“Todo pobre já virou negro”

“Todo pobre já virou negro”
O etnólogo Pierre Verger, Jorge Amado e o artista Carybé (Fundação Casa de Jorge Amado/Divulgação)

 

 

Dentre os muitos temas que ajudaram a infundir forma e substância ao imaginário em torno da obra de Jorge Amado, aqueles associados às representações do negro e da mestiçagem certamente merecem um lugar de destaque.

A experiência da mistura racial e cultural, sobretudo entre o português e o africano, foi um dos motes privilegiados de parte expressiva de sua ficção – a qual, para muitos, foi capaz de retratar e entender singularmente os carimbos de nossa autenticidade como povo e nação.

Uma ficção, nesse sentido, que teria logrado o encanto e a magia de existir como uma espécie de “deusa mestiça” a “correr livre (…) esparramando aos quatro ventos a força da explosão cultural que aqui resulta no reencontro da raça”.

Amado, lógico, não inventou nem tampouco foi o único a plasmar um discurso identitário calcado na celebração do cadinho étnico nativo. Contudo, é forçoso reconhecer que a obra do autor acabou se mostrando um catalisador vigoroso desse discurso, em parte graças ao consumo amplo e massificado das imagens de Brasil por ele fabuladas, seja por meio dos livros, seja por meio das inúmeras adaptações televisivas e cinematográficas já dedicadas aos seus romances.

Os anos 1930

É importante, no entanto, chamar atenção para o fato de que o interesse de Jorge Amado pela questão racial possui uma história, a qual nos lança de volta aos primeiros anos de sua carreira como escritor, ainda na década de 1930.

E a explicitação sintética de alguns aspectos dessa história mostra-se extremamente pertinente para que sejamos capazes de palmilhar não apenas os caminhos que levaram Jorge Amado a buscar na figura do negro e na cultura afro-brasileira repertórios estética e politicamente rentáveis, mas também a série de dilemas concernentes às suas experiências como militante comunista à luz das quais foi construindo e dando molde às suas noções de povo e nação.

Tendo se aproximado ainda muito jovem do Partido Comunista Brasileiro, aos 20 anos, quando cursava a Faculdade de Direito no Rio de Janeiro, Jorge Amado rapidamente ajustou os ponteiros de sua incipiente e precoce carreira literária às demandas políticas e simbólicas dessa organização.

O resultado imediato foi a elaboração de um projeto criativo muito bem-sucedido que não apenas buscou se valer ao máximo do marxismo como chave de análise social como também realizou com eficácia uma espécie de tradução, por meio da qual transformou conceitos, valores e imagens da militância em formas e repertórios literários.

Amado resolveu os encargos ideológicos de sua arte dando vida a uma escrita de forte inspiração soviética, a qual ficou conhecida naquele momento como romance proletário.

Panfletário e doutrinário por definição, o romance proletário foi debatido pelo autor nos termos de uma arte que devia retratar, antes de qualquer coisa, o universo existencial dos grupos mais baixos na hierarquia social, ao mesmo tempo em que precisava ser capaz de conferir plasticidade e rendimentos estéticos aos modos de agir e pensar vivenciados no âmbito da militância partidária.

Nas palavras do próprio Jorge Amado, tratava-se de uma arte formal e narrativamente interessada em trazer à cena o “drama coletivo, o drama da massa, da classe, da multidão”. Em síntese, uma “literatura de luta e revolta. E de movimento de massa. Sem heróis de primeiro plano (…), mais crônica e panfleto (…) do que romance no sentido burguês, [fazendo] do leitor um inimigo da outra classe”.

Em grande medida, foi buscando compor esse universo ficcional voltado para esse “drama da massa” e protagonizado por personagens passíveis de serem lidos como expressivos de coletividades mais amplas que Jorge Amado encontrou em nossa formação étnico-racial, na figura do negro e na cultura e religiosidade de origem africana, alguns dos repertórios nucleares para descrever e compreender as desigualdades da moderna sociedade brasileira.

Jubiabá (1935), nesse sentido, é um marco: o quarto romance de sua carreira e o primeiro a trazer como personagem principal um negro, assim como o ambiente religioso dos terreiros de candomblé.

