José mergulha para sempre na piscina azul, e todos os gestos do fogo

José mergulha para sempre na piscina azul, e todos os gestos do fogo
O poeta Marcelo Reis de Mello, autor de 'José mergulha para sempre na piscina azul' (Garupa) (Foto: Arquivo Pessoal)

 

Num dos pequenos ensaios de força reunidos em O fogo e o relato, o filósofo italiano Giorgio Agamben se pergunta acerca de um “em nome de quê?”. A questão se arma exatamente numa situação política sem esperança, uma vida apagada, quando há um mundo deprimido e infeliz, tal como esse em que estamos, porque só se é autorizado a um discurso, em toda conversa, diz ele, quando se enuncia o “em nome do quê”. Haja visto um imenso ou violento percurso histórico “em nome de Deus”, por exemplo: da Commedia, de Dante, até a Ética, de Espinosa, ou as Cruzadas com suas perseguições a inocentes, a palavra e a espada. Depois, a economia e a técnica que substituíram de vez a política, mas não podem dar um nome, “em nome do qual falar. Por isso, podemos nomear as coisas, mas já não podemos falar no nome.” A pergunta, segundo Agamben, vale tanto para o filósofo quanto para o poeta;  para o primeiro, se interessa a verdade, não se pode falar em seu nome, mas se pode apenas dizer o verdadeiro, ou seja, sobra apenas a interrogativa; ao segundo, não sobra nenhuma tarefa, tendo em vista que a arte, a poesia e a religião foram transformadas em espetáculos e não tem mais eficácia histórica: “são nomes dos quais se fala, mas não palavras proferidas no nome.”

E nesse movimento de alhures e nenhures, a caminho do inferno, este onde já estamos, aponta para a coragem que se demora, mora e morada, entre dizer e calar “em nome de um nome que falta”, “o nome ausente exige que falemos em seu nome”. Ou talvez, a ambos, resta dizer em nome da língua da qual desapareceu o nome de Deus; ou para o poeta resta cumprir a exigência de dizer em nome de um povo, termo que normalmente é sinônimo de Deus, e este um povo é, ainda, a sua única e faminta emergência: dizer a um povo que falta. Agora, repare-se num nome, José, e perceba-se de imediato a cantilena do chamado: do carpinteiro cumpridor de uma hospitalidade radical a um arquivista de nomes e atribuições desvalido da própria existência, do “e agora, José”, de Drummond, até uma mínima matéria publicada no Jornal do Brasil, em 1972, que anuncia este um qual-quer, matável: “José mergulha para sempre na piscina azul”: na Estrada da Paz, 1022, na Tijuca, Rio de Janeiro (onde mais seria?), um operário nordestino, José Carlos Pinto, pula na piscina de uma mansão porque não resiste ao azul que vislumbra sobre o muro, “um primeiro alumbramento”, nu, “entre um instante de prazer e a eternidade dura dos que nascem e morrem pobres”, e morre afogado, não sabia nadar.

A rememoração do poema de Manuel Bandeira tirado de uma notícia do jornal Beira Mar, em torno de um João Gostoso, carregador de feira livre, talvez bêbado, e suicida, pode ser imediata, porque está-se diante de um tempo em que os jornais ainda falavam dessa coisa tão impressionante e simplória a que Rubem Braga tomava como “vida”, mas o arremesso vem e reaparece de outro modo quando a notícia acerca de José cai, sabe-se lá como, nos impasses de um poeta que se pronuncia, em meio a coragem, frente a um mundo sobre o qual é preferível, muitas vezes, calar-se, retirar-se, desistir, morrer-se. E se a coragem se vincula ao poeta sem armas, como sugere Hölderlin, a uma língua sem nomes, logo, a uma língua sem povo, demos e ademia, temos aí a indissolubilidade que junta poesia e filosofia e que nos remete, sem meio sentido, à ideia de que o nome da política que temos, democracia, segundo Agamben, é simples e essencialmente ademia, uma palavra vazia. Mas é também numa releitura de dois poemas de Hölderlin que Walter Benjamin nos lembra, bem antes de Agamben, com alguma esperança e coragem, que ainda pode haver alguém para algo. O livro de Marcelo Reis de Mello, publicado agora pela brava, livre, respeitosa e forte Garupa Edições, leia-se aí também a editora atenta e atenciosa, Juliana Travassos, parte desse apontamento tão inespecífico e estrondoso ao imprimi-lo como título e questão: José mergulha para sempre na piscina azul.

