Jane Austen ‘escondeu’ críticas sociais em seus romances, diz pesquisadora

Jane Austen ‘escondeu’ críticas sociais em seus romances, diz pesquisadora
Jane Austen, cujo bicentenário de morte se completa nesta terça (18) (Arte sobre obra de Hulton Archive/Reprodução)

 

 

Quando se fala em Jane Austen, as palavras “romance” e “superficial” podem vir à tona. No entanto, cada vez mais críticos tem visto na autora uma mulher à frente de seu tempo, acostumada a tecer críticas sociais inteligentemente escondidas em histórias de amor.

É o que defende a pesquisadora Helena Kelly, professora de literatura em Oxford e autora do recém-lançado Jane Austen, the secret radical, livro que questiona algumas “verdades universalmente conhecidas” sobre a biografia da autora e explora sua relação com temas como a abolição da escravidão, o feminismo e a Igreja Anglicana.

“Muitas pessoas leem Jane Austen apenas pensando no romance e no protagonismo feminino, que de longe não são os únicos ingredientes de sua obra”, afirma Kelly à CULT, em entrevista por e-mail.

Austen deixou apenas algumas cartas pessoais – nas quais se baseiam grande parte dos materiais sobre sua vida – e sete romances: Razão e sensibilidade (1811), Orgulho e preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de Northanger (1818), Persuasão (1818) e Lady Susan (1871).

“As pessoas aceitaram por muito tempo como fatos coisas que nós não temos evidências o suficiente para afirmar com certeza”, diz a autora. “Esse silêncio de Austen sobre sua própria vida e sobre sua obra me incomoda, e por isso escrevi o livro.”

Aos olhos da pesquisadora, Jane Austen deixa de ser uma escritora focada nas histórias de amor ou refém dos dramas domésticos femininos para tornar-se uma hábil comentadora política, capaz de deixar críticas escondidas entre as intrigas dos romances que publicava. Como exemplos, cita a crítica à escravidão em Mansfield Park, e um comentário sobre as falhas da Igreja em Orgulho e Preconceito.

Para marcar o bicentenário da morte de Jane Austen, que se completa nesta terça (18), seu rosto passa a estampar as notas de 10 libras na Grã-Bretanha. A data também será lembada com conteúdos inéditos: as editoras espanholas dÉpoca Editorial e Alba publicam, respectivamente, publicam o livro Cartas (coletânea de correspondências da autora) e Amor e amizade (seleção de textos de sua juventude).

Leia abaixo a íntegra da entrevista de Helena Kelly à CULT.

A pesquisadora Helena Kelly, autora de 'Jane Austen, secret radical' (Foto Mim Saxl / Divulgação)
A pesquisadora Helena Kelly, autora de ‘Jane Austen, secret radical’ (Foto Mim Saxl / Divulgação)

CULT – Na sua pesquisa, você disse que descobriu que “quase tudo o que se sabe sobre Jane Austen está errado”. O que é “tudo”?

Helena Kelly – O que digo que está “errado” são algumas certezas consolidadas sobre a biografia de Jane Austen, que têm sido aceitas por muito tempo como fatos, mas que na verdade são informações sem evidências. O que se sabe sobre o relacionamento conturbado entre Austen e Tom Lefroy [conhecido como o primeiro amor da autora], por exemplo, é baseado em apenas três cartas, todas atualmente desaparecidas. Só uma delas chegou a ser lida por alguém de fora da família da autora, e isso só aconteceu no início do século 20. Outra lenda conhecida sobre Austen diz que ela, apesar de nunca ter se casado, ficou noiva de Harris Bigg-Wither, um amigo da família, por apenas uma noite, mas também há poucas evidências para sustentar isso. Outro exemplo, ainda, é a suposta opinião de Austen sobre o romance Emma: diz-se que a autora achava que ninguém além dela gostaria da heroína – mas nós só sabemos disso por um sobrinho dela, pois ela nunca afirmou ou escreveu isso. Esse silêncio de Austen sobre sua própria vida e sobre sua obra me incomoda, e por isso escrevi o livro. Claro, é frustrante saber tão pouco sobre Austen, mas isso não significa que deveríamos dar tanta importância a informações de segunda mão e a histórias potencialmente não confiáveis.

O que mais a surpreendeu durante a pesquisa?

Me surpreendi quando notei referências muito frequentes e óbvias à escravidão em Mansfield Park. Qualquer pessoa que soubesse ler na época sabia que Lord Mansfield era presidente do Supremo Tribunal inglês, e que contribuiu imensamente para a abolição do tráfico de escravos. Seria impossível não fazer a ligação. Além disso, a Sra. Norris, vilã da história, teve o nome inspirado em Robert Norris, um infame traficante de escravos. Eu já estava convencida de que havia ligações com o tema no romance, e muitos críticos já haviam apontado isso, mas quando eu me foquei em encontrar essas referências, me pareceu clara a crítica de Austen à escravidão. Isso me deixou perplexa, porque muitas pessoas leem sua obra apenas pensando no romance e no protagonismo feminino, que de longe não são os únicos ingredientes de seus escritos.