E não apenas pelo fato de os negros representarem para Amado a figura mais bem acabada de grupo explorado no Brasil, pois duplamente oprimido, como raça e como classe, mas também por encontrar no cromatismo da sociedade brasileira uma linguagem expressiva da forma racialmente marcada como as hierarquias de classes aqui se manifestavam.

Disputas identitárias

Parece-me importante, nesse sentido, ter em mente as prerrogativas políticas investidas no tratamento que Jorge Amado dispensou à questão étnica, a fim de não minimizarmos os aspectos bastante originais e significativos de sua abordagem naquele contexto.

Ao lidar articuladamente com as categorias de raça e classe já na década de 1930, o romancista observava o Brasil de um ângulo ao qual a própria ciência social nacional daria ênfase somente a partir da década de 1950, com as pesquisas sociológicas empreendidas por Florestan Fernandes, Roger Bastide, Luís de Aguiar Costa Pinto, Thales de Azevedo, entre outros.

E talvez por isso mesmo que, em Capitães da areia (1937), o romancista mobilizasse a cultura afro-brasileira como chave de leitura privilegiada por meio da qual o personagem Pedro Bala, líder dos meninos de rua, interpretava o seu mundo, estando capaz, assim, de melhor perceber a violência que recaía sobre ele e seus colegas de grupo.

Afinal, foi primeiro lutando pela cidadania e pelos direitos dos membros dos candomblés a praticar livremente seus cultos, na época ilegais, que Pedro Bala passou a encontrar razão e sentido em se tornar um “militante proletário (…) perseguido pela polícia de cinco Estados como organizador de greves [e] como dirigente de partidos ilegais”.

Desse modo, ao olhar de modo conjugado os dilemas das populações negras e mestiças e as desigualdades de classe, Jorge Amado dava os primeiros passos no sentido de compreender as complexidades de um sistema de classificação racial no interior do qual a cor adquire uma fluidez tamanha, a ponto de se modificar e circular conforme as posições ocupadas pelos indivíduos e pelos grupos na estrutura social.

É isso, me parece, o que Amado está tentando nos mostrar com a frase lapidar do romance Jubiabá, quando a certa altura, no contexto de uma greve, o narrador anunciava: “a greve é dos condutores de bondes, dos operários das oficinas e da força e luz (…) Tem até muito espanhol entre eles, muito branco (…) Mas todo pobre já virou negro”.

Não seria necessário destacar aqui a pertinência ainda atual dessa frase, justamente num momento em que as discussões em torno das cotas universitárias destinadas à população negra vêm colocando em pauta as intrincadas disputas políticas em torno das feições identitárias da sociedade brasileira.

Disputas essas que, hoje, estão sensivelmente assentadas em críticas às representações de um Brasil mestiço e racialmente harmonioso, das quais, ironicamente, o próprio Jorge Amado é acusado de ser um dos principais artífices.

Seja como for, apreensões mais atentas aos condicionantes sociais e históricos da produção amadiana seriam de grande valor para melhor nuançar aquelas explicações de feitio celebrativo, que, fazendo eco às visões a posteriori do próprio Jorge Amado, acabaram muitas vezes associando a aparição e a presença da população negra e mestiça em sua literatura ora como derivações mais ou menos mecânicas de sua origem baiana, ora como uma espécie de objetivação descontrolada e natural de seu “dom de simpatia” pelo povo.

Surgindo na literatura nacional num período de forte radicalização ideológica e no qual o campo intelectual brasileiro tendia a se representar nos mesmos moldes das divisões do campo político, o envolvimento de Jorge Amado com os assuntos afro-brasileiros não deixou de ser o retrato candente dos esforços mais abrangentes de apropriação simbólica de um segmento específico da população nacional, cujas aspirações e interesses os comunistas queriam atrelados às suas representações como mandatários do proletariado nascente e demais grupos oprimidos da sociedade brasileira.

GUSTAVO ROSSI é doutor em antropologia social pela Unicamp e autor de As cores da revolução – A literatura de Jorge Amado nos anos 30 (Annablume/Fapesp)


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