Infância clandestina
Recorrentemente, Rimbaud se referia ao mundo pelo uso de imagens 'imundas': o bolor, as sarnas, as protuberâncias na pele, entre outros (Foto: reprodução)
“Os poetas de sete anos”, poema de Arthur Rimbaud, estampa o tema da divergência e da ruptura do princípio ao fim. A mãe que acompanha satisfeita o êxito do filho diante dos deveres bem realizados não é capaz de suspeitar do grau de repugnâncias a que a alma do filho se entrega. Leitores, já cúmplices, somos fisgados pela curiosidade e pelo suspense da iminência dessas revelações. Entre orgulho e desconhecimento, dever e prazer, atração e aversão, situação e oposição, como um maestro, o eu-lírico onisciente nos oferece o tom enigmático e subversivo a orientar a narrativa poético-biográfica deste poeta de sete anos. Obediência e inteligência erigiram-se nele como máscara (hipócrita) cotidiana sob a qual ruminavam obscuros eflúvios. As tapeçarias emboloradas do úmido corredor são das suas primeiras inclinações, atmosfera sob a qual delira e se contorce de prazer. Algumas vezes, “sob um golfo de dia”, o feixe de luz, à noite, a pender do teto ilumina seus resmungos no alto da escada. No verão, teimoso, vencido, entrega-se ao frescor das latrinas para arejar o pensamento.
No inverno, no quintal enluarado acompanhava, sob vertigens, na sordidez, o progresso da corrupção dos detritos. Cercava-se de uma malta de crianças franzinas, sebentas, maltrapilhas e adoentadas como que de seus únicos familiares. Eventualmente a mãe o flagrava em práticas imundas, o que convocava seus brios de bom-mocismo vertidos sobre ela em afagos de ternura. Era a astuciosa malícia de uma hábil mente que, ao final, professa mentiras. Sobre esse grande deserto que parece se constituir ao redor de sua vida, aos sete anos o poeta compõe novelas onde luz a liberdade por ele encantada e exercida. Mas é tomado de assalto pelos rompantes de uma louca menina de oito anos a lhe infundir uma miríade de doces invectivas de charme, sedução e fascínios.
Mortificado nas suas convicções, o poeta recolhe-se aos seus refúgios não sem arrastar sobre si “os sabores da pele dela para seu quarto.” Oprimido pelos “descorados domingos de dezembro”, o menino sofre suas noites ao dar-se conta de que ama, mesmo em suas precariedades e faltas, et pour cause, mais os homens “en blouse” do que Deus. Sonhava com prados de amor, luz, perfumes e tranquilidade para todos. Por isso cultivava antes de tudo seus recônditos costumes: as tapeçarias emboloradas, o frescor das latrinas, as sarnas, as crianças doentes, mal cheirosas, as piedades e práticas imundas e os lugares escuros, sujos e úmidos, pois enquanto “progredia o rumor do bairro, embaixo,” assim com tamanhas cruezas, podia ele “pressentir violentamente o véu” sobre todos.
A elaboração da lembrança no
poema se apresenta como
núcleo de poesia.
A narrativa apresenta uma infância de peculiar recolhimento e, subtraída da marcha atordoante do convívio social, torna-se, a seu modo, clandestina na tarefa de ordenar o enxame de suas lembranças.
A poética enfibrada na composição do poema de Rimbaud comporta ao menos seis dimensões: 1) o sistema das repugnâncias, 2) o circuito das obscuridades, 3) os jogos infantis de sedução, 4) a descoberta da rua, 5) a simpatia pelas insignificâncias e 6) a iniciação ao sofrimento e, por consequência, à poesia.
Repugnâncias
Rimbaud coloca a posteridade à vontade para permitir que os mistérios, a insensatez e as desimportâncias da infância tomem de assalto o âmbito temático do poema, subvertam-no como outrora gênero exclusivo de circunspecção e inaugurem espaços de destaque para as antes torpes e por isso reprováveis idiossincrasias pueris.
A simpatia e a exaltação de
degenerescências são traços
recorrentes da poética de Rimbaud.
