam como água e sabão, e seria ainda melhor se um e outro fossem mais limpos do que são”, escreve o jornalista Juca Kfouri em suas memórias. Recém-lançadas sob o título Confesso que perdi (Cia das Letras), as histórias de vida de um dos mais conhecidos jornalistas do Brasil entrelaçam-se de tal forma às trajetórias da política e do futebol no Brasil que, de fato, fica difícil separar as coisas. A única forma de narrar as três histórias é misturando-as.
Assim, os capítulos que organizam Confesso que perdi têm como títulos combinações de acontecimentos políticos e esportivos, como “Duas derrotas: Diretas Já e Democracia Corintiana”. Com algumas voltas, o livro segue mais ou menos a cronologia linear da história política recente do Brasil, do golpe militar de 1964 até os governos PT, passando por copas do mundo, pela redemocratização brasileira, pelos principais campeonatos nacionais e pelos movimentos políticos dentro do futebol, normalmente considerado algo alienante pela elite acadêmica do Brasil.
Embora se autoproclame, logo no título, um “derrotado”, o jornalista dificilmente seria classificado assim: Kfouri foi diretor das revistas Placar e Playboy, além de colunista dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo, sendo, atualmente, comentarista esportivo da ESPN-Brasil e da Rádio CBN. Antes disso, nos anos 1970, estudou Ciências Sociais da USP, onde se envolveu com a militância política de esquerda da Ação Libertadora Nacional (ALN, o partido de oposição à ditadura), tornando-se responsável por ajudar quem precisasse fugir do Brasil, arranjando documentação e esconderijos temporários. Foi aí que sua vida – que desde cedo já estava misturada ao futebol – atrelou-se definitivamente à política.
“Eu era um menino de 17 anos que estava começando a fazer militância política. O que me incentivava, mais que conhecimento, mais que ideologia, era um enorme sentimento de indignação”, lembra. À CULT, Kfouri fala sobre a recepção de Confesso que perdi, fazendo um balanço de sua trajetória como militante de esquerda e jornalista esportivo-investigativo – e comenta a atual situação política do Brasil, apontando os erros da esquerda e o impacto político do 7 a 1.
CULT – Você sempre se identificou com a esquerda, e não esconde isso em suas memórias. Como está sendo a recepção do livro neste momento politicamente conturbado?
Juca Kfouri – A repercussão está sendo muito melhor do que eu imaginava, até agora não saiu nenhuma crítica negativa. Mas o momento político está sendo importante também. Eu passei a ser muito mais alvejado por anti-petistas depois do impeachment do que era antes. Muita gente que me adorava como jornalista esportivo antes do impeachment passou a me odiar depois porque descobriu em mim um petista que eu não sou. Eu sou apenas contra o impeachment. Mas para muita gente, isso é ser “petralha”. Acho que se eu lançasse este livro antes, talvez não houvesse esse tipo de leitura. Mas é o que eu sempre digo: enquanto a gente sentir frio na barriga, quer dizer que a gente está vivo.
No livro você menciona que, em seus anos nas Ciências Sociais, via o futebol como possível instrumento de luta política. O que mudou de lá para cá?
Nas Ciências Sociais, nos anos 1960, o futebol era visto como alienante, como algo que atrasaria a luta social. O pessoal da Usp só se preocupava, de fato, com a luta contra a ditadura, como se o futebol não pudesse fazer parte disso. Eu achava o contrário. Do fim da ditadura para cá, isso não só mudou, como mudou para melhor, porque o futebol passou a ser assunto de muitas teses acadêmicas. A parte esportiva da Biblioteca Acadêmica cresceu muito. Na época em que eu estava na Sociais tinha pouquíssimas teses, hoje há mais 1.300 sobre o tema. Isso reflete uma outra visão sobre o futebol – uma visão mais crítica.
É possível o surgimento de outra organização como a Democracia Corintiana?
Aquilo foi algo muito particular. Nasceu daquele ambiente da campanha das Diretas, quando os objetivos de toda a esquerda eram os mesmos – derrubar a ditadura. Hoje, houve algumas tentativas semelhantes: depois de 2013, por exemplo, tivemos o Bom Senso Futebol Clube, que acabou sendo soterrado pelo caos político, e não deu certo. Neste momento atual, acho muito difícil imaginar um movimento como a Democracia. É uma questão de contexto, mas também de educação básica e de ensino superior.
Como assim?
