Jornalismo é política

Jornalismo é política
Que jornalismo não seria político? (Divulgação)

 

Jornalismo, este que preza pelo interesse público ao reportar diversas vozes e checar informações, está tão ausente da maior parte dos veículos de comunicação, comprometidos com interesses comerciais ou a manutenção de privilégios de uma pequena parcela da população, que outras nomenclaturas têm ganhado relevância. Jornalismo independente, jornalismo alternativo, jornalismo sem fins lucrativos são alguns dos termos utilizados por quem faz… jornalismo. Este, que preza pelos direitos humanos e o interesse público.

De tempos em tempos surge, como acusação: “Isso não é jornalismo, é política”. E que jornalismo não seria político? A revista mais vendida do país? Ou o jornal a serviço do Brasil? Ora. Já em 1919, no ensaio A política como vocação, Max Weber apontou a carreira jornalística como a primeira profissão política remunerada. O sociólogo alemão, considerado liberal – sempre bom explicitar para não gerar confusões comuns com o Marx comunista –, escreveu: “Somente o jornalista é um político profissional pago; somente a administração do jornal é uma organização política contínua. Além do jornal, há apenas a sessão parlamentar. […] O partido só está vivo durante os períodos de eleição”.

Não é de hoje, portanto, que jornalista é profissional remunerado e que jornalismo é política. Sem abrir mão da busca por isenção e pela pluralidade de visões sobre o mesmo fato, além da checagem rigorosa, é evidente. Daniela Osvald Ramos, professora do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP ressalta, a importância de um jornalismo que coloque como centro o público. “A preocupação maior não pode ser defender uma causa, mas esclarecer ao leitor as forças em jogo em relação àquela causa. Atualmente, além de mostrar o mapa de forças, o jornalismo deve indicar linhas de ação possíveis para a resolução dos problemas, para que sejamos mais atuantes, e o cidadão seja ativo, não uma eterna vítima dos fatos.”

No artigo “Iniciativas de jornalismo independente no Brasil e Argentina”, publicado em 2015, Daniela, em coautoria com Egle Müller Spinelli, registra como as transformações tecnológicas têm impactado os processos de se produzir e consumir jornalismo, nos diversos formatos impressos e digitais. Segundo as autoras, as mudanças têm ocasionado uma situação de crise econômica em grandes empresas de comunicação e resultado em demissões em massa, os temidos “passaralhos”. Muitos dos jornalistas demitidos, ou aqueles que já não encontravam nas grandes redações as possibilidades para a prática da reportagem como desejavam, têm se unido em projetos chamados pelas autoras de independentes.

A jornalista Claudia Belfort, da Ponte Jornalismo, já foi repórter da revista Veja e do Diário de Pernambuco, editora-chefe do Jornal da Tarde e de conteúdos digitais do Estadão. Ela pediu demissão do grupo Estado porque queria produzir conteúdo relevante. Com outros jornalistas, criou a Ponte.org, veículo dedicado à cobertura dos direitos humanos, segurança pública e violência praticada pelo Estado. Ela não classifica a Ponte como jornalismo independente ou alternativo. Para ela, o modelo de organização e produção do veículo é muito novo e ainda não possui um rótulo, mas o que fazem não é algo específico. “Jornalismo é jornalismo: ouvir os dois lados, ter distanciamento. Nós fazemos jornalismo com objetivo. Pelo jornalismo buscamos a redução da violência policial, políticas públicas de direitos humanos para as minorias e as periferias. O jornalismo é um instrumento para contribuir com isso.”

Lançado há um ano e meio, somente agora o grupo registrou um CNPJ e está em busca de possibilidades de financiamento. Neste período, repórteres e editores trabalharam sem receber e dividiram os gastos com a manutenção do site. “Não é trabalho voluntário. Nós somos jornalistas profissionais que trabalhamos voluntariamente por um período. Mas até quando a gente vai aguentar?” Todos têm outros trabalhos e se dedicam à Ponte pelo compromisso com a temática, mas agora estão estruturando possibilidades de financiamento internacional e prestação de serviços para pagarem as contas, que incluem a própria remuneração.

No artigo de Daniela Osvald Ramos e Egle Müller Spinelli, citado anteriormente, a viabilidade econômica é a questão-chave para a maior parte dos projetos: “O desafio é criar valor para o jornalismo independente, para que se torne auto sustentável, com alternativas de se auto gerir com recursos de financiamentos mistos e sem fins lucrativos, que pode ser realizado pela implantação de financiamentos coletivos, vendas de assinaturas, ensaios ou pagamento por artigo/reportagem, paywall, mecenato, native adds entre outros. A busca é pela sobrevivência por um jornalismo comprometido com a sociedade, com qualidade formal e conteúdistica, que saiba se utilizar das ferramentas digitais para falar com um nicho da sociedade interessado em saber sobre assuntos que envolvem o contexto em que vivem com qualidade de apuração, investigação e seriedade”.

