Insubmissas e perplexas
Welington Andrade
“Pensar reúne tudo”.
Heráclito.
O mais recente espetáculo do grupo Arte Ciência no Palco, Insubmissas, dirigido por Carlos Palma, priva de um caráter de despojamento um tanto quanto enganoso, se o tomarmos somente como um libelo contra a opressão masculina que as mulheres sofrem desde sempre em todos os campos, aqui no caso, especificamente, na esfera da ciência. Tudo parece apontar para essa questão de gênero, mas o belo texto que Mendes concebeu, adaptado, por sua vez, ao intimismo camerístico típico do Teatro de Arena, muito bem explorado pela direção de Palma, reserva ao espectador outras possibilidades de sentido.
O mote da peça baseia-se livre e assumidamente em Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre (– Bertha: Se você se inspirou em Houis clos, está faltando uma mulher. – Hipácia: Houis clos? – Bertha: Uma peça de teatro em que os personagens são reunidos entre quatro paredes, sem chance de escapar). Uma enigmática voz masculina reúne em espaço e tempo indefinidos quatro mulheres que se destacaram na área da ciência: Hipácia (370-415 d.C.), líder da escola neoplatônica de Alexandria, vítima da intolerância cristã que a levou a ser apedrejada por ordem do patriarca Cirilo; Marie Curie (1867-1934), a física francesa de origem polonesa que foi a primeira mulher titular de uma cátedra na Sorbonne, prêmio Nobel de Física em 1903 e de Química em 1911; Bertha Lutz (1894-1976), bióloga e advogada brasileira, ativa defensora da emancipação das mulheres; e a físico-química inglesa Rosalind Franklin (1920-1958), cujos estudos em cristalografia foram decisivos para a descoberta do DNA.
Envoltas por dezenas de pedras suspensas no ar (a cenografia é assinada pelo próprio diretor), essas quatro figuras de temperamentos e estilos tão diferentes são obrigadas a conviver entre si e a conhecer um pouco mais as trajetórias pessoais e profissionais umas das outras. O tom narrativo-descritivo que cada uma emprega para contar sua própria história acaba se misturando ao registro dramático garantido pela entrada em cena de um quinto elemento feminino, que irá se revezar, respectivamente, nos papeis da filha de Marie Curie, Irene; da criada de Hipácia; e da mãe de Rosalind.
Reclusas nesse espaço tão diminuto, nessa casca de noz, e fazendo uso de palavras empenhadas por meio das quais sentir-se-ão soberanas do espaço infinito, as mulheres insubmissas a que Oswaldo Mendes deu forma, antes de propriamente militar em favor de um simpático, mas um tanto quanto inócuo, discurso feminista, parecem mais dispostas a se expressar por meio dos princípios noturnos-femininos que regem o pensamento originário, mitopoético (praticado pelos pensadores – conhecidos como pré-socráticos – que viveram aproximadamente entre fins do século VII e meados do século V. a.C., de cujas inquirições nasceram a filosofia e a ciência), às voltas com a perplexidade do próprio ato de pensar e questionar. Se o espectador vislumbrar essa abertura nas falas das personagens –, latente, discreta, talvez até mesmo intimidada pela questão de gênero – certamente irá usufruir melhor do espetáculo, em caráter estrito, e da proposta do grupo Arte Ciência no Palco, em sentido geral, uma vez que a insubmissão aqui tem mais potencial epistemológico do que sociológico.
Enquanto a atuação do homem nos domínios da ciência está associada a grandes realizações que cedo ou tarde irão se converter em uso indiscriminado da técnica e da tecnologia, alheio às agressões à espécie humana, ao meio-ambiente e a todo o planeta, enfim, as mulheres cientistas retratadas na peça dedicam-se a questões menos empreendedoras. Elas querem pensar, refletir, inquirir e, para isso, mergulham suas principais preocupações nas águas caudalosas e profundas da ética – essa meia-irmã da filosofia e da ciência, criada em ambiente essencialmente feminino. Talvez, as personagens sejam mais pensadoras da ciência do que propriamente cientistas, já que na peça não defendem com altivez ou arrogância a objetividade dos conhecimentos que adquiriram, e sim o vigor das reflexões que nunca as abandonou.