Ele se refere ao gosto pelo bolor, pelas sarnas, pelas protuberâncias na pele, pelo refúgio em latrinas, por entregar-se a toda sorte de aproximação e mesmo de mergulho em imundícies. Sempre em confronto com um tipo de ordem familiar (e social) para a qual a única resposta é a hipocrisia. A fixação das latrinas como núcleo de poesia é um dos pontos altos deste sistema ou rede poética de repugnâncias que se alastrou e fez fortuna sobre as poéticas autoproclamadas de vanguarda.
Obscuridades
Em contraposição às luminosidades e ao seu infinito cortejo de referências, a condição da infância na atmosfera vulcânica dos versos de Rimbaud constitui-se como território de cultivo de um circuito de obscuridades, o que nos permite pensar no poema também como um elogio às sombras. Tudo parece insinuado, sugerido, nunca definido ou esclarecido. Os versos permitem interpretações muitas vezes contrárias, as palavras podem assumir sentidos novos ou palavras inabituais podem condensar sentidos variados e antigos. O álbum de imagens configurado pela poética de Rimbaud parece compor-se como cifrado registro de ordem enigmática. O leitor é permanentemente chacoalhado nos seus hábitos de apreensão pelos curtos-circuitos semânticos: “transpirar obediências”, “provar em si mesmo acres hipocrisias”, “um golfo de dia pendente do teto”, “o frescor das latrinas”, “levar sabores sobre a pele” etc.
Seduções
As perversidades do pequeno polimorfo recebem contornos que reforçam as vigas das sugestões, das insinuações e de algum mistério: “Quando vinha, olhos marrons, em vestido de indiana, oito anos, a filha dos operários do lado, a pequena brutal, salta de um canto sobre as costas do menino, sacudindo suas tranças, e ele embaixo dela mordia suas nádegas, pois ela jamais usava calças; por ela mortificado sob socos e pontapés, ele levava consigo os sabores da pele dela para dentro do seu quarto”. Se o poema pode ser tomado como um feixe de microtópicas, então parece clara a adoção do lugar de glosa transfundido por Rimbaud sobre o tema da infância. E, neste caso, apesar de sempre operação de risco, a diálise resultou em manobra de raro tino perturbador.
Vias públicas
Fugir parece ser palavra-chave da vida e da poética de Rimbaud. O processo de evasão é, inclusive, de forte convocação metafórica. A rua surge como um desses lugares de prazer, de descoberta e, sobretudo, de liberdade, seus habitantes são aqueles a quem o jovem poeta de sete anos se dá sugestivamente como única família. O poema se abre nas suas operações, nos seus enredados cálculos e nos significados menos evidentes para os horizontes que dão para fora da privacidade familiar, para longe do âmbito infecundo e assepticamente protegido da casa, para a esfera subversiva do espírito visceralmente público.
Puerilidades
Se o mito da criança como pequeno adulto teve alguma vigência na poesia, com Rimbaud foi destroçado pela profusão do que talvez possamos chamar de simpatia pelas múltiplas insignificâncias da infância: nem a Bíblia, menos ainda o catecismo ou Deus têm importância; nem a mãe, a segurança da casa ou os parentes. Antes as “visões” que tinha ao comprimir os olhos, enterrar-se nas imundícies do quintal, conversar com a doçura dos idiotas, furtivas imagens de mulheres seminuas, a vista inundada de satisfação diante da marcha dos operários voltando para suas mansardas, a atenção aos perfumes, saboreando sobretudo as coisas sombrias. Um dos valores manifestos na poética de Rimbaud parece ser esse olhar de encanto para as quinquilharias da vida como abundantes núcleos de poesia e liberdade.
Sofrimento e poesia
Todos esses percalços são, na verdade, caminhos necessários de espíritos que não encontram pares na prosa do mundo. O que poderia ser visto como um ethos dissidente é muito mais acordo com uma necessidade atávica de recuo diante do estranhamento amplo, geral e irrestrito com o mundo. Por isso, exercitar-se na prevalência da expressão poética é, em Rimbaud, também fortalecer-se no acordo consigo mesmo, calcado em valores de emancipação e, por isso, de liberdade.