Aquele contexto era muito mais propício para o surgimento de algo assim. Ao mesmo tempo, nosso sistema educacional não é voltado para formar cidadãos, mas para criar e manter oprimidos. Se o povo brasileiro em geral não é politizado, imagine o atleta, que é criado para a competição, para vencer, e não para pensar em política. Assim, fica cada vez mais difícil a criação de um movimento de resistência dentro do futebol.
Algumas pessoas brincam que o Brasil desandou depois da última Copa. O futebol tem poder sobre as relações sociais e políticas no Brasil?
A relação é curiosa. Veja, ninguém disse que a Copa de 1970 foi ganha pelo General Médici, embora ele fosse o presidente na época. Da mesma forma, ninguém colocou a culpa do 7 a 1 na Dilma. Nós perdemos da Alemanha de 7 a 1, foi o maior vexame da história do nosso futebol. Aquela derrota, de fato, é um marco da virada da “fla-flulização” da nossa política. E Dilma foi xingada nos estádios, mas ainda assim foi reeleita. E ainda assim, o Brasil está classificado para a Copa de 2018, está todo mundo encantado com o time do Tite. Eu não estabeleço uma relação direta entre política e futebol. Mas é óbvio que a superestrutura do nosso futebol é a outra face da superestrutura da nossa política. O [ex-presidente da CBF] Ricardo Teixeira está proibido de sair do Brasil pela Interpol, assim como o atual presidente, Marco Polo Del Nero, e o José Maria Marin, que estão nos Estados Unidos. Você olha para a Lava-Jato e pode enxergar, se quiser, a mesma estrutura de corrupção. As pessoas devem ter clareza disso.
Você esteve presente nas Diretas Já e também viveu as manifestações de Junho de 2013. Vê aproximações entre estes dois marcos?
Os dois são absolutamente diferentes. Acho que as manifestações pelas Diretas eram caracterizadas pela unidade do país: o país inteiro queria votar, independentemente de quem seria o candidato. Queríamos ter o poder de escolha. Já as manifestações de 2013 nasceram de uma simples manifestação contra o aumento das passagens de ônibus em São Paulo e, em função da reação violenta da polícia militar, se transformaram em uma trilha de pólvora que acabou explodindo em vários pontos do país. Ali, foi a gota d’água que transbordou. Só que, ao contrário das Diretas Já, Junho de 2013 aconteceu da forma mais desorganizada possível. Tinha de tudo na rua. Como o Lula disse, havia pessoas que não tinham pão e havia pessoas que já tinham pão e queriam manteiga. E aí, abriu-se espaço para o que temos hoje aí, na política, em termos de conservadorismo.
As redes sociais são, hoje, o equivalente à intensa atividade política daquela época?
Sem nenhuma postura saudosista, acho fácil demais se manifestar pelas redes sociais. Eu prefiro aqueles que vão para as ruas, que correm riscos, que apanham da polícia, porque esses dizem alguma coisa de fato. Na minha época, a gente levava cacetada e ia preso, mesmo com medo. Nas redes sociais as pessoas se escondem. Agora, claro que não se pode ignorar o papel das redes. Veja a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, veja a eleição de João Doria em São Paulo: a manipulação das redes sociais trouxeram estes resultados. Mesmo assim, pelas pesquisas, se vê que há um desencanto dos eleitores, que não é refletido pelas redes. Quero dizer: como assim, 55% da população paulistana é contra Doria presidente? Eu me surpreendi vendo isso. Pelas redes, achava que o cara era super popular. A gente é levado a ter conclusões erradas quando vive nessas bolhas.
Nas redes, há quem defenda a volta da ditadura militar. Como você, que lutou contra a ditadura, vê isso?
Eu tenho até preguiça de pensar nisso porque é algo muito recente. É o sinal mais forte da ignorância política em nosso país. Gente que não viveu a ditadura – ou que até viveu, mas que não acredita que o regime fez o que fez, que torturou, matou, censurou. Claro, tem gente com uma cabeça desviada, que acha que tem que ser assim mesmo. Mas também tem gente que quer ordem, e que não percebe o que a ditadura traz junto, inclusive corrupção, de que as pessoas reclamam tanto. Na época da ditadura, havia corrupção de sobra, mas ninguém podia noticiar, é claro. Era o silêncio dos cemitérios. Mas a impressão é que os militares eram limpos.
Em determinado momento do livro, você diz que “a democracia é uma coisa complicada”. Ainda acredita nisso?