O que era tão radical em Jane Austen e por que isso foi mantido em segredo?

Não estou tentando sugerir no livro que a autora esteve à frente em manifestações ou em barricadas, ou que ela agisse no dia-a-dia de forma muito diferente das mulheres de sua época. Eu digo que ela é “radical” levando em conta o contexto em que ela viveu e no qual escreveu, os anos 1790. Ela se interessava em explorar as normas, os costumes e os dogmas da própria cultura inglesa de classe alta, e a desconstruí-los com sua escrita para ver se eles eram de fato funcionais.

De que forma essa radicalidade se expressava nos romances de Austen? 

Acho que o maior exemplo dessa subversividade é a forma livre pela qual a autora fala de escravidão em Mansfield Park – e isso não sou eu falando; esta é uma linha crítica que floresce há pelo menos 20 anos dentro das análises da literatura inglesa. Quase tudo que é mencionado no romance faz o leitor pensar sobre o assunto da escravidão, um sistema que ainda existia em muitas partes do mundo quando o livro foi publicado, em 1814. Não é coincidência que Mansfield Park foi o único livro de Austen que não ganhou resenhas ao ser publicado – parece que, na época, houve um silenciamento calculado ao redor da obra.

Pode ser um anacronismo colocar a escritora em um papel de “militante”? 

No livro, lembro o tempo todo que Austen não é uma mulher do século 21: ela viveu no final do século 18; tinha apenas treze anos durante a Revolução Francesa. Ela não era militante. Mas muito do que ela escreveu, e muito do que ela observou, estava alinhado ao que era considerado radical naquela época: o feminismo incipiente, a abolição da escravidão, os abusos perpetuados pela igreja e até o evolucionismo. Ela faz críticas à Igreja da Inglaterra, por exemplo: Mr. Collins de Orgulho e Preconceito, que é um clérigo – o único do livro -, é extremamente chato, convencido e até frágil, o que pode ser lido como uma crítica à igreja. Mas não acredito que ela fosse ateia ou que estivesse tentando derrubar a instituição; o que se vê é que a autora percebia falhas ali e queria corrigi-las de alguma forma.

Austen viveu em um contexto em que mulheres eram afastadas da política e da vida pública. Como ela conseguiu ser publicada e ganhar tanto prestígio, mesmo expondo suas críticas?

Dois fatores contribuíram para Jane Austen passar pelo crivo machista daquele contexto: primeiro, porque era mestre em esconder seus comentários e suas críticas em histórias românticas, enquanto outras eram criticadas por tornar as próprias críticas explícitas demais. Austen, por outro lado, colecionava críticas positivas, e acho que isso me cativa sobre ela – foi capaz de subverter o sistema, e “enganar” a crítica para fazer circular o que pensava. O segundo fator que permitiu sua publicação é o fato de que pelo menos três de seus romances – A Abadia de Northanger, Razão e sensibilidade e Orgulho e preconceito – foram publicados muito tempo depois de terem sido escritos, às vezes com uma década de atraso, o que apagava ou descontextualizava muitas de suas referências políticas, fazendo com que parecessem apenas romances superficiais. Não eram. Isso fica muito claro em Mansfield Park, no qual o tema político não tinha como ser calado. 

Por que a maior parte das pessoas lê Austen apenas como uma autora romântica, sem compreender o lado político e crítico?

Ela realmente escreveu duas das histórias românticas modernas mais famosas de que se tem notícia: Orgulho e Preconceito e Persuasão. As pessoas não estão erradas em considerá-la uma grande autora de histórias de amor – mesmo que algumas de suas tramas sejam um pouco perturbadoras para os dias atuais, como casamentos entre primos ou homens apaixonados por meninas de 13 anos. Mas acredito que os romances de Austen podem ser políticos e românticos, essas duas características não são excludentes. Só acho que é possível, e que deveríamos lançar este olhar mais crítico sobre sua obra, e entender que ela não é apenas romântica.

Por que deveríamos ler Jane Austen hoje em dia? O que ela tem a dizer, especialmente para as mulheres?

Porque ela é uma escritora brilhante! E porque ela mostra que o pessoal é político e que o político é pessoal. Ela leva experiências de vida femininas a sério – o que, infelizmente, poucos autores fazem, mesmo hoje em dia -, e mostra como uma baronesa, por exemplo, era parecida com uma empregada doméstica em termos de feminilidade, desejos e exclusão por gênero.

 

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