No trecho final do poema, Rimbaud
explicita o seu desprezo pelo “rumeur
du quartier” e, só, plenamente
entregue às suas minúcias, pode
pressentir a violência do véu
sobre todos.
Recusas dessa ordem, ao aceitarmos o convite, parecem ser condição necessária para explicitar determinados grilhões, mas, ainda que fertilizassem a imaginação e envenenassem as disposições desencadeando a indignação, por si só não seriam garantia de melhores horizontes. Ao reforçar a densidade do sofrimento, o máximo que poderia resultar a espíritos privilegiados, ao que parece, seria a obra de arte, neste caso o poema, o que se não for a própria liberdade, está muito longe de ser pouco.
Os poetas de sete anos
Ao Sr. P. Demeny
E então a Mãe, fechando o livro de dever,
Lá se ia satisfeita e orgulhosa, sem ver
Em seus olhos azuis, sob as protuberâncias
Da face, a alma do filho entregue a repugnâncias.
O dia inteiro ele suou de obediência; que
Inteligente! e entanto, uns tiques mais, um quê
Já demonstravam nele acres hipocrisias.
No escuro corredor, junto às tapeçarias
Mofadas, estirava a língua, os punhos fundos
Nos bolsos e, fechando os olhos, via mundos.
Sobre a noite uma porta abria: na rampa da
Escada, a resmungar, o viam, sob a lâmpada,
Como um golfo de luz a pender do teto. E no
Verão, abatido, ar estúpido, o menino
Teimava em se trancar no frescor das latrinas
Para pensar em paz, arejando as narinas.
Quando o jardim de trás da casa se lavava
Dos odores do dia e, no inverno, aluarava,
Jazendo ao pé do muro, enterrado na argila,
Para atrair visões esfregava a pupila
E ouvia o esturricar das plantas nas treliças.
Pobre! para brincar só crianças enfermiças
De fonte nua, olhar vazio que lhes erra
Pela face, escondendo as mãos sujas de terra
Nas roupas a cheirar a fezes, todas rotas,
Falando com essa voz melosa dos idiotas!
E quando o surpreendia em práticas imundas,
A mãe se horrorizava; o menino, profundas
Carícias lhe fazia, a apaziguar-lhe a mente.
Era bom. Ela tinha o olhar azul, – que mente!
Aos sete anos compunha histórias sobre a vida
No deserto, onde esplende a Liberdade haurida,
Florestas, rios, sóis, savanas! Recorria
A revistas nas quais, encabulado, via
Italianas a rir e espanholas bonitas.
Quando vinha, olhos maus, louca, em saias de chitas,
A filha – oito anos já! – do operário ao lado,
A pirralha infernal, que após lhe haver pulado
Às costas, de algum canto, a sacudir as roupas,
Ele por baixo então lhe mordiscava as popas,
Porquanto ela jamais andava de calcinha.
– Cheio de pontapés e socos, ele vinha
Trazendo esse sabor de carne para o quarto.
Da viuvez invernal dos domingos já farto,
Junto à mesa de mogno, empomadado, a ter de
Recitar a Bíblia encadernada de verde
E a sofrer a opressão dos sonhos maus em que arde,
Já não amava Deus; mas os homens, que à tarde,
Via, sujos, chegando em suas casas baixas,
Quando vinha o pregoeiro, entre ruflar de caixas,
A ler seus editais entre risos e pragas.
– Sonhava as vastidões de prados onde as vagas
De luz, perfumes bons, douradas lactescências
Se movem calmamente e evolam como essências!
E como saboreava antes de tudo arcanas
Coisas, se punha, após baixar as persianas,
A ler no quarto azul, que cheirava a mofado,
Seu romance sem cessa em sonhos meditado,
Cheio de plúmbeos céus, florestas, pantanais,
Flores de carnes viva em bosques siderais,
Vertigens, comoções, derrotas, falcatruas!
– Enquanto progredia a agitação das ruas
Embaixo, – só, deitado entre peças de tela
De lona, a pressentir intensamente a vela!
26 de maio de 1871
Tradução de Ivo Barroso
[em Arthur Rimbaud/Poesia completa, Topbooks, 1995]
Denilson Soares Cordeiro é professor de filosofia na Unifesp.