A República dos tatuadores

A República dos tatuadores
Arte sobre foto de jovem que teve a testa tatuada após ser acusado de roubo no ABC (Reprodução/Arte Revista CULT)

 

 

“Meu filho não é boi, não é animal. Ele não é bicho.” A frase da mãe do adolescente que teve a testa tatuada com a frase “sou ladrão e vacilão”, resume a operação mais imediata dos torturadores do rapaz de 17 anos do ABC: desumanizar, infringir a dor e gozar com esse sofrimento.

No vídeo, o prazer do tatuador/torturador se expressa na frase que se ouve antes de começar a marcar a testa do menino, quando diz “vai doer muito” e solta uma gargalhada. O garoto aterrorizado não reage em momento algum ao sadismo e responde de forma automática as perguntas feitas para humilhá-lo.

A sessão de tortura é realizada em tom de euforia e escárnio por Maycon Wesley Carvalho dos Reis, de 27 anos, que além de ter tatuado a testa, cortado o cabelo, amarrado as mãos e os pés do jovem (um suposto ladrão de bicicleta), exibe tudo para ser filmado pelo celular do vizinho, Ronildo Moreira de Araújo, de 29 anos, e difundido nas redes sociais. Não basta marcar na pele e fazer sofrer, é preciso execrar publicamente e fazer ver midiaticamente.

É todo um ritual sádico que conecta a destruição e sofrimento reais da tortura com a morte simbólica viralizada pelos Whatsapp, YouTube, Facebook, Twitter, que amplificam ao máximo a dor e o gozo, formando uma comunidade virtual de justiceiros. O crime de tortura é amplificado por milhares de odiadores que se juntam para legitimar a ação!

O que eles alegam em sua maioria? É que eles foram privados de direitos e de justiça e por isso infligem a dor e o castigo a todos os que “merecem”. Ninguém pode ter “direitos” assegurados se eu mesmo não os tenho. Direitos humanos se tornaram no Brasil sinônimo de privilégios! Da mesma forma que as cotas raciais e sociais e todas as políticas afirmativas. Numa inversão perversa e vingativa, incapaz de empatia e incapaz de enxergar as vulnerabilidades sociais.

Mulheres, negros, LGBTs,  indígenas e a população carcerária são vistos, numa distorção perversa, como “privilegiados”. A justiça é tida como morosa e falha, mesmo que as prisões estejam superlotadas e a população carcerária não pare de crescer! Ou seja, a justiça, a polícia funcionam muito bem, mas para os pobres e minoras, os mesmos que são objeto da tortura e/ou violação dos odiadores porque “não vai dar em nada”, “não tem família, não tem ninguém”.

É verdade que a reação de horror e repúdio ao ato de tortura tornada “justiça” também se viralizou no caso do tatuador, com a “vaquinha eletrônica” em tempo real arrecadando dinheiro para remover a tatuagem da testa do adolescente do ABC. Mas o ato de defesa do rapaz também foi sabotado e virou um tribunal e lugar para novos linchamentos, agora entre as comunidades que se confrontam na defesa do jovem torturado e dos torturadores!

O criador da campanha na internet chegou a sofrer ameaças, virando ele mesmo alvo de novas mensagens de ódio nas redes sociais. Um grupo propôs uma vaquinha para angariar fundos para defender o torturador/agressor, tornado vítima! A polarização se estende ao infinito.

Trata-se de um ciclo que se esgota em sim mesmo: comoção, indignação e nesse caso uma ação pontual e muito significativa de apoio a vítima, mas que depois irá desaparecer no turbilhão de escândalos em série, como tantos outros casos, passando da comoção ao silêncio e indiferença.

A sensação de impotência é muito forte e diante de uma justiça que não se realiza plenamente ou cuja velocidade é incompatível com o “presente eterno” das redes e a experiência de tempo acelerado que vivemos. O clamor por castigo imediato e justiçamento online faz parte dessa demanda de satisfação em tempo real, um gozo imediato, que é amplificada com a potência de difusão online.

