John Lennon, a última entrevista

John Lennon, a última entrevista

 

No Dakota, o vigia idoso, que mais parecia um objeto do que um auxiliar, diante do edifício cinza, fantasmagórico, abriu as portas do carro para nós. John saudou o homem pelo nome e, de modo apressado, mas gentil, sorriu para algumas fotos tiradas com um fã que estava esperando desde cedo, apenas para ter a chance de conhecê-lo. Após dois rápidos flashes da câmera, John se encami- nhou para a entrada às cegas. Piscando a fim de recuperar a visão, ele parou de repente. “Ops, querida, espero que você esteja com as chaves de casa. Eu me esqueci das minhas”.

Yoko não respondeu, mas usou suas chaves para chamar o elevador. John me olhou encabulado. “Eu nem precisava perguntar”, disse com um riso forçado.

Dentro do apartamento, John me guiou por um corredor coberto por fotografias até a cozinha, onde me disse para esperar enquanto ele se arrumava. Yoko tinha se dirigido para outra parte do apar- tamento. Enquanto eu olhava à volta da imensa cozinha recém-pintada, abastecida com potes de chá e café, especiarias e grãos, ouvi vozes de um quarto distante: uma criança dando risadas e um pai fingindo que lhe dava uma bronca.

“Então, seu malandro, por que ainda não foi dormir? Ah, ha! Muito bem, eu teria lhe dado um beijo de boa noite mesmo que você já estivesse dormindo, seu bobo.”

John voltou para a cozinha completamente revitalizado e, enquanto colocava uma chaleira de água para ferver, explicou que o filho, Sean, não estava acostumado ao novo horário dele e de Yoko, que ficavam até tarde trabalhando no disco. Antes desse projeto, John permanecia em casa praticamente o tempo todo.

Yoko entrou na cozinha vestindo um robe parecido com um quimono, e John preparou três xícaras de chá. “Bem, devemos começar?”, ele perguntou enquanto se sentava.

Olhei para ambos, esperando atentamente, e comecei. “A novidade é esta: John Lennon e Yoko Ono estão de volta”.

De imediato, John interrompeu e, gargalhando, cutucou Yoko. “É mesmo?”, ele brincou. “De onde?”. Sorri e continuei: “Ao estúdio, gravando novamente, pela primeira vez desde 1975, quando sumiram da vista do público. O que vocês fizeram durante todo esse tempo?”.

John virou-se para Yoko, gracejando. “Você quer começar, ou devo eu?”, ele perguntou.

“Você começa”, ela respondeu com firmeza.

“Eu mesmo? De verdade? OK…”. John se reclinou na cadeira, segurando firme a xícara de chá nas mãos, com energia. Enquanto observava o vapor que subia, começou.

Lennon – Eu andei fazendo pão.

Playboy – Pão?

Lennon – E cuidando do bebê.

Playboy – E quais os projetos secretos que guardava no porão?

Lennon – Você está de brincadeira? Não havia nenhum projeto secreto no porão. Pois pão e bebês, como qualquer dona de casa sabe, são um trabalho em tempo integral. Não deixam espaço para outros projetos.

Depois que eu fazia os pães, me sentia como se tivesse conquistado algo. Mas, quando via o pão sendo comido, pensava: Meu Deus! Será que não vou ganhar uma medalha de ouro, ou uma condecoração, ou qualquer outra coisa?

E trata-se de uma tremenda responsabilidade observar se o bebê está recebendo a quantidade adequada de comida e não se empanturra, e se está dormindo o suficiente. Se eu, no papel de mãe, não o colocasse para dormir e garantisse que ele tomasse banho às sete e meia, ninguém mais o faria. É uma tremenda responsabilidade. Hoje, entendo as frustrações daquelas mulheres por causa de todo o trabalho. E, no final do dia, não há um relógio de ouro à espera. […]

Playboy – Por que você se tornou um dono de casa?

Lennon – Era uma questão de curar a si mesmo.

Ono – Havia uma pergunta: O que há de mais importante em nossa vida?

Lennon – Era mais importante olharmos para nós mesmos e encararmos a realidade do que continuarmos uma vida de rock’n’roll ligada ao show business, subindo e descendo ao sabor dos ventos, tanto do próprio desempenho quanto da opinião do público sobre nós. E havia ainda mais uma coisa.

Vamos usar Picasso como exemplo. Ele apenas se repetiu até a morte. Não é uma questão de negar o imenso talento, mas os últimos 40 anos do pintor foram de repetições. Que não levaram a nada. Que nome se dá a isso? Viver dos próprios louros.

Você entende, em meus trinta e poucos anos, eu me vi numa posição em que, por algum motivo qualquer, sempre me considerei um artista, ou músico, ou poeta, ou o que quer que queiram chamá-lo, e a tal dor do artista sempre foi paga com a liberdade do artista. E a ideia de ser um músico de rock’n’roll de certa forma se adequava a meus talentos e mentalidade, e a liberdade era maravilhosa. Então eu percebi que não era livre. Eu estava encaixotado. Não era somente por conta do meu contrato, embora o contrato fosse uma manifestação física do estado prisional. Considerando isso, eu poderia muito bem ter optado por um emprego de nove às cinco, que estaria seguindo o mesmo caminho. O rock’n’roll tinha perdido a graça. Então, havia as opções padronizadas em meu ramo de atividade: ir para Las Vegas e cantar meus maiores sucessos — caso tenha alguma sorte — ou ir para o inferno, que foi o destino de Elvis.

Ono – Você pode se tornar um estereótipo de si mesmo.

Talvez estivéssemos nesse caminho. Isso era uma coisa que não desejávamos fazer. É o que mais desprezo no mundo artístico. Você pega uma pequena ideia como “tudo bem, sou um artista que desenha círculos”. Então se agarra a ela e a transforma em seu rótulo. Você consegue uma galeria e patrocinadores e tudo o mais. E essa passa a ser a sua vida. No ano seguinte, talvez, você faça triângulos ou qualquer outra coisa.

É uma enorme pobreza de ideias. Assim, se você seguir em frente e fizer isso por cerca de dez anos ou mais, as pessoas se dão conta de que você é alguém que durou dez anos e merece um prêmio [risinhos]. Essa rotina é simplesmente ridícula.

Lennon – Você recebe o grande prêmio quando desenvolve câncer, e passou vinte anos desenhando círculos ou triângulos.

Ono – E, então, você morre.

Lennon – Certo. O maior prêmio de todos é quando você morre – um prêmio realmente grande por morrer em público.

A Última Entrevista de John Lennon
David Sheff
Trad.:Vania Cury

Nova Fronteira

(3) Comentários

  1. Excelente. Mosta a visão panorâmica sobre a vida, com um detalhe: de alguém que estava num estágio que já não precisava de um emprego ou de sucesso, apenas pelo dinheiro.

  2. Muito interessante a entrevista, até o momento que chega no comentário final dela, que realmente, poderíamos ter passado sem.

  3. Impressionante a visão de John Lennon sobre o estado das coisas naquela ocasião; visão de gênio, pois trata-se de antever o futuro, ou seja, o nosso presente musical que – de Madonna a Bob Dylan – sobrevive do falso brilho da indústria do entretenimento, movida unicamente por milhões de dólares.

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Novembro

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