O financiamento coletivo apontado pelas autoras, crowdfunding, tem mobilizado o público-leitor a colaborar com a produção de reportagens específicas ou a manutenção de veículos jornalísticos. A roteirista e documentarista Fernanda Polacow doou, em 2015, R$35 na campanha realizada pela Agência Pública de Jornalismo Investigativo. “Doei porque sinto uma enorme carência de bom jornalismo e fontes confiáveis de informação. Já fui assinante de jornal de grande circulação em São Paulo e desisti por total falta de identificação com a linha editorial. E mais, pela superficialidade e extrema manipulação das matérias, diariamente.” Além de contribuir financeiramente para a produção das reportagens que gostaria de ler, mais profundas e comprometidas com valores conectados aos seus, Fernanda também se mostrou solidária ao modelo colaborativo. “Sei que é muito difícil viabilizar e manter um veículo independente.”

A qualidade questionável do que tem sido produzido pelos grandes veículos foi decisiva para que o pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV-RJ, Pedro Mizukami, também contribuísse em duas campanhas de financiamento coletivo da Pública. “A grande imprensa pouco tem feito no campo do jornalismo investigativo; tem, ainda, assumido um viés político nitidamente à direita e interferido diretamente no caminhar da vida política do país. A Pública dá visibilidade a pautas que não costumam ser objeto da grande mídia”, argumentou.

Além de Fernanda e Pedro, outras 944 pessoas doaram entre R$20 e R$2.500 para a campanha, contribuindo para a soma de R$70.200, utilizados para financiar reportagens. “É o salário do repórter. Cada um ganha R$5.000 para fazer uma reportagem investigativa que demora entre dois e três meses para ficar pronta”, explica Natália Viana, diretora da Pública. O dinheiro para a manutenção da estrutura da agência: salário da equipe contratada, espaço físico, página na internet, dentre outras despesas, vem de projetos específicos e, principalmente, financiamento internacional.

Diversos estudos acadêmicos, inclusive o de Daniela e Egle, apresentam a Agência Pública como um modelo bem-sucedido de jornalismo independente, tanto pelo modelo de financiamento quanto pela alta qualidade das reportagens produzidas, a maior parte delas focada nos impactos dos megaeventos esportivos; tortura e violência dos agentes do Estado; megainvestimentos na Amazônia; crise urbana e violações de direitos humanos. A missão publicizada no site da agência é “Produzir reportagens de fôlego pautadas pelo interesse público, sobre as grandes questões do país do ponto de vista da população – visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático e à promoção dos direitos humanos. Funcionamos como uma agência: todas as nossas reportagens são livremente reproduzidas por uma rede de mais de 60 veículos, sob a licença creative commons”.

A licença flexível de direito autoral creative commons, alternativa ao “Todos os direitos reservados”, permite que, ao citar o nome da agência e do repórter, se reproduza o conteúdo das reportagens, desde que o contexto seja preservado e não haja exploração comercial. O objetivo é que a informação possa chegar a mais pessoas. “Distribuindo conteúdo temos conseguido muito impacto no mercado do jornalismo ao inserir temas fundamentais no debate público. Somos replicadas em veículos como o El País, UOL, IG, Terra, EBC”, explica Natália.

O financiamento internacional vem da Fundação Ford, Omidyar Network e Open Society Foundations. Natália explica como se dá a relação: “Apresentamos o projeto de, por exemplo, financiar doze reportagens. Não há detalhamento de pauta, repórter, nada disso. E, muito importante, nenhuma delas tem contato com o conteúdo ou o dia a dia da nossa organização. Elas recebem o conteúdo como qualquer leitor. Sempre deixamos claro que, no jornalismo, a independência é um valor em si. Essa postura também educa os financiadores”.

Além da Pública, a Fundação Ford financia, na área de Criatividade e Liberdade de Expressão, projetos como a agência Amazônia Real e o Observatório das Favelas, as ONGs Artigo 19 e Intervozes, além de formações realizadas pelo Mídia Ninja. Segundo Graciela Selaimen, coordenadora de programa no escritório brasileiro da Fundação Ford, o objetivo é apoiar a produção de conteúdo relevante, feito não só por jornalistas profissionais, mas também por pessoas habilitadas a narrar as realidades que vivenciam. “No nosso processo de reestruturação programática ficou muito claro que a cultura é um componente importante para a mudança ou a manutenção do status quo. Cultura não só como produção cultural e artística, mas como perspectiva de mundo, modos de pensar”, explicou Graciela. “Para avançar nas mudanças e na transformação social, rumo a sociedades mais igualitárias, com respeito aos direitos humanos e oportunidades iguais entre as pessoas, propagar diversas visões de mundo faz muita diferença.”