O sentimento é um só, o tatuador/torturador não tem nenhuma dúvida que está fazendo “justiça” e quem assistir ao vídeo terá tanto prazer quanto ele! Essa certeza tem um fundamento: as ações cometidas ali, as ideias ou as opiniões emitidas ali não foram inventadas pelo seu autor, elas “estão aí”, circulam socialmente à luz do dia, são vocalizadas em programas de TV por parlamentares, nas mídias, de forma cada vez mais explícita, e se expressam como parte de um mecanismo, como se o torturador estivesse obedecendo a um desígnio!

As ações concretas de linchamento, tortura,  humilhações, as ameaças verbais nas redes são um fato social aberrante cada vez mais “naturalizado” e memetizado. A opinião, a ideia ou o desejo de um acaba se tornando a opinião, a ideia ou o desejo de muitos. Comunidades de “pertencimento” se formam em torno das posições tomadas.

Desrepressão brutal

O ódio produz pertencimento e comunidade, o que já sabíamos e experimentamos em diferentes escalas e períodos da história, mas que se potencializa nas redes como uma experiência catártica e que busca visibilidade máxima. O discurso do ódio tomou para si as regras dos haters das torcidas de futebol e também da produção da pornografia, em que é preciso exibir e fazer ver os atos de violência na sua crueza e espetacularidade. São performados para serem exibidos nas redes sociais.

O estrago está feito e irá se repetir em um eterno retorno enquanto não houver algum tipo de pedagogia, obstáculo ou novo consenso social que aponte esse tipo de prática, os discursos de ódio, como intoleráveis, no momento em que sua reprodutibilidade massiva pelas redes potencializaram essas práticas. Foi como abrir um bueiro em que a lama, o sadismo, a raiva, as frustrações, os mais baixos instintos são desrepresados em fluxo contínuo.

Essa desrepressão brutal sempre foi tolerada em momentos coletivos catárticos, nas torcidas de futebol e na própria sexualidade, inclusive na cultura do estupro, essa ainda mantida “velada” e pouco explicitada socialmente. Tortura e violação andam juntas.

Cultura da violação

A cena da tortura se assemelha e muito com a da violação sexual e com a cultura do estupro, quando o prazer e erotismo tornam-se violações que humilham e destroem. O desejo aparece como desejo de dominação e submissão.

A estética da tortura e do linchamento é a mesma da violação: exibir e evidenciar, fornecer o que aqueles que a consomem querem, as imagens, o ato, a explicitação, o gozo com a evidência do assujeitamento.

Porque esse gozo com a tortura e com a violação produz um erotismo sádico que é socialmente observado e compartilhado. O próprio Estado brasileiro ao tolerar o assassinato e a morte cotidiana de forma epidêmica nas periferias, na guerra contra os pobres, ao tolerar os assassinatos e massacres nas prisões, inspira e naturaliza o sadismos de massa e o devir-fascista dos muitos.

Sadismo de massa

O ódio nas redes viraliza e se difunde porque criam um objeto acessível para ser consumido e possuído de forma imediata. O que era considerado vergonhoso ou se tinha dúvidas de que seria publicamente repudiado ultrapassou uma fronteira, franqueou-se esse limite do segredo e do privado. Enquanto se exercitou ou se consumiu o ódio, a violência e as violações privadamente, essa impunidade em privado foi permitida desde que negada publicamente. Agora, o ódio e as violações aos direitos, as violações à própria liberdade de expressão são comemoradas publicamente.

E mais, vemos em ação mecanismos de transferência de sentimentos odiosos, raiva, desejo de destruição para grupos, pessoas, minorias, mulheres, negros, LGBTs, indígenas, grupos vulneráveis que evidenciam uma extrema incapacidade de lidar com os direitos dos que estão em situação de vulnerabilidade social, psíquica, existencial.

