Jacarezinho, o conflito de interpretação e a sentença da bala

Jacarezinho, o conflito de interpretação e a sentença da bala
Protesto de moradores pede justiça para as vítimas de Jacarezinho (Foto: Marcia Folleto)

 

Vemos tudo enquadrado

Os pesquisadores da área de comunicação chamam de enquadramento ou frame, mas podem chamar de “narrativa” se quiserem, visto ser esta a expressão em voga, embora não seja precisa. Todo mundo sabe que adotamos diferentes pontos de vista quando observamos ou avaliamos os fatos. Pois bem, o que resulta do emprego de um ângulo de abordagem e da adoção de um ponto de vista é um quadro, um frame, uma perspectiva. Por definição, um frame, um enquadramento, não nos dá toda a paisagem, impondo os limites do que conseguimos ver, mas na nossa experiência nos parece sempre aquela janela pela qual olhamos o mundo está tudo o que poderia ser visto. Parece que são os fatos ou os problemas em si mesmos, mas na verdade são o resultado de um conjunto de decisões, mais ou menos conscientes, que nós fazemos ou que outros fizeram antes de nós ao escolher um ponto de vista ou destacar mais um aspecto do que outro.  

Há frames sociais, compartilhados a partir dos nossos grupos e sistemas de referências, inclusive a política. E como há. Geralmente não nos damos conta de que vemos tudo enquadrado, e que não fomos nós que enquadramos as coisas daquele modo, mas o nosso grupo de referência. Por isso mesmo, em geral não consideramos que a adoção de um frame interfira em nada na objetividade do relato que consideramos nem na avaliação do fato que está sempre implicado nele. Exceto, naturalmente, quando o frame adotado por quem está contando um acontecimento ou por que está julgando uma ação for divergente do nosso. 

Um frame, contudo, inclusive os frames sociais, sempre envolvem interpretação, quer a gente esteja consciente disso ou não, pois decorre da seleção e de alguns aspectos do fato enquadrado e da decisão sobre que elementos devem ser destacados. E ao selecionar umas dimensões, naturalmente, descartamos outras ou as deslizamos para o segundo plano. 

Selecionar e enfatizar têm um propósito: sustentar uma definição específica e uma distinta avaliação moral de um problema ou fato, além de, de algum modo, interpretar as suas causas e soluções. Um frame, portanto, sempre é a base para um argumento sobre a natureza de um problema, sobre o que o causou, de quem é a culpa ou como pode ser resolvido. Tudo isso, em geral de forma implícita, pois, afinal, os frames são como os óculos, no sentido de que não são feitos para serem vistos e sim para que vejamos através deles.  

Por outro lado, frames podem ser implícitos, mas não são banais. Eles organizam nossa posição política e nossa decisão moral diante dos fatos, mobilizam pessoas, reforçam identidades sociais e produzem efeitos sobre a realidade. Bancadas, partidos e facções frequentemente se formam e se decidem em função do compartilhamento de uns poucos enquadramentos sobre os principais problemas sociais, como diagnosticá-los e como resolvê-los. Convém, então, não subestimar sua força e o seu alcance político. Além disso, nem todo mundo está pronto para esta conversa, mas a adoção de certos frames pode atrasar e comprometera solução de determinados problemas sociais. Nada pode ser social e politicamente tão danoso do que quando um frame equivocado se torna o enquadramento hegemônico de um problema social.

Enquadrando uma chacina

Na semana passada, vimos os relatos sobre uma operação policial no Jacarezinho, bairro de pobres e miseráveis do Rio de Janeiro, que terminou com pelo menos 28 mortos. 27 moradores e um policial. Uma taxa de letalidade chocante mesmo considerando-se o quanto se mata em operações conduzidas pelas polícias do Rio. Os jornais informaram que a operação durou quase nove horas e que foi autorizada porque a polícia teria descoberto que criminosos estavam recrutando crianças, durante a pandemia, para atuar na linha de frente do tráfico. Depoimentos de moradores, por outro lado, refletia o horror da experiência: tiros, granadas e mortes durante um dia inteiro, passageiros feridos no metrô, população pedindo socorro ao Ministério Público e narrando violações de todos os tipos, além de execuções. 

É claro que um fato desses iria mobilizar a sociedade brasileira e ativar os enquadramentos políticos que a definem. Segurança pública e violência urbana são dois dos temas sociais e políticos mais explosivos. Não apenas porque se referem a dois fenômenos que vêm aumentando numa escala que parece não ter fim, mas por infernizar diretamente a vida da maior parte dos brasileiros. 

Por isso, no afã de compreender, avaliar e solucionar o problema, as pessoas se dividem na adoção de diferentes narrativas. O acontecido no Jacarezinho foi um laboratório neste conflito de interpretações, mas que também é um conflito de posições ideológicas, decisões de voto, preferências por políticas públicas e identificação política.  Não é à toa que as casas legislativas estão entulhadas de mandatários provenientes das forças de segurança ou em vinculação com milicianos, ou que um contingente expressivo dos apoiadores do atual presidente da República esteja vinculado a este ambiente. 