A democracia que a gente imaginava durante a ditadura era baseada em um fato simples: naquela época, era muito fácil separar o “bem” do “mal”. Porque quem era a favor da ditadura era “do mal” e quem era contra era “do bem”. Só que, quando a ditadura acabou, percebeu-se que nem tudo era tão simples. Existia gente de direita e “do bem”, gente de esquerda e “do mal”, existia de tudo, porque é disso que se trata a democracia. E a única solução para isso, na minha opinião, é mais democracia. A democracia brasileira, porém, é baseada num modelo político arcaico, que não tem nada a ver com representação. É um modelo que se vale do dinheiro para eleger representantes, e acaba sendo uma democracia distorcida – veja, já tivemos dois impeachments depois da redemocratização, que aconteceu há pouquíssimo tempo.
Que soluções podem ser viáveis?
Acho que podemos pensar como modelos os países escandinavos. Claro, eles são muito menores do que o Brasil, e de culturas muito diferentes da nossa, mas há uma série de medidas que podem, sim, ser aplicadas aqui. Votos por distrito, que trariam a política para mais perto da realidade dos eleitores. Ou facilitar novas eleições caso o presidente eleito não seja bom o suficiente, sem ter que passar pelo trauma do enorme processo de impeachment. Mas acho que a reforma política está muito aquém do povo, aqui no Brasil. Ninguém sabe o que está acontecendo.
É assim que a reforma trabalhista tem sido feita.
Exatamente. Acho a reforma trabalhista necessária, porque o mundo mudou. O capitalismo mudou, o capital mudou, as relações de trabalho e os meios de produção mudaram. Mas isso é enfiado goela abaixo por este governo, que não tem legitimidade nenhuma para fazer uma reforma desta magnitude. E, até por uma questão tática, a gente é obrigado a ficar contra.
Em suas memórias, você afirma que, em sua militância da juventude, “a sensibilidade e a indignação sobrepujavam o realismo”. Ainda há resquícios dessa cegueira idealista?
Só posso falar com base no que eu vivi e no que eu vejo, mas acho que não. Hoje é diferente. Eu era um menino de 17 anos que estava começando a fazer militância política. O que me incentivava, mais que conhecimento, mais que ideologia, era um enorme sentimento de indignação. Afinal, tivemos um presidente tirado do poder sob mentiras de que havia uma “ameaça comunista”. Aquilo era um absurdo. Hoje, podemos até dizer que houve um golpe, mas não vivemos um Estado de exceção. Não há uma ditadura. Então, a solução é o debate político.
Não há ditadura, mas há um conservadorismo tomando forma no poder. Um exemplo é o que está acontecendo com as censuras a exposições e outras formas de arte.
Sim, e isso é um reflexo muito claro das pessoas que, com pouca ou nenhuma informação, se manifestaram pelo impeachment. São pessoas que não têm noção do que seja arte. É só ver Alexandre Frota nas ruas, se manifestando contra a pedofilia e contra a pornografia, pela família brasileira. Quer melhor exemplo do que isso? É uma gente tão ignorante que é incapaz de entender que o olhar de uma criança para qualquer coisa é completamente diferente do olhar de um adulto. Essa coisa da penalização do nu, do pecado do nu, isso é uma bobagem. É obscurantismo. Parece que nem passamos pelo Iluminismo, séculos atrás.
Acredita que o conservadorismo seja de responsabilidade da esquerda que esteve no poder?
Sim, os erros da esquerda facilitaram o conservadorismo. E a esquerda errou demais. Essa coisa da coalizão do governo PT com o PMDB, por exemplo, não fez o menor sentido. Outro grande erro foi a esquerda não ter feito as reformas que eram mais necessárias, políticas e sociais, para não mexer em um vespeiro. O que houve foi um falso desenvolvimento: formação de consumidores durante oito anos, uma suposta ascensão dos excluídos, as pessoas de classes baixas começaram a andar de avião. Mas nenhuma mudança estrutural. E aí, acabaram ficando parecidos com outros governos, mesmo sendo de esquerda.
Vê possibilidade de uma nova guinada à esquerda? Como?
Não resta outra saída senão a esquerda admitir que errou e corrigir erros. A atual presidente do PT, Gleisi Hoffmann, diz que o partido não é uma igreja para ajoelhar no milho, mas eu acho que isso é uma maneira muito rasteira de não cumprir com a obrigação com o povo brasileiro, com os que foram decepcionados pelo partido. Fingir que não errou é ridículo. E isso você vê, inclusive, no jornalismo. Não há nada que o leitor goste mais do que uma errata, porque isso aproxima você das pessoas; faz com que elas vejam humildade no seu trabalho. É a mesma coisa com a política.
(1) Comentário
Juca ,como analista de futebol,dentro das 4 linhas,és sofrível,como observador dos relacionamentos políticos e sociais,levas jeito,pareces com um Artelia.