Inescapável solidão nos trópicos
Walter Hugo Khoury nas filmagens de Fronteiras do inferno, em 1959, com a atriz Bábara Fazio (Foto: Acervo família Khouri)
Há meio século, a crítica brasileira não era tão provinciana. Bem mais culta do que hoje, era menos influenciada por suas congêneres da Europa ou dos Estados Unidos. Mais de uma vez consagrou cineastas de talento antes do reconhecimento internacional. Isso acontecia principalmente em São Paulo (Rubem Biáfora) e no Rio (Moniz Viana), mas também em cidades menores como Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador. Assim, podemos afirmar sem erro que “descobrimos” Yasujiro Ozu e Ingmar Bergman antes do Cahiers, da Positif ou da revista New Yorker. E também Michelangelo Antonioni, cujo primeiro longa, Cronaca di un amore, chamou a atenção dos críticos acima citados, apesar de pouco estimado em seu país natal. Essa deve ser a primeira referência em um ensaio sobre Antonioni e o Brasil.
A segunda é uma possível influência sobre cineastas brasileiros. Se pensarmos apenas nos seus primeiros longas, ela não poderia existir. La signora senza camelie e I vinti tiveram repercussão zero, enquanto O grito só estreou por aqui muitos anos depois, quando seu autor já estava consagrado. As amigas (como Cronaca) é um melodrama existencial, gênero raro no cinema nacional, sempre oscilante entre o drama social realista, a imitação de Hollywood e a comédia popular. Apenas no final da década de 1950, quando o diretor italiano finalmente atingiu a maturidade criativa na célebre “trilogia da incomunicabi-lidade”, surge algo que se pode chamar de estilo antonionesco.
O que vem a ser isso? Para um espectador de 2005, não é fácil perceber por que o cineasta encarnou uma das vertentes do cinema moderno (a outra é Godard), já que tantas das suas inovações estão hoje incorporadas ao cinema tradicional. Mas em 1959 era inconcebível que um filme se desenvolvesse sobre o desaparecimento de um personagem e terminasse sem oferecer solução. O cineasta, para evitar a hostilidade da platéia, teve de sair pelos fundos da sala quando da exibição de A aventura no Festival de Cannes. Em A noite, outra heresia. Quase no final do filme, a esposa lê uma longa carta para o marido, com sua voz e o texto literário conduzindo a seqüência. Enquanto O eclipse abre com uma longa cena silenciosa em que a única coisa que se move é um ventilador e termina com os detalhes de uma rua vazia, ponto de encontro para um casal que não comparece. Mesmo em seus “filmes internacionais” volta e meia deparamos com o inexplicável. Em Blow up, a ampliação de uma fotografia denuncia (em magnífica narrativa sem diálogo) um assassinato, mas o filme termina sem que o crime seja esclarecido, e com o protagonista assistindo a um jogo de tênis onde a bola é invisível. Em Passageiro: Profissão repórter é igualmente obscuro o motivo pelo qual o jornalista troca de identidade com o guerrilheiro africano. É pelas elipses que se desenvolve esse mundo ficcional, em que, mais do que nunca, o enquadramento se torna uma questão política, ressaltando a preferência pelos tempos mortos, onde pouco ou nada acontece. Ou melhor, acontece na cabeça do espectador, encarregado de preencher os vazios.
Predomina um distanciamento implacável, que pode ser bem avaliado comparando o uso que o cineasta faz da trilha sonora com outro grande diretor italiano do período, Fellini. Enquanto este nos envolve com as belas melodias assobiáveis de Nino Rotta, Antonioni prefere os efeitos abstratos da música de Giovanni Fusco, alternando-a com canções pop de segunda linha. “Não é tão importante compreender um filme quanto senti-lo”, afirmou. Nada disso lhe impediu o sucesso. Conseguiu mesmo a consagração da popularidade ao ter seu estilo austero satirizado numa seqüência de Il sorpasso, célebre comédia de Dino Risi. Entretanto, seu cinema particularíssimo teve poucos seguidores, na Itália ou fora dela.
Um deles surgiu exatamente no Brasil: Walter Hugo Khoury. Não nos primeiros filmes, mas nos quatro longas e meio que dirigiu e escreveu na década de 1960. Como A ilha, que parte de uma situação dramática semelhante a A aventura (um grupo de grã-finos numa ilha), mas, diferentemente deste, concentra-se em revelar suas verdadeiras faces quando distantes da civilização. Há outros pontos de contato, embora tímidos, como o uso da trilha sonora incidental. As semelhanças se acentuam em Noite vazia, seu filme seguinte, talvez o melhor, em que os protagonistas masculinos procuram preencher o vazio de suas vidas burguesas no erotismo desenfreado. O filme abre com as estátuas hindus que ilustram o kama sutra, coletânea de técnicas sexuais que podem prescindir do amor e do afeto, e apresenta cenas muito ousadas para a época (1965), mesmo para o padrão internacional. Aqui, surge uma diferença com o mestre italiano, bem mais comedido.