Mais do que isso, esses grupos vulneráveis portadores de direitos são vistos como privando o “cidadão de bem” de direitos próprios. São vistos como usurpadores dos direitos. Como se houvesse uma hierarquia moral entre os que podem ou não “merecer” direitos. Direitos no Brasil se tornou sinônimo de privilégio, logo, de injustiça!

A ideia abstrata de “direitos humanos”  não comove

Dito de outra forma, mais e mais violência se tornam necessárias para aplacar os desejos de justiçamento de milhões progressivamente dessensibilizados com o sofrimento dos outros. Diante da impotência real e descrença na justiça, parte-se para atos desmesurados de justiçamento e ostentação de poder e afirmação de superioridade, hierarquia, poder de assujeitamento.

O espetáculo da tortura e dos linchamentos virtuais nos ensinam sobre o poder, sobre a excitação e prazer em infligir o sofrimento, em o controlá-lo e violá-lo em nome de uma moralidade!

Mas se moralidade significa acreditar no bem e no mal absolutos, política significa entender e experimentar a empatia, saber quem tem poder e quem é impotente e vulnerável em uma situação, mesmo se for um criminoso. O bem e o mal são ideias morais, abstratas. Torturar, violar, linchar, mesmo que virtualmente, são práticas concretas e crimes.

A regressão infinita diante dos sujeitos do crime é assustadora e patológica. A condenação moral de alguém legitima hoje sua destruição. É como se a “pena de morte” recebesse seu aval real e simbólico e fosse exercida nas redes de forma desreprimida. Uma desrepressão brutal e regressiva que hoje esgarça o tecido social.

Mudar a cultura para dissipar a nuvem tóxica

Que tipo de pedagogia pode mudar esse quadro assustador? O Ministério Público Federal, em parceira com a ONG Conectas, chegou a propor uma Central Nacional de Denúncias em tempo real em torno da violação dos direitos humanos, o que poderá facilitar o combate aos “crimes cibernéticos”, multiplicando a capacidade de reação.

Essa é apenas a ponta do iceberg, a velocidade máxima na produção e no combate pontual aos crimes. O mais difícil hoje é produzir uma mudança na cultura que gestou essa nuvem tóxica, um ambiente em que se pode dizer e performar praticamente qualquer coisa.

Os princípios abstratos e absolutos que organizam as noções de justiça e democracia se tornaram insuficientes. A ideia abstrata de “direitos humanos” não comove ninguém. Os torturadores e violadores usam essa fraqueza para multiplicar o ódio. A questão é que a “justiça” não garante a igualdade dos direitos. A justiça é uma abstração, uma ideia moral, assim como o bem e o mal. Precisamos de empatia, mudar as práticas!

O que cada grupo e diferentes grupos vulneráveis reivindicam hoje é que a justiça saia das suas abstrações que reforçam a ideia dos “homens de bem”, esse cidadão de bem que se acha superior aos demais e por isso tortura, odeia e viola!

Os grupos que têm cotidianamente seus direitos violados precisam visibilizar suas histórias, experiências e sensibilidade, é empatia, essa percepção das injustiças e violações no cotidiano, que podem dar sentido a abstração dos direitos humanos. Os marcos legais nesse campo não foram apropriados ou são desconhecidos pelos alvos de suas políticas.

A mídia e os processo de comunicação guardam hoje uma relação direta com a visibilidade, aceitação e rejeição dos mais diferentes grupos sociais em relação às questões da diversidade cultural e dos direitos humanos.

A defesa abstrata dos direitos humanos virou algo indesejável, pejorativo e negativo no Brasil. Mais do que isso, virou sinônimo de “radicalismo” e pensamento “de esquerda”, uma acusação usada para validar discursos e atos de desumanização e de violação.

Os meios de comunicação podem desempenhar tanto um papel de promoção quanto de violação dos direitos de grupos sociais, que são diferentes e precisam ser atendidos de forma singularizada. É aí que temos visto os avanços. A mudança real e concreta nas falas das mulheres, dos jovens negros, da comunidade LGBT, das comunidades em situação vulnerável é que podem operar um comum, reconfigurando o sensível.

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