Estamos agora diante de um livro de crise, incendiário, em fogo e relato, porque Marcelo, aos poucos e devagar, tem procurado perceber um mundo ao redor que é todo de “um outro”, ou de “uns” e “outras”, errado e errante, basta reler seus livros anteriores, e agora desqualificando e anulando sem nenhum pudor e com muita imprecisão a figura daquele que narra ou se narraria a cada linha, página e poema: “tempo de incêndios” é o primeiro poema, a partir daí o que se tem é uma convicção irresoluta e irrespirável da dificuldade entre a política e o poeta. Ao mesmo tempo, se vale de um jogo precioso e incomum, que é o de tornar seus amigos e amigas, quase todas, quase todos, de alguma maneira, nessa imprópria figura que narra, narraria, os poemas. Assim, não são mais apenas textos de um único autor, que os assina com o seu nome, mas sim a expansão da assinatura até a possibilidade de seu apagamento quando ela se amalgama numa comunidade exasperada, porém viva, vivíssima, que não se furta a um enfrentamento, mesmo que seja o de bater em retirada, diante de um real tão difuso e pouco profícuo. Essas presenças se espalham pelos poemas e parecem saber que estão ali, uma a uma, sem acomodação e convidadas a um cabo de guerra, sem hábito ou habitação, soltas e arriscadas numa ponta aguda de palavra.

Essa comunidade reconfigurada, interrompida, está anotada em várias linhas, coisas como: “o coração de um bodhisattva não arde como o nosso”, “damo-nos conta / de que olhar / tem a ver / também / (ou sobretudo) / com o tempo”, “sempre soubemos, amigos // quem pensa demais / acaba por tornar-se / um pouco pálido”, “a essa altura já não esperamos / que pegue tão mal / o nosso manifesto”, “sujos e alegres / após a inundação, disse Marona” e, entre tantos outros exemplos, a delicadeza e a suspeição de “pois somos meninos românticos / e, mesmo fora de moda / sabemo-nos perto / bem perto da morte” etc. É numa curva de inteligência, leitura e observação, arejamento e tomada de posição, sem a toleima equívoca de acordo ou desacordo, que Marcelo projeta uns josés em seus poemas que, sem parar, reclamam o sentido e a travessia de, pelo menos, saber que “- o mais próximo do vivo ainda é o morto / – o nosso paciente é um cadáver” e “encarar de frente / o fogo” para uma vida mínima e máxima diante da vida. O que não se postula pela jurisprudência do direito, ou um direito, mas numa dissecação, como indica Marcelo, é o que se postula como exigência.

O crítico e professor Raúl Antelo lembrava, numa conferência recente, da frase de Benjamin retirada de seu Para uma crítica da violência: “A violência que mantém o direito é uma violência que ameaça”. E esticava a questão até a indicação de Fabián Ludueña, o de uma agregação sem coesão e de uma conexão sem comunidade. Pode-se pensar que a impossibilidade de um desenho do comum tenha também muito a ver com a circunstância simplória de uma ideia proeminente do capitalismo: a da cooperação (que muitas vezes é falseada pela ilusão do dinheiro, e assim funciona, por exemplo, sob a promessa incorrigível das gestões neo-liberais, dos sistemas bancários e de seus correlatos), sempre sem nenhuma solidariedade. A pauta solidária é a que se distancia da ação e só é possível no gesto, a nada, como um poema que se lança numa temporalidade de vazios. Num fragmento de O salto, lemos: “uma estranha eletricidade / rampa os ossos / enquanto descemos o morro / ofegando como potros / prestes a aprender a andar / trombando nas coisas / nos cascalhos todos / entre guimbas e garrafas / de pessoas de bem / com seus olhares de cima / e veneninhos gourmet. // […] (porque fracos somos sempre um pouco).”

José mergulha para sempre na piscina azul evidencia um trabalho com o pensamento e raspa um sentido de re-habitação, talvez perto do que planejara Gary Snyder e alguns de sua turma também exasperada, como Gregory Corso, Neal Cassady e Diane di Prima. O gesto é desfazer essa dicção malamanhada do relato pessoalizado, quase sempre meramente burguês e tecnocrata, de uma cooperativa nada solidária, e que sempre pode ser lido como sintoma e sintomatologia de um tempo que não podemos compreender, para, bem longe disso, noutra fímbria, e aí sim, reabrir algumas feridas que estão ajustadas a um processo histórico que sobreleva apenas e momentaneamente, também como espetáculo, quem se conforma para falar “em nome do quê?”. Numa tomada de posição às avessas, ou ao lado, o que se lê neste livro de Marcelo Reis de Mello é uma tentativa de dizer em silêncio, este tempo embaçado do poema, ou dizer no sem-nome, no sem-lei, no sem-povo, quase anônimo, anárquico, aprosodicamente, para ter, como quer Agamben, algum acesso à política e à poesia que vem. Por fim, anotado bem no meio do poema “Viver é um estado de exceção”, lê-se um gesto de fogo: “por isso exercitar o gesto / indeciso o corpo / que hesita – ou quase”.

José mergulha para sempre na piscina azul
Marcelo Reis de Mello
Garupa edições
R$ 40

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea (7Letras, 2014), Jogo de Varetas (7Letras, 2012), As mãos (7Letras, 2003/2012), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015) e O método da exaustão (Garupa Edições).


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