Assim como Natália, da Pública, Graciela afirma que a Fundação não interfere nos conteúdos produzidos pelos parceiros. “É claro que toda doação é feita depois de aprovarmos uma proposta e um orçamento. Os projetos que apoiamos fortalecem nossa estratégia como fundação. Existem compromissos a serem cumpridos, definidos no âmbito de cada um deles, mas não interferimos nos conteúdos”, confirma.

Os anúncios publicitários, que desde os tempos descritos por Weber são importantes fontes de financiamento do jornalismo, estão menos presentes nos projetos independentes. “Quem quer relacionar a própria marca à violência policial?”, provoca Claudia Belfort. O que é de interesse público nem sempre interessa às grandes empresas que pagam por publicidade. Já o maior anunciante do país, o Governo Federal, tanto pela comunicação de Ministérios e Secretarias, como pelas campanhas de empresas estatais, destinou verba publicitária a veículos alternativos nos últimos anos do governo Lula e durante o governo Dilma.

Em 2014, foram destinados R$9,2 milhões em publicidade federal para onze veículos de mídia alternativa, segundo dados que o jornalista Fernando Rodrigues, do UOL, obteve por meio da Lei de Acesso à Informação. (São eles: Blog do Kennedy, Brasil 247, Brasil de Fato, Brasil Econômico, Diário do Centro do Mundo, Luís Nassif, Caros Amigos, Carta Maior, Conversa Afiada, Ópera Mundi e Revista Fórum). Segundo o mesmo jornalista, só a Rede Globo recebeu, em 2014, mais de R$565 milhões em verbas publicitárias do mesmo governo. O último secretário adjunto da Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) do governo Dilma, Olavo Noleto, afirma que todas as verbas publicitárias foram distribuídas a partir de critérios técnicos: quais segmentos da população cada campanha pretendia alcançar, e um ranking de audiência dentro de cada segmento. “Sempre utilizamos os critérios mais consensuais do mercado e procuramos fazer com que a gestão de recursos da Secom tivesse transparência. Prova disso é que uma parte muitíssimo pequena de recursos publicitários foram destinados a veículos que nos acusam de serem beneficiados por nós”, afirmou Noleto. “Os critérios técnicos eram questionados por todos, especialmente pelos nossos aliados.”

As acusações de que o governo Dilma teria beneficiado aliados do PT pelo repasse de verbas publicitárias voltou a circular depois que o presidente interino Michel Temer anunciou um corte orçamentário na Secom e encomendou um levantamento sobre gastos com publicidade. Sob a manchete “Blogs pró-governo terão verba cortada”, o jornal O Globo publicou reportagem no dia 14 de maio, afirmando que integrantes do governo teriam manifestado uma disposição de mudar a distribuição de recursos para “evitar associação com produtos de opinião, como os blogs”.

Chico Mendonça, secretário executivo da Secom no governo interino de Michel Temer, explica o corte de verbas como uma medida temporária, até que os critérios de repasse do governo anterior sejam analisados. “Principalmente na internet, havia recursos federais patrocinando veículos através de publicidade sem critérios compreensíveis. Decidimos interromper para que a política seja reorientada a partir de critérios técnicos.” Segundo o secretário, não serão utilizados critérios partidários para a tomada de decisão, e a pluralidade de visões e de linhas editoriais será respeitada.

Olavo Noleto explica que, no caso das verbas publicitárias repassadas aos veículos diretamente pela Secom, as agências de publicidade montam um plano de mídia a partir dos tais critérios técnicos. Desde 2012, três agências dividem a conta da Secom: Leo Burnett, Nova/SB e Propeg. Procuradas para esclarecerem quais eram os critérios na gestão Dilma e agora no governo interino, nenhuma das três colaborou com a reportagem. A supervisora de mídias da Propeg, indicada pela assessoria de imprensa da agência para dar a entrevista, não respondeu aos e-mails ou aos telefonemas da redação; a Nova/SB afirmou que, infelizmente, não tinha um porta-voz disponível para a pauta, sem maiores explicações; e, segundo a assessoria de imprensa da Leo Burnett, a agência não teria tempo hábil para responder porque, com o Festival de Cannes, todos os executivos estavam voltados para o evento.

