Jovelina, meu amor!

Jovelina, meu amor!
Jovelina Pérola Negra em foto de seu disco de 1987 (Foto: Oskar Sjstedy/ Som Livre/ Divulgação)

 

A temporalidade do repente. Assim como a luz de uma estrela cadente, Jovelina Pérola Negra chegou e abalou muitas das estruturas que nos atravessam a existência. E de fato foi assim, como no episódio retratado pelo jornalista Caco Barcellos em seu livro Abusado, com a potência explosiva de uma AK-47 atravessando o campo minado dos marcadores sociais. Poderíamos escolher falar dela a partir do marcador de gênero: o que é ser mulher, o que é ser mulher nas rodas de samba, o que é ser mulher periférica, o que é ser mulher compositora. Poderíamos escolher o marcador de raça: o que é ser mulher preta, o que é sofrer com o racismo, o que é carregar a ancestralidade de pessoas que foram escravizadas. Também poderíamos escolher falar a partir do marcador de classe: o que é ter uma mãe empregada doméstica e, sem expectativa de mobilidade social, o que é ser empregada doméstica.

Mas esse texto nasce da possibilidade de falar sem conseguir dizer, e de representar sem conseguir ser. Mesmo diante de tantos marcadores consolidados como verdadeiras estruturas da realidade socioeconômica e espacial brasileira, que colapsam no corpo-Jovelina, sua força não cabe em nenhuma forma, sua potência em nenhuma estrutura. Sua voz grave e rouca parece transbordar a estrutura rítmica, convertendo o tempo em uma flecha lançada para o futuro, para a política da “positividade” de quem acredita que “a vida é melhor quando a gente sorri”.

Jovelina, no entanto, nunca negou a tristeza como parte da vida. Ela cantou as dificuldades e a depressão: “nas peripécias da vida só Deus sabe o que passei”, “marolei nas labaredas/ das fogueiras que pulei/ consegui transpor barreiras/ que jamais imaginei”. A música sempre foi uma aliada do violão, do “pandeiro, o ganzá e o tamborim” a um “banjo bem tocado”, “do partido-alto ao samba de terreiro”, juntamente com seus “amigos chegados”. Mas há em suas músicas, repetidamente, algo que parece mais um grito de guerra de seu “samba guerreiro” e que se manifesta como uma ética da existência, o famoso: “Deixa comigo”.

“Deixa comigo” nunca negou o outro, ao contrário, é responsabilidade com o outro, por isso constitui uma ética, com os valores presentes nas ruas, nos bares, nos pagodes, nas rodas de samba e nos terreiros. Talvez venha daí sua necessidade de cantar a vacilação para designar aquele que fere a ética do “deixa comigo,/ sem vacilar, sem me exibir”. O “Pomba-rolou” é quem chega no pagode sem ter permissão, faz de tudo para aparecer, metido a compositor, atravessa fora do tom, um tremendo vacilão. O “Bugui ugui da favela” tem força na goela e conversa-fiada, assim como o “Passarinheiro fanfarrão”.

Jovelina convocava a todos, “é só chegar nos pagodes da cidade”, mas também demarcava aqueles que não sabiam chegar. Muito longe de ser um limite estabelecido por uma moral, era um desafio ético de responsabilidade com o outro. Porque chegar pisando devagarinho ou chegar chegando são formas possíveis diante da observância de que “na lei do pagode só versa quem pode,/ quem sabe somar e não subtrair”. Isso porque Jovelina, com a potência de seu canto, espora, chegava chegando, mas “sem vacilar, sem se exibir”, chegava para mostrar o que sabia, chegava junto, pra “renovar as amizades”, porque, como já dizia Paulo Freire na Pedagogia do oprimido, “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.

Não conseguimos partir das estruturas para falar da Jovelina, porque, como ela mesma disse, “pensou me amarrar, marcou bobeira”. Havia em suas letras, em sua voz, em seu jeito de versar e em suas aparições um sentido de liberdade que chega a ser violento, por não ser uma liberdade instrumentalizada, mas sim, como diria Hannah Arendt, “uma liberdade pra ser livre”. É a liberdade da “menina que bebeu demais”, é a liberdade de “arranjar, quem sabe, um namorado”, é uma “liberdade plena”, transgressora e dotada da potencialidade de ir além do presente num porvir, por isso é violenta. Ora, não é fácil ser “realmente violenta”, diria Slavoj Žižek, porque isso implica perturbar os parâmetros mais básicos da vida social. Nesse sentido, Jovelina é pura violência.

A circulação pela cidade, seja “no famoso trinta e três”, dos subúrbios até os locais de trabalho, é uma verdadeira experiência espacial-existencial que marca uma grafia do corpo-Jovelina em seu movimento de margear, visto que alarga a periferia quando chega aos centros, não sem os tensionamentos produzidos pelas inúmeras práticas de imobilização. Circular também reúne ritmo e coreografia, por isso os “pagodes da cidade” marcam a espacialidade dos encontros como potência de uma cidade aberta, onde, segundo Marcelo José Derzi Moraes, a rua é nóix.

E se a gente pensa que essa liberdade transgressora e violenta se manifesta somente por uma temporalidade disruptiva ou uma espacialidade delimitadora, Jovelina faz sua revolução no cotidiano, nas brechas e nas festas, porque sua violência como potência livre de existir faz com que suas canções sejam, tal como em Conceição Evaristo, escrevivências da vida ordinária, daquilo que Milton Santos chama de um espaço banal. Seja na “Feirinha da Pavuna” ou na “Confusão na horta”, ecoando prosopopeias que só amplificam sua potência de expressividade; seja no Vidigal do Catatau como uma forma de denúncia social, seja no episódio do Dona Marta realizando o “deixa comigo”, seja rodopiando na ala das baianas do Império. É nos lugares e no cotidiano que suas letras se tornam escrita da história, letras que antes eram escrituras desse corpo em colapso, um corpo-escala, um corpo de transbordo, um corpo-espírito que não experimentou o enfraquecimento nem o envelhecimento. Obrigada, Jovelina. Jovelina, meu amor.

 

Mariane de oliveira Biteti é geógrafa, doutora em Geografia pela UFF, professora da FFP-UERJ e do PPGGEO e coordenadora do grupo de pesquisa Margear do CNPQ.


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