No caso em tela, vimos claramente como o conflito político se manifestou como uma guerra de frames. Nós vimos claramente como o conflito político se manifestou como uma guerra de narrativas. E vimos igualmente como a direita e os progressistas se apegaram aos seus roteiros tradicionais, sem ceder um milímetro das próprias convicções ou modificar as próprias premissas dos últimos anos. 

Minto. Há uma modificação visível no frame progressista, que consiste em acrescentar à classe social das vítimas uma ênfase notável na questão racial. Não basta reconhecer que são pobres e por isso a polícia se permite o que não se permitiria em um bairro nobre, tem que ter havido ódio racial. Eram negros, por isso os mataram, diz o frame. 

A base das duas narrativas consiste em dar ênfase a um julgamento sobre as pessoas que foram mortas pela polícia. Para a direita é claro que se tratava de criminosos. Para os progressistas eram “pretos e pobres da periferia”. Um oceano de julgamentos morais separa “criminosos” de “pretos e pobres”, assim como separa malvados bandidos e vítimas vulneráveis, ou os que nos matam na violência urbana e os que matamos pela mão do Estado na brutalidade policial. São as mesmas pessoas, enquadradas de um modo inconciliavelmente diverso.

Enquadradas as vítimas, é preciso um frame para os que os mataram. Para a direita, os que dispararam eram heróis que correram risco para levar o braço pesado da lei e da ordem em um ambiente hostil. Para os progressistas, foi só a polícia mais violenta e discriminatória do mundo em mais um dia de chacinas contra negros, pobres e miseráveis da periferia das grandes cidades brasileiras. Para os moradores, cujo frame é frequentemente ignorado pelos outros dois, foi só a alternância pendular entre a bota e a bala dos seus algozes de sempre, os traficantes e os policiais, com a diferença de que quando os últimos chegam não fazem a menor diferença entre bandido e trabalhador, entre os lares das pessoas e os antros de traficantes, entre crianças e assassinos. 

O quadro baseado em julgamento moral dos mortos é desvantajoso para os progressistas, porque ele implicitamente admite que se os mortos fossem aliciadores e traficantes não se teria nada mais a objetar. Ora, seria aceitável uma polícia, em qualquer lugar do mundo, entrar em uma favela e matar 27 pessoas? Na verdade, o que torna tudo condenável é a natureza da ação do Estado, que não pode permitir que as suas forças de segurança matem 27 pessoas numa operação banal. Isso é condenável e escandaloso. 

Os progressistas, principalmente os de esquerda, e principalmente a esquerda identitária, acham que se acrescentarmos camadas de inferiorização nas vítimas, a indignação moral será irresistível. Um erro, porque “o outro lado” já escolhe outro frame para chamar de seu. O resultado dessa aposta na qualidade moral das vítimas é um enquadramento que vacila à primeira publicação dos jornais que mostram que a quase totalidade dos mortos não tinha uma ficha policial limpa. É então que, com o frame em crise, nada mais resta do que acusar o jornalismo de “criminalizar a população negra”. E mais um tiro no pé na guerra ideológica acaba de ser disparado.

Mas a direita também é prisioneira do próprio roteiro, que tem uma infinidade de pés de barro. Para que tanto sangue e tantos corpos se justificassem de algum modo, seria preciso acreditar que alguma coisa de excepcional se conseguiu naquela operação. Acontece que ninguém, nem moradores nem a opinião pública, nem mesmo os policiais envolvidos, acreditam que o tráfico cessará ou foi golpeado de morte, que o Estado está retomando sob o seu controle a favela do Jacarezinho, ou que tenha acontecido qualquer outra coisa além de um espetáculo de carnificina e terror. Foi sangue demais para apenas mais uma operação de enxugamento de gelo. 

Além disso, há uma reprovável visão, aqui embutida, sobre os lugares onde moram pobres e miseráveis.  Não são bairro, mas covis de marginais. Lá não moram cidadãos, só bandidos. Por isso os policiais geralmente invadem e arrebentam casas nas favelas, como se domicílios não fossem, nem estivem sob garantias constitucionais. 

Por fim, tem o problema do julgamento sobre a natureza dos mortos. Uma matéria dos repórteres Júlia Barbon e Gustavo Queirolo, da Folha de S.Paulo (12 de maio), mostra que dos 27 mortos, apenas três eram alvo de mandados da operação, embora quase todos tivessem registros criminais. Mas isso pouco importa para o enquadramento adotado de que a bandidagem tem mais é que levar chumbo. Na verdade, para essa gente, bandido não é a pessoa condenada depois de um processo e a partir de uma decisão da Justiça. Bandido, criminoso, vagabundo é o corpo que a bala de um policial alcança. Neste roteiro e numa brutal inversão de tudo, levar um tiro do homem da lei é prova suficiente da delinquência do morto. O julgamento é dado pelo chumbo, a sentença quem dá é a bala.

Pelo visto, os temas do crime e da segurança pública continuarão dividindo os brasileiros. Nenhum dos frames em voga tem um diagnóstico em que se possa confiar ou um prognóstico de que se possa esperar uma solução para o problema. São apenas discursos e narrativas, que dizem muito sobre os que os sustentam, mas que dificilmente ajudam a encontrar saídas para o inferno da vida urbana brasileira. Não há coisa mais perigosa do que um grave problema social mal enquadrado. 

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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