“Cortar 600 mil por mês de todos os veículos alternativos equivale a 30 segundos de anúncio no Jornal Nacional. É de um ridículo… Esse corte só tem um objetivo: tentar, por via de uma censura econômica, fazer com que estes veículos deixem de existir”, afirma Renato Rovai, editor da Revista Fórum. “Sinto informar que não vai dar certo. Esses veículos não são comerciais, o objetivo, no geral, não é ganhar dinheiro. Se em outros momentos da história era necessário pagar papel, e a gente fazia sem dinheiro, imagina agora com a internet. A decisão nos faz perder receita, mas não vai nos silenciar.”

A Revista Fórum foi criada em 2001, durante a primeira edição do Fórum Social Mundial. “Foi lá na Porto Alegre daqueles que sonhavam um outro mundo possível que a Fórum nasceu. Não é a publicação oficial do FSM, mas a revista traz no seu DNA a força dos movimentos e a certeza de que é na multiplicidade de vozes que se faz um mundo melhor”, registra o site da revista. Até 2013, eram impressos entre 20 e 25 mil exemplares, vendidos em banca. Desde 2014, a revista só é publicada em formato digital. Ainda segundo a página: “O Portal Fórum traz, diariamente, matérias, reportagens e entrevistas que buscam uma visão de mundo diferente da presente nos grandes meios de comunicação tradicionais”.

Rovai argumenta que o corte orçamentário não tem a ver com economia ou falta de critério técnico nos repasses: “O jogo tem de ser claro. Estão querendo calar um lado do espectro informativo. Temer disse que o governo não vai apoiar veículos de opinião. Ele vai, na verdade, impedir que veículos com opinião diferente da dele tenham recursos do governo federal”.

Segundo os dados publicados por Fernando Rodrigues, em 2014 a Revista Fórum recebeu R$99.761, e o site da revista recebeu 657 mil visitantes únicos. O custo por visitante único foi de um centavo, um terço do custo por visitante único do UOL, Globo.com e Terra. “Os veículos estavam entregando todos os page views contratados. No caso da Fórum, sempre entregamos mais, e muito barato. A acusação fica ainda mais escandalosa”, argumenta Rovai.

Daniela Osvald Ramos, docente na disciplina Economia da Mídia, reforça a importância de discutir o financiamento público do jornalismo. Um modelo desenhado por pesquisadores norte-americanos, citado por ela, seria o cidadão destinar parte de seus impostos a veículos de comunicação escolhidos por ele. Dinheiro público para financiar conteúdos de confiança das pessoas, não selecionados a partir de qualquer critério de governos. Daniela também analisa a possibilidade de o corte orçamentário anunciado por Temer diminuir, no ambiente comunicacional do país, as condições de diversidade de opinião e de interpretação dos fatos. “Digamos que metade desses veículos fossem mesmo pró-governo Dilma. Ainda assim, eles ocupam uma função agora, de ser oposição. E por que não se fala da subvenção do Estado aos veículos da grande mídia? Parece que só os veículos alternativos recebem verba pública. Não há uma cadeia mais complexa?”

Tanto Natalia Viana quanto Claudia Belfort apontam a concentração midiática no Brasil como um problema complexo e urgente que precisa ser debatido de forma mais profunda que o repasse de verba publicitária a determinados veículos. Para garantir o direito à comunicação e à liberdade de expressão de todas as pessoas, a partir de diferentes pontos de vista, seria necessário regulamentar a estrutura do sistema de comunicação. “A gente sabe que o governo Dilma e o governo Lula fizeram um pequeno programa de democratização de verba publicitária. Deveriam ter feito a democratização da mídia. Não fizeram. Está aí! Concentração de terra, concentração de mídia, concentração de verbas que beneficiam um setor da economia e da comunicação”, conclui Claudia.

O jornalismo de interesse público, que é também político, precisa de independência em relação aos financiadores, sejam eles fundações, anunciantes privados ou governos, e também dos proprietários dos veículos. “As relações da imprensa com os poderes dominantes no Estado e nos partidos, sob o velho regime [do Kaiser] foram as mais prejudiciais possíveis para o nível do jornalismo; isso constitui, porém, um capítulo à parte. […] em todos os Estados modernos, aparentemente, o trabalhador jornalístico ganha cada vez menos à medida que o senhor capitalista da imprensa, do tipo de ‘Lorde’ Northcliffe, por exemplo, ganha cada vez mais influência política. Até agora, porém, nossas grandes empresas jornalísticas capitalistas, que controlam especialmente a ‘cadeia de jornais’, com ‘anúncios classificados’, foram, regular e tipicamente, os fomentadores da indiferença política. Pois não se poderiam colher lucros numa política independente; especialmente, não se poderia obter a lucrativa benevolência dos poderes politicamente dominantes”, já escreveu Max (o Weber), em 1919.


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