As atrizes principais parecem homenagear, em memoráveis interpretações, as heroínas da trilogia. Norma Bengell quase parodia Jeanne Moreau; e Odete Lara está paginada como Mônica Vitti, inclusive com a cabeleira loura que, a partir de então, será uma de suas marcas registradas. Corpo ardente, obra mais ambiciosa, vai adiante na temática da incomunicabilidade e da alienação, beirando a metafísica, com a personagem entediada da grã-fina se identificando com a liberdade e o sensualismo de um cavalo selvagem. O episódio de As cariocas, deslocado numa comédia inspirada em Stanislau Ponte Preta, mostra uma jovem sustentada por um homem mais velho, que vive no tédio, embora nada lhe falte materialmente. As amorosas parece que vai ser diferente pela ambientação classe média, mas traz o niilismo para a vida universitária, em pleno ano contestador de 1968. Todos os personagens demonstram um medo pânico da solidão, que tentam burlar de algum modo. Esses filmes compõem o momento mais nobre da obra khouryana. A partir daí, o cineasta voltou às suas obsessões originais, Bergman e Von Sternberg, mais propícias para a escalada erótica que vai caracterizar sua filmografia.
A apreciação de sua obra no Brasil apresenta paradoxos. A evidente analogia com Antonioni não o poupou de críticas contundentes, e mesmo impiedosas, de jornalistas ligados ao Cinema Novo, admiradores confessos do cineasta italiano. Isso chegou aos extremos da grosseria. A obsessão da protagonista de Corpo ardente pelo garanhão selvagem levou adversários a apelidar o filme de “minha mulher trepa com os cavalos”. A diretoria do Instituto Nacional do Cinema (INC), que era “de direita”, procurou, em plena ditadura e à sua revelia, jogar o cinema “profissional” de Khoury contra o “amadorismo jacobino” do CN. Mas Khoury nunca foi alvo de ataques pessoais dos líderes desse movimento, que o encaravam como um talento desviado do bom caminho. De fato, com suas mulheres burguesas em apartamentos luxuosos decorados com quadros abstratos, ele é mesmo um antípoda dos cinemanovistas, debruçados no regionalismo e no engajamento político. E antípoda não apenas na temática. Ao contrário de uma câmara na mão e luz natural, sempre preferiu enquadramentos intrincados e iluminação expressionista, influências da Vera Cruz, que estrebuchava exatamente na época em que surgiu.
Entretanto, em alguns momentos, o experimental foi ele. Desde cedo trabalhou com compositores de vanguarda como Rogério Duprat, enquanto a trilha sonora dos cinemanovistas é quase sempre constituída por discos. Mesmo trabalhando com produtores de forte tendência comercial, como Massaini e Galante, conseguiu manter a integridade temática e de estilo. Seus filmes foram realizados na contramão de sua época, não fizeram escola e revelam uma solidão única no cinema nacional. É um autor que precisa ser hoje reavaliado, longe do conflito político de 40 anos atrás.
Existem poucos outros filmes brasileiros que tenham analogia com o estilo cosmopolita de Antonioni. Como Amor e desamor, de Gerson Tavares, que utiliza Brasília (cenário antonioniano por excelência) numa obra sobre a solidão. Podemos talvez achar que há uma maior influência do Khoury que do próprio Antonioni, mas não deixa de ser curioso que, pouco depois, o próprio cineasta italiano tentasse realizar um filme no Brasil, cujo cenário principal seria a nova capital federal, moderna e fria. Esse projeto, produzido por Carlo Ponti e estrelado por Sophia Loren, chamou-se Auto strada e teria também locações na Transamazônica (então em construção). Foi proibido pelo governo militar e nunca mais se falou no assunto. A incomunicabilidade num casal burguês foi também o tema de outra obra pouco conhecida, Mar corrente, de Luiz Paulino dos Santos. Neste há um clima de A noite, com cenas de boate e réveillon, mas o cineasta inova em sugerir uma saída para a angústia da milionária na religião do candomblé. Esses dois filmes estão hoje fora de circulação.
Há outra faceta dele de que ainda não falei. Abordou a alienação também nas classes operária e empresarial e não apenas em socialites ou intelectuais. É o que encontramos em O grito e Deserto vermelho, obras menos conhecidas que as da trilogia, mas nunca inferiores. Mais de uma vez, em entrevistas, ele se referiu à rapidez de como a sociedade material estava mudando, sem que os sentimentos humanos sofressem a mesma atualização. Dois filmes nacionais chegam ao mesmo ponto, embora de modo menos evidente que os citados anteriormente. Um é São Paulo S.A., de Luís Sérgio Person, retrato de um jovem industrial em crise, um dos melhores exemplos de cinema urbano entre nós. O último foi Amor palavra prostituta (1982), de Carlos Reichenbach, onde a cidadezinha operária e seus personagens-escombro, ao som de um pianinho insistente que toca César Frank, têm mais de um ponto de contato com o cineasta italiano, cujos personagens também procuram, sem sucesso, ocupar um lugar na nova ordem social. Sobre esse filme, pouco visto e hoje em franca reabilitação crítica, podemos citar um trecho de outro roteiro não filmado de Antonioni (Tecnicamente dolce): “Chegas ao ponto de não saber mais se és o alvo, o atirador ou o projétil.
Se é você quem atira ou é o atingido”.
João Carlos Rodrigues nasceu em 1949 e é carioca. Jornalista, pesquisador e crítico de cinema. Dirigiu os vídeos Punk molotov e Cantoras do rádio. Produziu os CDs de Johnny Alf Eu e a bossa e Cult Alf. Autor dos livros João Do Rio: uma biografia (Bolsa Vitae de Literatura) e O negro brasileiro e o cinema, na terceira edição