Sobressaem no horizonte desses questionamentos duas atitudes correlatas que acabam por orientar o estilo de interpretação das atrizes em cena: de um lado, a perplexidade é transformada em eloquência; de outro, tal eloquência se converte em apelo e exaltação. Adriana Dham (Bertha Lutz), Leticia Olivares (Irene, mãe, criada), Monika Plöger (Rosalind Franklin), Selma Luchesi (Madame Curie) e Vera Kowalska (Hipácia) são atrizes muito experientes cujos talentos sustentam tal proposta. Encenada em um edifício teatral emblemático para a cultura brasileira, testemunha de mais de seis décadas de história (o Teatro de Arena de São Paulo foi fundado em 1953 e mudou-se no ano seguinte para o local que desde então passou a ser seu domicílio fixo: o número 94 da rua Theodoro Baima, no bairro da Consolação), Insubmissas parece não querer olvidar essa longa trajetória. Assim, texto, direção e interpretação valorizam um empenho e uma loquacidade tratados, hoje, como um grande pecado para a cultura neoliberal: a ideologia. Vale lembrar que Oswaldo Mendes, Selma Luchesi e Carlos Palma, os integrantes mais velhos do grupo, nasceram em torno da década de 1950, quando o teatro brasileiro transformou o palco em uma grande ágora na qual ganhou voz a discussão da realidade circundante.
Se procurar compreender, antes de simplesmente rechaçar, tais fumos de anacronismo (“O inferno são os pós-modernos”, poderia sugerir o texto), o espectador estará mais aberto às tensões que nascem das falas dessas mulheres insubmissas, em constante diálogo com o bom senso, a sensibilidade, a inteligência e a consciência de si mesmas. E poderá se perguntar acerca do mistério que ronda a peça. Por que será que essas figuras tão sinceras foram reunidas em cena? E o que há por detrás da articulação de seus discursos? Se é próprio do homem revelar, compete à mulher executar a ação contrária, isto é, velar, quando não enovelar – tarefas às quais grandes personagens femininas da literatura e da dramaturgia se lançam com energia incomum.
Em sua introdução à publicação da tradução para o português dos fragmentos de Heráclito (que, ao lado de Tales, Anaximandro, Anaxímenes, Zenão, Xenófanes e Parmênides, integra o grupo dos pensadores originários), o filósofo Emmanuel Carneiro Leão defende o mistério do pensamento pré-socrático e questiona o poder da ciência em sua impotência de pensar. “O problema da ciência”, afirma ele, “não é apenas um problema de epistemologia. A verdade da ciência não é apenas um resultado entre outros resultados ou o conjunto de todos os resultados. É inseparavelmente o vigor do mistério e o vigor da verdade. O pensamento procura levar a sério a radicalidade de sua errância e sente no estrangeiro a nostalgia da pátria. Não rejeita a ciência com a onipotência de quem rejeita o bárbaro e primitivo. Para pensar, o pensamento sente a dependência de uma provocação de sua coisa. Aceita sua decadência na filosofia e na ciência como uma outra infância, como um novo principiar da identidade do mistério”.
Bárbaras e estrangeiras em território essencialmente masculino, as cientistas insubmissas criadas por Oswaldo Mendes e interpretadas pelas atrizes do grupo Arte Ciência no Palco querem se rebelar contra a luminosidade sem sombra dos homens e opor à onipotência solar que eles representam as emanações noturno-femininas da terra e das pedras pelas quais se deixam envolver por absoluta identificação. Pois, do mesmo modo que uma pedra – em sua aparente passividade – está repleta de vida, Hipácia, Marie, Bertha e Rosalind jamais se deixam flagrar em cena como massas inertes.
Insubmissas – Mulheres na Ciência
Onde: Teatro de Arena da Funarte Eugênio Kusnet (R. Dr. Teodoro Baima, 94, São Paulo)
Quando: até 1º de março (sexta e sábado, 21h; domingo, 19h)
Quanto: R$ 20,00 (inteira) e R$ 10,00 (meia)
Info: (11) 3256-9463